A Produção Educacional na Área de Filosofia
Felipe Pinto
PPFEN-CEFET/RJ
Taís Pereira
Professora vinculada ao Programa de Pós-graduação em Ensino de Filosofia do CEFET-RJ e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UNIRIO).
08/10/2021 • Coluna ANPOF
A ideia de produto educacional, já consolidada, por exemplo, na área de Ensino, parece atrair ainda pouca atenção dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia. Os livros didáticos recebem, é verdade, atenção de pesquisadores e pesquisadoras em estudos, discussões e proposições de natureza filosófica reconhecida pela área, sobretudo com a entrada da disciplina de Filosofia no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No entanto, além de vivenciarmos hoje um momento delicado na trajetória do PNLD, o livro didático está longe de ser a única forma que pode tomar a produção classificada como material didático – como atestam as diferentes experiências docentes na educação básica, sobretudo –, assim como tampouco o material didático é a única forma disso que chamamos produto educacional.
Ao longo dos últimos cinco anos de funcionamento, os mestrados profissionais em filosofia vêm se debruçando sobre a pesquisa, produção e avaliação de objetos e processos no âmbito do ensino que poderiam contribuir para as ações futuras dos Programas de Pós-graduação da área. Decerto, as reflexões empreendidas apontam para importância de um tratamento filosófico sobre os produtos educacionais. Neste sentido cabe a questão: deve a elaboração e a discussão sobre produtos educacionais ficar restrita aos cursos profissionais? Ou melhor seria que a área buscasse tornar o produto educacional uma questão premente também para os cursos acadêmicos? Como fazer isso ou aquilo? Um caminho que se mostra oportuno é atentar para outra novidade com a qual a área tem se confrontado, embora ainda de forma acanhada e pouco organizada: a classificação e avaliação da Produção Técnica-Tecnológica (PTT).
Em 2018 foi criado um Grupo de Trabalho na Capes com a finalidade de elaborar proposta de classificação da PTT a partir dos resultados alcançados pelo GT 06 CAPES (2015/2016), que compilou 62 tipos de produção técnica de acordo com 4 eixos: produtos e processos; formação; divulgação da produção; e, por fim, serviços técnicos. Em 2019, o GT de Produção Técnica elaborou relatório em que elenca 21 tipos de PTT. Seguindo recomendação do relatório, cada área selecionou até 10 tipos de produto que seriam relevantes para a avaliação da produção dos programas. A área de Filosofia enumerou como relevantes os seguintes tipos: 1. Material didático; 2. Curso de formação profissional; 3. Evento organizado; 4. Produto bibliográfico (apenas para os PPGs que oferecem cursos de mestrado profissional); 5. Produto de editoração; 6. Produto de comunicação; 7. Acervo; 8. Produto de editoração; 9. Tecnologia social; 10. Tradução.
Ainda que já exista uma plataforma da Capes para publicização de objetos educacionais (eduCAPES) e que estejam disponíveis campos para registro de PTT na Plataforma Lattes (CNPq), esse tipo de produção ainda é pouco valorizado na avaliação de PPGs da área de Filosofia, assim como em concursos e processos seletivos. Por contemplar estratégias e resultados de processos de pesquisa para o ensino de filosofia e a divulgação filosófica, a ideia de produto educacional pode orientar a maneira como a área virá a se organizar com relação à produção e avaliação de PTT, não apenas como material didático, mas também nos demais tipos indicados acima.
Mesmo reconhecendo as críticas ao que seria um excesso de normatização destinada à avaliação e estratificação, sobretudo quando alinhadas a imperativos de produtividade em descompasso com as condições de trabalho e pesquisa, é por essas normas avaliativas que se orientam, em larga medida PPGs e pesquisadores. Trata-se, então, de um ponto estratégico de indução para incrementar a qualidade e a quantidade da PTT na área de Filosofia, diversificando assim a produção educacional e as trocas entre a Pós-Graduação e a Educação Básica, para além dos cursos de mestrado profissional. Nesse sentido, novamente, a ideia de produto educacional, embora não se confunda com a de PTT, pode orientar e movimentar o debate em torno de como a área se preparará para debater, promover e avaliar esse tipo de produção.
Há ainda outro elemento que compõe o contexto esse em que o produto educacional aparece como uma necessidade e oportunidade para a área de Filosofia: o já citado momento delicado por que passa o PNLD. O caminho imposto para a formação filosófica na Educação Básica pela lei 13.145/17 e seus efeitos já visíveis na nova edição do PNLD Ensino Médio é de retrocesso. Com edital atrelado a uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) cuja homologação foi marcada pela ruptura com relação ao processo pelo qual vinham sendo elaboradas as versões anteriores da base, e que contava com representantes dos componentes curriculares reconhecidos pelas respectivas comunidades científicas dispostos a dialogar e acolher as críticas apresentadas por meio de consulta pública, o atual PNLD impõe nova ruptura à produção educacional ao dispor os livros didáticos por grandes áreas. O programa faz, assim, desaparecer o livro didático de filosofia do seu quadro de volumes, oferecendo às escolas, professores e estudantes livros didáticos de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas nos quais os objetos e procedimentos do fazer filosófico encontram-se diluídos nas obras e dissociados de uma concepção refletida e justificada a respeito do ensino de filosofia e das práticas filosóficas.
