O que estamos fazendo com os nossos meninos?

08/04/2019 • Clipping

Qualquer tentativa de oferecer uma explicação exaustiva para o massacre de Suzano está fada a figurar no hall das pretensões narcísicas de dar a um evento imponderável à medida daquilo que mais nos importa. A maior segurança na escola depende das pessoas se sentirem pertencidas naquele espaço e não de qualquer controle rígido de circulação de pessoas. As armas, diversos estudos apontam, quanto mais circulam mais matam e só pessoas engajadas com a indústria das armas podem reconhecer em qualquer cidadão (qualquer professor ou professora) uma espécie de Rambo capaz de reagir ao perigo de forma tão rápida quanto precisa. O bullying é tão difundido quanto praticado e se para cada estudante que sofreu bullyins houvesse uma reação violenta, já não teríamos mais escolas.

É evidente, contudo, que os matadores de Suzano, a exemplo do que ocorreu em Realengo, estavam armados, tinham estudado na escola e sofreram bullying. Mas, nem mesmo o somatório desses fatores explica porque aqueles jovens fizeram algo que a maior parte das pessoas não faria, mesmo quando confrontadas com as mesmas circunstâncias. Para começar a conversa é preciso dizer: saber porque aqueles dois jovens fizeram isso, saíram da fantasia para o ato, é algo dificilmente sondável em termos definitivos. Há aqui uma opacidade radical. Uma opacidade deles para com eles mesmos. Se estivessem vivos, os seus relatos sobre o ocorrido – como acontece com o adolescente que matou dois colegas em Goiânia – não seriam exaustivos. Em suma, seria importante ouvi-los, mas nem eles saberiam explicar, em última análise, por que procederam àquele massacre.

Então, sobre qual base deve estar assentada uma explicação sobre esses massacres? Descartamos o testemunho pessoal dos atores do massacre e as explicações mais imediatistas. Resta-nos o quê? O caminho para a explicação deve estar num contexto mais geral. Algumas constatações podem nos ajudar a lançar luz sobre aquilo que nós podemos de fato tangenciar. Os autores dos massacres são homens e adeptos de ideologias extremistas.

Notadamente, as ideologias extremistas portam invariavelmente um componente moral que sequestra a política – o diálogo para ser preciso – em favor de uma clivagem entre as pessoas que as divide entre as moralmente boas (superiores) e as demais passíveis de serem mortas por não estarem no mesmo patamar moral. Vidas que importam pouco porque simplesmente não compõem o mesmo elo moral. É a moral que é sempre relacionada a uma pureza de propósito e caráter diante das pessoas moralmente indesejáveis. É ela que está na base das ideologias extremistas.

Os movimentos extremistas – na sua maioria – são por assim dizer falocêntricos. Têm no seu cerne um homem que reúne na sua figura a projeção identitária de um grande pai; daquele que oferece amparo, conforto. É o grande pai que protege os filhos que nele se reconhecem como poderosos por seguirem as suas determinações, à risca. As ordens do pai funcionam como mandamentos cuja observância garante a masculinidade, a continuidade da fantasia da onipotência masculina.

Essas ideologias extremistas se articulam com as questões de gênero. O culto às armas, à violência e à disponibilidade para bater ou matar em massa e sem constrangimento é algo próprio de uma cultura patriarcal em que o homem se firma pela brutalidade, pela sua força, pela autoridade que se conquista quando submete as demais pessoas ao seu regime de valores e crenças. O culto à arma que prolonga o domínio sobre os outros pela força. Sensação de poder. Nada mais poderoso do que decidir sobre o que é mais importante para as pessoas, a vida. Decidir sobre a hora das pessoas morrerem. É isso que fascina no uso das armas.

Esses dois aspectos brevemente mencionados aqui incidem diretamente na construção do homem presente no ideário de masculinidade violenta. São os meninos que precisam ser fortes, que não podem ser motivo de bullying, não podem brochar, não podem receber um não, não podem chorar e devem recalcar tudo aquilo do que se aproxima do que se convencionou polemicamente como feminino. Não são monstros que saem transformados do subterrâneo da internet, mas filhos, amigos, irmãos, colegas, homens que para se afirmarem como homens levam à radicalidade os arquétipos de masculinidade; estampados nas camisas das torcidas organizadas, nos filmes, nos games, nas novelas, nas rinchas de escola, no uso do carro e das armas. O peso insuportável dessa cobrança pela masculinidade toma vários destinos, sabemos. Mas quando essa cobrança assume a forma do ressentimento, especialmente em face de um histórico de humilhações, a vingança passa a ser um destino prioritário. A vingança é filha do ressentimento, já dizia o filósofo. Não há receita para lidar com os níveis ressentimento das diversas singularidades masculinas, mas há um caminho para lidar com a construção social do homem. Desempoderar. Nós homens precisamos aprender a acolher aquilo que nos é mais humano: a fragilidade.