Especial Anpof 40 anos: Quem tem medo da inclusão social?

Juliana Aggio

Professora de Filosofia da UFBA

20/07/2023 • Coluna ANPOF

Neste ano, a Anpof está comemorando seus 40 anos de existência. Nada melhor do que este momento para nos repensarmos e nos reinventarmos como uma comunidade acadêmica mais ampla, diversa e radicalmente democrática para os próximos 40 anos. Na prática, isso implica que encontremos mecanismos para efetivar a inclusão social em nossa área. Que eu possa, daqui 40 anos, no crepúsculo de minha jornada, olhar para trás e dizer: sim, a luta valeu a pena!

Primeiramente, gostaria de mostrar que ainda não há uma efetiva inclusão social, embora estejamos avançando lentamente, e, em segundo lugar, que tal inclusão pressupõe uma abertura da filosofia enquanto instituição à diversidade de discentes e, sobretudo, de docentes, bem como uma revisão de nós mesmos como pesquisadores e docentes comprometidos com o combate às exclusões e desigualdades violentamente presentes em nossa área.

Não é preciso fazer muito esforço para perceber a olho nu que a filosofia tem cor, gênero e classe. Se, na graduação, por conta das cotas, a diversidade é maior, embora ainda muito aquém do que deveria ser, ela vai se apagando na pós-graduação e quase desaparece no corpo docente. Um corpo, vale ressaltar, quase inteiramente branco, majoritariamente masculino e da classe média/alta. 

Em 2019, a filósofa Carolina Araújo mostrou em seu texto “Quatorze anos de desigualdade: Mulheres na carreira acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017” que “a proporção de docentes permanentes do sexo feminino em PPGs de Filosofia tem média de 20,14% ao longo dos 14 anos” e que, ao fim e ao cabo, temos 2,3 menos chance de nos tornamos docentes do que os homens, ou seja, “os homens tiveram ao longo dos 14 anos mais do que o dobro da oportunidade das mulheres”. Quatro anos depois (2023), a pesquisa “Como anda a inclusão de mulheres na ciência brasileira?”, de Márcia Cândido, mostra que, de 2017 a 2020, absolutamente nada mudou. Nesta constata-se que as mulheres docentes das pós-graduações em Filosofia continuam perfazendo o contingente de apenas 20%. Ao somar o resultado de ambas as pesquisas, podemos concluir que, ao todo, estamos falando de dezoito anos de desigualdade. Somos uma área tão masculina e masculinista que, como mostra a pesquisa, perdemos até para Engenharia de Minas e Engenharia Nuclear, cuja porcentagem de docentes mulheres é, respectivamente, 32% e 33%. Tal desigualdade não é, no entanto, uma prerrogativa brasileira. Basta ver o texto de Sally Haslanger  “Mulheres na Filosofia? Faça as contas” (Women in Philosophy? Do the Math) (2013), em que ela revela que as docentes mulheres dos 51 principais programas de pós-graduação dos EUA contabilizam 21,9%. 

É fato notório que as mulheres, sobretudo quando se declaram feministas, parecem encontrar ainda mais dificuldades de se inserirem como professoras universitárias, especificamente nos departamentos de filosofia. Cito aqui um relato de Judith Butler, em seu texto “Pode o Outro da filosofia falar?” (2022): “Drucilla Cornell, Seyla Benhabib, Nancy Fraser, Linda Nicholson, Iris Marion Young, eram todas orientandas de acadêmicos como Alasdair MacIntyre, Peter Caws e Jürgen Habermas. Em um momento ou outro nos últimos dez anos, elas, assim como eu, passaram a não mais compor departamentos de filosofia”. Acrescenta-se, aqui, a filósofa estadunidense, Angela Davis, que fez seu doutorado em filosofia sob orientação de Herbert Marcuse, mas deixou de ser professora de filosofia e se tornou professora de história. Ou seja, é alarmante constatar que tais filósofas não se tornaram professoras em departamentos de filosofia. Mesmo Hannah Arendt e Simone de Beauvoir, filósofas hoje internacionalmente reconhecidas, deram aulas de filosofia sem ocupar cargos na Universidade nesta área: a primeira pertencia ao departamento de Ciência Política e a segunda ao Liceu. Por outro lado, é curioso que ambas não se autodenominavam filósofas: Arendt se dizia cientista política e Beauvoir não se identificava como “filósofa” no sentido estrito acadêmico. Surge, inevitavelmente, uma constatação alarmante de que a filosofia acadêmica não admitia e continua resistindo a admitir em seu interior institucional mulheres filósofas, além de mistificar o status de filósofo a ponto de fazer com que essas duas grandes pensadoras não se identifiquem como filósofas. Do mesmo modo, Edith Stein não pôde se tornar professora universitária de filosofia, apesar dos elogios de seu orientador, Edmund Husserl, que lhe disse que seria favorável a recomendá-la ao cargo “se a carreira acadêmica fosse aberta às senhoras”* (Lettre de recommandation du 6 février 1919, in: E. Stein, Correspondance I (note 3), p. 204). Stein, hoje reconhecida por seu trabalho, foi reprovada duas vezes quando postulou ao cargo de docente e só encontrou lugar para o ensino na Igreja Católica, ou seja, a Igreja Católica foi, na época e mesmo durante a Idade Média, mais aberta à inclusão de mulheres filósofas do que a própria Universidade até meados do século XX! Passado um século desde que a Universidade começou a admitir docentes mulheres na Filosofia, ainda são vergonhosos os números que atestam nossa presença. No Brasil, temos o caso notório de Sueli Carneiro, que, apesar de sua verve filosófica já bastante reconhecida, sequer conseguiu fazer seu doutorado na área. 

