Racismo Filosófico: entrevista com Fernando de Sá Moreira

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

01/11/2023

Crédito: Luiz Fernando Nabuco/Aduff-SSind

Uma nova história da filosofia moderna deve ser capaz de não apenas reconhecer o racismo e o antirracismo nos filósofos canônicos, mas igualmente ser capaz de reconhecer que o cânone filosófico foi instituído sobre bases racistas

“Incorporar elementos dos estudos filosóficos negros em concursos públicos para docentes e provas de seleção em mestrados e doutorados, assim como na produção de materiais de formação, como livros didáticos, textos introdutórios, manuais, histórias da filosofia, etc.”. Esta é uma das onze propostas de Fernando de Sá Moreira, professor de Filosofia da Educação da FEUFF (Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense) para superar o que ele chama de silêncio e o silenciamento sobre estudos filosóficos negros dentro de universidades e instituições de pesquisas e ensino superior no Brasil.

Essa proposição foi objeto de um ensaio publicado na Revista Ensaios Filosóficos (2020-2021), mas uma recente pesquisa realizada por ele apontou para uma larga subrepresentação nesses espaços – o que ele já declarara ser inadmissível. Na presente entrevista, uma colaboração da Anpof para a edição 168 da Humanitas, Sá Moreira convoca uma reflexão coletiva que permita observar como têm sido as reações às reivindicações antirracistas na filosofia acadêmica, seja em nosso país, seja no exterior. “Isso é um sinal que a coisa vai ainda mal e será necessária muita luta para que cheguemos a uma outra forma de pensar a relação entre filosofia e racismo”. Confira, a seguir o diálogo empreendido entre o professor da FEUFF e seu entrevistador, Érico Andrade, presidente da Anpof. 


Como é ser um homem negro na filosofia, cuja comunidade brasileira, presente nos departamentos de filosofia, é majoritariamente branca? Você já sentiu alguma forma de racismo nesse ambiente?

Que há poucas pessoas negras na área acadêmica de filosofia não é exatamente uma novidade, especialmente na pós-graduação. Se minha pesquisa tem algum mérito, não é tanto em apontar essa informação em geral. Acho que a grande questão é justamente o esforço de tentar dimensionar a baixa representatividade negra na filosofia, comparando-a com outras áreas, buscando identificar as causas do problema e possíveis soluções. Atualmente, entre as ciências humanas, a filosofia é a área com menor presença de não-brancos (28% em 2020) e mulheres (29%) em mestrados e doutorados. Na verdade, por incrível que pareça, ela está entre as áreas mais desiguais de todo o sistema de pós-graduação brasileiro. Isso não é pouca coisa. E é claro que isso se reflete nos departamentos de filosofia e nos quadros de professores da pós-graduação. Como mostra a ampla produção sobre as relações étnico-raciais brasileiras, quanto mais alta é a exigência para um cargo, o prestígio que ele carrega e/ou sua remuneração, menor a probabilidade de encontrar pessoas negras nele. Pessoas negras com doutorado e uma carreira docente universitária não chegam a essa posição sem sofrerem as mais diversas experiências do racismo. O próprio fato de sermos tão poucos é já uma consequência disso. O meu caso na filosofia não é diferente. É um erro pensar que a filosofia está imune ao racismo, que ele é algo que ocorre apenas fora de nossa área, ou ainda que se encontra apenas circunstancial e ocasionalmente entre nós.

 

Você acredita que a filosofia pode ter contribuído para a produção do racismo?

Essa é uma questão central. Sem dúvida nenhuma a filosofia contribuiu para a produção do racismo. Historicamente falando, muitos filósofos e filósofas célebres desenvolveram ideias racistas e se envolveram direta ou indiretamente com a construção, legitimação e difusão de ideias de superioridade racial, direito à escravização, rebaixamento de negros, asiáticos e ameríndios, etc. Montesquieu, Hume, Kant e Hegel são alguns exemplos mais conhecidos, mas há muitos outros. E até aqui estamos falando meramente de filósofos famosos, que representam a parte mais visível, mas apenas uma ínfima parcela do trabalho efetivamente desenvolvido pela filosofia. Para além deles, é ainda importante perceber que a filosofia é composta por uma multidão de pensadoras e pensadores anônimos ou mais ou menos desconhecidos, sem a qual ela não existiria como é hoje. Também é possível encontrar no trabalho dessa multidão séculos de tentativas de justificação filosófica da discriminação e do preconceito racial. É claro que a filosofia como área não desenvolveu o racismo sozinha, mas tampouco o racismo surgiu sem ela. Em outras palavras, é preciso assumir que, lamentavelmente, a filosofia não apenas reproduziu um racismo que lhe era externo, mas também foi um dos campos de experimentação e forja das teorias de superioridade e inferioridade racial.

 

É possível afirmar que a literatura contra a escravidão e antirracista encontrava abrigo já no que chamamos de Filosofia Moderna? Ou seja, na modernidade havia a produção de uma filosofia contra o racismo?

