Mulheres que pensam e fazem pensar

12/07/2019 • Clipping

 

Durante todo o século XX, houve um amplo exercício teórico de retirar das sombras a grande contribuição das mulheres para a vida social. Somaram-se nesses esforços o aporte teórico de historiadoras feministas que questionaram a construção de uma historiografia supostamente neutra em termos de gênero, os movimentos feministas nas ruas, nas praças e na conquista do espaço de trabalho. Tudo isso convergiu e continua convergindo para aproximar as mulheres e qualificar a fixação de cânones na história, não somente da filosofia. No rastro de iniciativas de historiadoras como Michelle Perrot, na França, ou Joana Maria Pedro, no Brasil, em alguma medida fundamentadas ainda no trabalho de Joan Scott no seu célebre O gênero como categoria sutil de análise histórica, literatura, ciência e linhas de pesquisa descobriram as mulheres, tomando o verbo descobrir em sua literalidade: tirar a cobertura daquilo que existia, mas estava encoberto.

No Brasil, notadamente na Antropologia e nas Ciências Sociais, esse gesto vem sendo produzido há algumas décadas. Impulsionadas sobretudo pela consolidação do conceito de gênero e sua interseccionalidade com raça e classe como instrumento de pensar as hierarquias sociais entre homens e mulheres, desenvolveu-se uma experiência e uma produção literária, dentro e fora da academia. Desde o pioneiro trabalho da socióloga Heleieth Saffioti e a publicação, ainda no final dos anos 1960, de A mulher na sociedade de classe: mito e realidade, esses campos de saber foram conquistando visibilidade para as mulheres, seja como tema de pesquisa, seja como pesquisadoras.

No âmbito do feminismo negro, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e mais contemporaneamente Djamila Ribeiro são autoras que pautaram e ainda pautam o debate político em torno da necessidade de que a visibilidade não seja apenas para as mulheres brancas, reivindicando a existência das mulheres negras para além das marcas de subalternidade que os processos de escravidão legaram à vida social. O mesmo pode-se dizer da luta das mulheres indígenas, seja por lideranças como Sonia Guajajara, seja pelo caminho traçado pela antropóloga Rita Segato, cujas formulações teóricas sobre violência contra as mulheres na América Latina são de extraordinária importância e acabaram de ser reconhecidas na Universidad Nacional de San Martín-UNSAM (Argentina), com a criação da Cátedra de Pensamiento Incómodo Rita Segato. Incômodas é como poderíamos nos descrever, mulheres pensantes e atuantes.

Embora, para onde se olhe, o que se veja são mulheres e mais mulheres adentrando o espaço público, ainda há uma espécie de canto mal iluminado nessa cena teórica: a Filosofia. Em sua matriz greco-europeia de pensamento parecem só existir uma série de homens cujas interlocuções se dão ao longo de séculos como se desta conversa só eles estivessem autorizados a participar. A I Conferência Internacional Mulheres na Filosofia Moderna, que aconteceu na Uerj entre os dias 17 e 20 de junho (programação completa aqui: https://mulheresfilosofiamoderna.wordpress.com/), é mais uma das importantes iniciativas a jogar luz nesse canto escuro e esquecido da história das mulheres. Embora tenha como foco específico as pensadoras da filosofia moderna, o encontro é uma oportunidade para demonstrar pelo menos duas coisas importantes: 1) há mulheres que pensaram grandes temas na história da filosofia, o que serve para nos libertar do estereótipo de que só adentramos o espaço do pensamento para pensar de nós mesmas como objeto de estudo; 2) o que sempre nos foi contado como uma história de homens talvez não existisse sem a contribuição decisiva de muitas mulheres cujo destino foi uma política deliberada de esquecimento.

Talvez não haja melhor período da história da filosofia para recuperar essas mulheres do que o momento de início do pensamento moderno. Em parte, porque na contemporaneidade é mais fácil ver e dar a ver autoras como Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Judith Butler, Angela Davis ou Patrícia Hills Collins; em parte porque foi a partir da filosofia moderna que, em nome de um projeto de fazer da filosofia uma teoria do conhecimento, as mulheres foram ainda mais excluídas da história do pensamento. Assim, se a vulgata cartesiana “penso logo existo” é a marca da inauguração do sujeito moderno, uma conferência de mulheres na filosofia moderna pode retomar, por exemplo, as contribuições de Elisabeth da Boêmia e seus seis anos de troca de correspondências com René Descartes sobre, entre tantos outros temas, o problema da separação entre a alma e o corpo. As cartas, já editadas na França há muitos anos (Descartes, René. Correspondance avec Elisabeth et autres Lettres. Editora Flammarion, 1989), são apenas um pequeno sinal de como pensar é menos uma atitude solitária e mais o resultado de interlocuções, questionamentos e trocas, processos dos quais inúmeras vezes mulheres, companheiras e esposas participaram, muitas vezes em âmbito restrito, mas nem por isso menos importante.

No campo dos estudos de filosofia no Brasil, a conferência, que vem sendo planejada há mais de um ano, tem ainda o mérito fundamental de acontecer em um momento político em que reunir filósofas brasileiras pode ser não apenas produtivo para as discussões que nos unem – a recuperação que, cada uma a seu modo, está fazendo do pensamento das mulheres e sobre as mulheres – mas também e principalmente tem o poder de mostrar que existimos, a despeito de todas as pautas governamentais que gostariam de fazer calar o ensino público universitário movido pelo pensamento crítico e feminista.