Graças às pesquisas sobre desigualdade de gênero e aos relatos de mulheres filósofas, hoje a exclusão das mulheres já têm alguma representação estatística e certa visibilidade política. No entanto, é preciso ir além e avançarmos urgentemente nas análises de outros marcadores de exclusão social. Infelizmente, o único dado que temos sobre a exclusão de pessoas negras e indígenas na filosofia é o de que não há dados, o que é significativo para se questionar a naturalização do ambiente da filosofia como sendo (quase) exclusivamente branco e masculino e (quase) inteiramente reservado para a formação de pessoas da mesma cor e do mesmo gênero para as quais a universidade abre de bom grado suas portas nos concursos para docentes.

Ora, quando a filosofia exclui tais grupos socialmente vulneráveis, a pergunta que logo vem à mente de quem possui alguma sensibilidade social e senso de justiça é: por que a filosofia está, até hoje, tão atrás de todos os outros departamentos de ciências humanas no que se refere à diversidade de seu corpo discente e docente? Certamente, a culpa não é a dos excluídos, como frequentemente se procura afirmar e ainda encontrar bases conceituais filosóficas como justificativa. A resposta não é simples, mas certamente há algo de errado ou de muito errado com a filosofia. É a pergunta de Linda Alcoff em seu artigo “Qual o problema com a Filosofia?” (What's wrong with Philosophy?) (2013). Alcoff ironicamente expõe motivos possíveis: “Alguns sugerem que é o estilo de debate ‘áspero e turbulento’ da filosofia que afastou as mulheres e os homens não brancos. Implicação lógica: talvez simplesmente não sejamos talhados para um campo tão exigente”. 

Ora, sabemos que o problema não é o debate em si, mas tudo que envolve o debate. Se a exposição oral argumentativa é um dos principais critérios para se medir a excelência filosófica na academia, como se poderia bem argumentar se o debate ocorre em um ambiente hostil por diversos motivos. Como uma mulher pode se sentir segura e confiante a debater num ambiente extremamente assediador, moral e sexualmente? Diz Alcoff: as mulheres “podem ficar desconcertadas com a ideia de que o elogio intelectual de seu professor é estrategicamente motivado, realizado com outra intenção que não a verdade. Isso pode abalar sua confiança e, certamente, inviabilizar o debate. O que pode, é claro, ser bastante intencional”.

Pois bem, são diversas as razões que expelem mulheres e homens não brancos da filosofia, Alcoff sublinhou apenas algumas; certamente há mais, como procurei mostrar no texto “Qual voz ousaria filosofar?” (2021). O ponto, todavia, é saber como mudamos esse quadro de modo a fazer valer a tão desejada indissociabilidade entre excelência e inclusão social. Da graduação à docência o abismo aumenta, a tesoura aprofunda o corte e a porta de entrada na Universidade se estreita. A diversidade na graduação se inicia por imposição da lei das cotas. A área foi obrigada a ceder a essa reparação histórica. Já a porta para entrar na pós-graduação é mais estreita, como se ela não devesse ser também um lugar de reparação histórica e como se a excelência nesse nível não pudesse suportar a inclusão social. Vale notar que há programas de pós-graduação com nota máxima há anos sem ter ainda adotado política de cotas. O que só é possível porque, dentre outros fatores, na avaliação da Capes, o item “políticas afirmativas” equivale a míseros 2% da nota final do programa, ou seja, pouco afeta a obtenção da nota máxima. 

Se na graduação e, em alguns programas de pós-graduação, a lei faz valer a inclusão social, o mesmo deveria ocorrer na docência. Apesar de o edital prever a aplicação de cotas, ela só pode se efetivar se houver mais de três vagas, o que nunca ocorre na filosofia. Basta olharmos para quem somos que é fácil descobrir a resposta sobre a falta de diversidade do corpo docente: por um lado, a não aplicação de cotas, por outro, impera a lógica dos bastidores e de critérios não explícitos no edital que enfraquecem o espírito público de respeito à isonomia, transparência e impessoalidade nos concursos para docentes. 

Ora, ao que indica nossa história de mais de 40 anos, a inclusão não ocorrerá, certamente, por uma capacidade de nossa comunidade de se rever de modo a adquirir senso de justiça social espontaneamente ou de bom grado. Ou bem justificamos que excelência e inclusão são incompatíveis e que a diversidade não ocorre por falta de competência dos excluídos, ou apostamos que ainda é preciso democratizar radicalmente a universidade a fim de permitir a diversidade em seu corpo discente e docente. Entre a meritocracia liberal e a democracia radical, a escolha não parece ser difícil. Agora, um processo efetivo de democratização não ocorrerá apenas com a atuação em conjunto de coletivos e redes paralelas ao mundo institucional, mas, sobretudo, por meio da aplicação de cotas e de critérios mais objetivos e impessoais de avaliação nas seleções de pós e concurso docente, além de mudanças estruturais no ambiente de formação em filosofia. 

Diante do mapeamento de nossa área, ainda hoje ressoa a mesma pergunta: quem tem medo da inclusão social? Será que o medo de incluir os corpos excluídos tem como pano de fundo não apenas o medo de perder privilégios, mas, sobretudo, o medo da possibilidade de se reinventar a filosofia? Se não é possível refazer os 40 anos de exclusão social na filosofia, cabe a nós a tarefa de não repeti-los nos próximos 40 anos.

* Todas as traduções são minhas.

DO MESMO AUTOR

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