Neste contexto, parece-nos necessário e oportuno que a comunidade de professores e pesquisadores da nossa área envide esforços para contribuir com estratégias e produtos educacionais na e para a educação básica, avaliando e discutindo publicamente, nos espaços acadêmicos (eventos, revistas, currículos), as experiências e processos educacionais comprometidos com uma ideia de formação filosófica.
De que modo isso pode acontecer? Estimulando que pesquisadores da área, no âmbito dos PPGs, produzam não apenas artigos e livros que ficarão restritos a especialistas, cuja importância não está aqui em questão, mas também objetos (textos, estratégias e sequências didáticas, jogos, percursos, produtos audiovisuais, oficinas) destinados a qualificar, complexificar e contribuir com os estudos e práticas filosóficas que a área entende ser imprescindíveis para a formação humana. Também encorajando que essas contribuições aflorem do diálogo e da articulação entre os sujeitos envolvidos nas pesquisas realizadas no âmbito da Pós-Graduação, na atuação docente e nas ações de formação docente inicial e continuada da área.
Uma segunda finalidade que os PPGs de Filosofia e futuras coordenações de área podem tomar como prioritária, além da finalidade didática no âmbito da educação básica de que vínhamos falando, é a disseminação do conhecimento produzido pela academia. Trata-se não apenas de divulgar as pesquisas para que se saiba que e como foram realizadas, mas, especialmente, propagar o exercício filosófico do diálogo, da reflexão franca e do exame crítico de pressupostos para uma sociedade plural cujos grupos são frequentemente assediados pelo dogmatismo irrefletido, pela terceirização do pensamento e pelas promessas de liberdade e felicidade. Esse caminho ao qual exortamos implicaria um esforço de comunicação com as pessoas e grupos que não compõem o estrito círculo de especialistas, filósofas e filósofos dedicados à minuciosa pesquisa de autores e temas, um esforço por ocupar o mundo com objetos e procedimentos filosóficos, além, claro, de cuidar das questões, espantos e frustrações emergentes desse esforço.
No âmbito das ciências da natureza e das matemáticas, há vasta literatura e discussão constante a respeito das formas de comunicação do conhecimento científico, compreendidas em torno de noções que guardam diferenças mais ou menos sutis como “divulgação científica”, “alfabetização científica” e “letramento científico”, expressões que traduzem, sob diferentes perspectivas, a noção de “scientific literacy”. Na área de Filosofia, as discussões nesse sentido ainda parecem tímidas, assim como o envolvimento de pesquisadores/as da área na elaboração de produtos de comunicação extrapares e na reflexão sobre esse tipo de produção.
A valorização dos produtos educacionais de filosofia pelos PPGs da área no país traz para o terreno da discussão acadêmica filosófica essas duas urgências de nosso tempo, reforçando o impacto social das pesquisas, reconhecendo e qualificando as atividades profissionais, como a pesquisa e a produção desenvolvidas na atuação docente, e consolidando o sentido da PTT no cruzamento na área de Filosofia e de seu ensino. Apostamos que por essas vias a área será mais capaz de induzir cursos de Pós-Graduação que não limitem sua produção aos castelos pouco habitados da razão universitária e tampouco a subjuguem ao gosto insensível dos consumidores, dedicando-se à formação de públicos filosofantes e à popularização das filosofias.
Contemplando as duas dimensões, didática e divulgação, a ideia de produto educacional esboça uma unidade para os múltiplos trabalhos de PTT que vêm sendo realizados nos PPGs da área nas formas, por exemplo, de produção de podcasts, vídeos, cursos, eventos, oficinas, páginas, acervos, perfis e campanhas em redes sociais. Nesse sentido tem atuado também a Anpof, seja criando e estimulando, seja reunindo e divulgando essa produção. Com o conceito de produto educacional buscamos, assim, ampliar os espaços e processos que promovam o exame, o debate e a popularização dessa produção. A considerar que o ofício de qualquer professor é elaborar percursos, objetos, processos, estratégias e exercícios, em suma, produtos educacionais, as práticas refletidas na educação básica constituem uma experiência riquíssima para construirmos este caminho em aberto, não sob o signo da subalternidade, mas enquanto parceiros de uma causa em comum.