Sim! Esse é outro ponto muito importante. A história da filosofia é repleta de exemplos negativos, de indivíduos que infelizmente contribuíram para a formulação e consolidação do racismo, mas é também cheia de poderosos exemplos contrários. As tradições filosóficas antirracistas nem sempre estão em evidência nos livros, revistas e manuais de filosofia, nem sempre está reproduzida nos currículos de seus cursos. No entanto, isso não quer dizer que ela não exista. Sobre esse tema, eu tenho me ocupado particularmente com alguns autores negros do século 18 e intelectuais ligados ao abolicionismo do 19, como Anton Wilhelm Amo, Olaudah Equiano, Frederick Douglass, Luiz Gama, Joaquim Nabuco, Henri Grégoire, Sojourner Truth, Jean-Baptiste Linstant. A maioria dessas pessoas não costuma ser reconhecida como filósofo ou filósofa. Mas, isso não deve nos impedir de olhar com atenção e reconhecer que o que escreveram está em profundo debate com a filosofia e, sem a menor sombra de dúvida, é de profundo interesse filosófico. Uma nova história da filosofia moderna deve ser capaz de não apenas reconhecer o racismo e o antirracismo nos filósofos canônicos, mas igualmente ser capaz de reconhecer que o cânone filosófico foi instituído sobre bases racistas. Portanto, uma nova história da filosofia moderna deve estar plenamente disposta a disputar a formação de um novo cânone ou, ainda mais além, uma nova forma de lidar com a própria história do pensamento humano.

 

Qual a relação que você vê entre a leitura/estudo que fazemos do cânone filosófico e o racismo? Em outras palavras, como lidar com autores canônicos que promoveram racismo?

Não há uma resposta fácil sobre como lidar com filósofos racistas. Mas uma coisa é certa: é preciso parar de tratá-los como semideuses. Se tornou profundamente enraizada no Brasil uma certa forma de produzir filosofia que, na prática, nos reduz a meros intérpretes e comentadores dos “filósofos clássicos”. Isso nos colocou em uma posição de subordinação em relação a um cânone essencialmente masculino, branco e europeu. Isso rebaixou em nós o potencial produtivo e crítico da filosofia brasileira. Tornou-se comum que cada pesquisador e pesquisadora desenvolva uma espécie de filiação meio familiar, meio religiosa com “seu filósofo”. Se bem explorado, esse tema poderia dar muito trabalho para os psicólogos! Na prática, isso não significa que se acredite que os clássicos teriam que ter vidas irrepreensíveis, mas significa principalmente que quaisquer máculas em suas histórias devem ser como que exteriores a eles, quase que acidentais. O raciocínio profundo é mais ou menos o seguinte: se “meu filósofo” foi racista, isso não pode ter sido responsabilidade dele, ou os efeitos disso devem ser muito diminutos e acidentais, porque, do contrário, eu mesmo me contaminaria por herança e associação. Daí surgem todos os tipos de racionalização: “não entenderam bem o que ele quis dizer de verdade”; “isso aconteceu porque o tempo dele era racista e, afinal, ele era filho de seu tempo”, “foi apenas um pequeno deslize que não compromete o todo de sua obra”; etc. Isso sem mencionar os momentos em que a defesa do filósofo se torna prontamente um ataque: “que absurdo, agora querem cancelar o meu filósofo!”; “daqui a pouco estarão queimando todos os livros!”; “querem jogar fora a criança com a água do banho!”; etc. Há um longo histórico de reações desproporcionais e agressivas contra as reivindicações antirracistas na filosofia acadêmica, aqui e também no exterior. Isso é um sinal que a coisa vai ainda mal e será necessária muita luta para que cheguemos a uma outra forma de pensar a relação entre filosofia e racismo.

 

Quais seriam as melhores formas de integrar a comunidade negra na filosofia?

Um primeiro passo importante é que a condição atual seja vista como um problema. Ela deve causar estranheza, incômodo. É um absurdo que departamentos inteiros compostos exclusivamente por pessoas brancas não sejam vistos como um indicativo de problema grave na filosofia. Mas temos que ir além disso também. É preciso identificar os mecanismos de exclusão. Algumas pessoas gostam de sugerir que há poucos mestrandos, doutorandos e professores negros de filosofia, porque pessoas negras simplesmente teriam preferência por outras áreas. Isso é uma mentira! A população negra está nos cursos de graduação em filosofia. Dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) de 2017 mostram que negros e negras eram 46% dos concluintes das graduações em filosofia no país. Éramos, no entanto, apenas 15% dos estudantes de doutorado em 2018. Não é que não queiramos a filosofia, mas algo na filosofia acadêmica e na sociedade em geral, tal como estão configuradas hoje, nos coloca sistematicamente para fora a cada etapa. Portanto, é falso que a população negra não se interessa pela filosofia. Mas, para dizer ainda mais, é igualmente falso que esse interesse seja recente. Historicamente falando, não é difícil encontrar expoentes do pensamento afro-brasileiro relacionados intimamente com a filosofia, mesmo quando são mais conhecidos por seus trabalhos em outras áreas. Exemplos não faltam. Para ficar em apenas alguns poucos: Machado de Assis, Tobias Barreto, André Rebouças, Luiz Gama, Abdias do Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, etc. Para o efetivo combate ao racismo acadêmico nas graduações e pós-graduações em filosofia, é necessário não apenas pensar na entrada dos corpos negros nas cadeiras estudantis, mas também o efetivo reconhecimento dessa íntima relação entre filosofia e experiências africanas e afrodiaspóricas ao longo da história. É preciso pensar não somente no que a filosofia acadêmica tem a ensinar às comunidades negras, mas também o que tem a aprender com elas. O caminho é longo e é necessário.

Acesse aqui a entrevista publicada na edição 168 da Humanitas.