Por que não a Filosofia?

03/05/2019 • Clipping

Uma sociedade que decide condenar a Filosofia precisa explicar por que o faz. Ela é inútil? Supérflua? Desnecessária? Seja qual for o adjetivo usado para (des)qualificá-la, será necessário argumentar para defender uma posição. E argumentar, com honestidade intelectual, requer apresentar boas razões para que uma determinada conclusão possa ser sustentada. Para isso, é preciso utilizar as ferramentas da própria Filosofia. Quem não reconhece tal exigência, pode aparentemente criticar, mas no fundo, apenas faz acusações. A crítica requer argumentos e quem não está disposto a apresentá-los, apenas usa o discurso como retórica para mascarar o caráter autoritário das suas afirmações.

A discussão poderia começar, em primeiro lugar, pelo esclarecimento daquilo que chamamos de “Filosofia”. Podemos ter a impressão de estarmos falando da mesma coisa, mas a própria história dessa disciplina nos presenteia com uma lista ampla de definições, sem falar das controvérsias. Ao buscarmos respostas, perceberemos que definir a filosofia já é um problema filosófico que exige considerar também a pluralidade de formas em que ela se expressa, as diferentes subáreas em que se divide, as diferentes tradições de pensamento que a constituem, a sua constante renovação frente aos problemas contemporâneos: estamos falando de qual Filosofia?

Ainda que se apresente um argumento contra a Filosofia, isso não significa que se terá chegado a uma conclusão definitiva. Argumentos, em discussões filosóficas, são debatidos. A crítica exigirá que as justificativas sejam apresentadas e poderá questioná-las de forma mais abrangente se referindo ao seu entrelaçamento com valores, com uma determinada perspectiva da tarefa que a Filosofia deve desempenhar, com algum objetivo que supostamente ela deva atender, com algo do qual ela deva se separar. Qualquer forma de “dever”, nesse caso, requer justificação.

Nesse sentido, não é possível criticar ou defender a Filosofia sem considerar os contextos sociais, históricos e políticos nos quais ela se desenvolveu. Se quisermos debater seriamente o lugar da Filosofia no Brasil, teremos que situar os contextos em que as teorias apareceram, quais foram os projetos de nação a que elas serviram, quais interesses elas atenderam, com quais valores se comprometeram. Diferentes tradições filosóficas disputaram não apenas ideias, mas também a política. Poderíamos nos perguntar, por exemplo: por que o positivismo se fez tão presente no país? Por que e por quem foi defendido ou criticado? As mesmas questões podem ser colocadas ao marxismo e ao liberalismo. As respostas, para além de definições, revelarão os pressupostos que estão envolvidos na defesa de tais teorias.

Em relação ao nosso presente, cabe analisar a sociedade interpretando os seus elementos teóricos e práticos. Podemos nos perguntar, por exemplo, por que a utilidade é um critério usado nos debates para medir a importância da Filosofia. Ser útil é idêntico a ser importante? E se utilidade pressupõe uma relação de instrumentalidade, poderíamos também indagar a quem certas coisas são úteis? A que objetivos determinados meios são úteis? E por que não nos perguntarmos: uma vida repleta de coisas úteis é uma vida que vale a pena ser vivida? É uma vida feliz? E em seguida, teríamos que nos perguntar: o que é, afinal, a felicidade? Veríamos que a Filosofia nos ajudaria nesse processo, pois se quisermos refletir sobre esses problemas, precisamos saber questionar, encontrar possíveis candidatas a respostas e julgá-las para decidirmos qual é a melhor. Além disso, devemos estar abertos a reavaliar
continuamente nossas posições caso tenhamos entre nossos objetivos o de nos desenvolvermos intelectual e moralmente, afinal, muitas dessas posições nos servem como critérios para, diariamente, agirmos, tomando decisões que afetam não apenas nossa vida, mas a de tantos outros com os quais convivemos.

O conhecimento necessário para realizar esse processo está entre os principais objetivos da formação oferecida nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia, espaços em que as diferentes tradições filosóficas são estudadas com rigor, reconstruídas e examinadas de forma crítica, colocadas em questão continuamente; em que defesas de ideias são submetidas ao escrutínio público, seja por meio da produção bibliográfica resultante de pesquisas, seja nas exposições orais. É também nas Universidades que formamos nossos professores de Filosofia, os quais devem atuar segundo princípios éticos, conscientes dos compromissos que assumem ao exercerem a prática docente, orientados a respeitarem a pluralidade do legado filosófico que, por sua própria história, fornece as ferramentas para uma interpretação criteriosa da nossa realidade.

Questionar a Filosofia é legítimo. Quando uma sociedade se opõe a ela, temos que nos preocupar com as várias questões já mencionadas acima e com outras talvez mais importantes para uma interpretação crítica de tal posição: que projeto de sociedade está sendo defendido? Há boas razões para negar aos indivíduos uma parte da história que explica o mundo em que vivem? Há boas razões para impedir que se apropriem dos meios reflexivos que os capacitem a defender ou criticar ideias? Que os ajudem a compreender melhor a si próprios, suas experiências e seus objetivos? Há boas razões para privá-los de uma abertura ao conhecimento capaz de enriquecer sua vida em sociedade, aprimorando as relações que estabelecem com os outros? E, sobretudo, há boas razões para defender um projeto de formação humana que não considera o potencial dos indivíduos para criar e pensar em futuro melhor?

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(1) Doutora em Filosofia e em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina com doutorado sanduíche na J. W. Goethe Universität (Alemanha), pós-doutorado pela University College Dublin (Irlanda) e professora de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.