40 anos da Anpof - um balanço

Vinicius Berlendis de Figueiredo

Professor do Departamento de FIlosofia da UFPR e ex-presidente da Anpof

27/07/2023 • Coluna ANPOF

A ANPOF celebra quarenta anos, numa trajetória inseparável da pós-graduação em filosofia no Brasil. Primeiro, porque sua criação foi iniciativa de professores que circulavam pelos nove programas existentes em 1983 (cinco no Sudeste, três no Sul, um no Nordeste). Segundo, porque a ANPOF não apenas refletiu o crescimento por que passou a pós-graduação em filosofia, como teve papel importante nesse processo. Eis alguns dados, para dar ideia da coisa. 

O primeiro programa credenciado pela CAPES foi o da USP em 1971. Até 1999, havia dezessete programas credenciados (nove no Sudeste; quatro no Sul; dois no Nordeste e dois no Centro-Oeste). O número quase dobra entre 2000 e 2010, com quinze novos programas (seis no Sudeste, seis no Sul e três no Nordeste). De 2011 até 2022, mais vinte programas, sete no Nordeste, seis no Sudeste, três no Sul, dois no Norte e dois no Centro-Oeste. 

Exerci a presidência da ANPOF em 2011- 2012, quando o total de programas era pouco mais de trinta. Alguns de meus professores figuravam entre os fundadores; há colegas na atual diretoria da geração de ex-alunos meus que lecionam no ensino superior. Situar-se no meio nem sempre é confortável, mas traz certa lucidez para balanços, além de ajudar a contornar certos mitos.

O primeiro deles é que a parceria entre os programas mais antigos e os subsequentes, reiterada a cada encontro da ANPOF, teria promovido a difusão, em escala nacional, da leitura estrutural dos textos filosóficos, o método dos franceses M. Guéroult e V. Goldschmidt.

Sem dúvida, os primeiros programas foram essenciais para o crescimento da pós-graduação, pois formaram os quadros que possibilitaram abrir outros programas. Seria oportuno contabilizar esse efeito multiplicador sobre a malha que hoje cobre o país. Aqui basta um dado. Entre 2010 e 2020 (quase ontem), foram credenciados vinte cursos de doutorado em nossa área. Em sua abertura, contaram com doutores formados em outros cursos, a maioria deles nos quatorze programas de doutorado credenciados entre 1971 e 2009. 

Essa expansão a partir de um núcleo inicial centralizado conferiu aos primeiros programas ascendência intelectual e institucional sobre os demais, pois a maior parte dos novos quadros se formaram neles. No entanto, para que essa ascendência agisse numa direção metodológica específica (no caso, o estruturalismo), os professores dos programas mais antigos teriam de ser invariavelmente adeptos dela. Quem consultar publicações dos mais antigos entre a geração fundadora da ANPOF – eis algumas, como ilustração: Melancolia - os ensaios sobre a finitude no pensamento ocidental (1976), de Ernildo Stein; Trabalho e Reflexão (1983), de José A. Giannotti; Figuras do Estado moderno (1985), de João Carlos Brum Torres; os artigos de Guido de Almeida sobre o nexo entre kantismo e pragmatismo, ou a produção de José Henrique Santos, tributária do método histórico-sistemático alemão, mas abrigando também um veio ensaístico – vê que nenhum deles seria aprovado na disciplina de Estruturalismo I. 

A história de que “era uma vez, todos eram estruturalistas devotos da autonomia do texto...” não vale nem mesmo para a USP dos anos 60 e 70, à exceção de Oswaldo Porchat. A ênfase na “leitura interna” das obras jamais impediu que se indagasse pelo presente. Giannotti não fez o seminário sobre O Capital (1958-1963) com alunos dedicados à monografias sobre Marx, mas com sociólogos, economistas e historiadores interessados em pensar o Brasil. Bento Prado Jr., nos escritos sobre Bergson ou Rousseau, acertava contas com a filosofia contemporânea francesa, sem esquecer seu Drummond. Assim também os professores da missão francesa. Em que, exatamente, Gilles-Gaston Granger, insistindo sobre a dimensão estilística da ciência, ou a tese de Gérard Lebrun sobre o significado da Reflexão kantiana a partir da redefinição do ser vivo pela biologia nascente seriam “estruturalistas”? Quanto aos alunos que se tornariam professores, como ignorar a inquietação mundana (um topos espinosista) de Marilena Chauí, que, triangulonado Lefort, Castoriadis e La Boétie, pensou a ideologia e os novos movimentos sociais nos anos 1980? Os intérpretes de Rousseau como Luiz Salinas Fortes ou Milton Meira iriam buscar na tradição política elementos para cogitar os limites da representação parlamentar e os desafios do processo constituinte de 1988. Assim como Ricardo Terra, que, numa linha tributária a Kant, mobilizou Habermas para refletir, no plano dos conceitos filosófico-jurídicos, impasses da redemocratização. 

Se jamais existiu pensamento único estruturalista, a criação da ANPOF foi marcada, sim, pelo esforço de assegurar que a expansão da filosofia universitária seguisse parâmetros de qualidade acadêmica em ruptura com o bacharelismo e o clericalismo. Mas a ênfase sobre a leitura atenta, buscando identificar, quer as articulações internas da obra, quer a recorrência de certas questões em filósofos diferentes, propiciou interpretações autorais sobre o conhecimento, a verdade, o político e a história. A leitura rigorosa condicionou o bom debate. A consolidação de um léxico filosófico por meio de traduções cuidadas e da produção sistemática de monografias também integrava esse ideário. Se não me engano, era assim que enxergavam a coisa os professores da geração que criou a ANPOF e/ou daqueles que foram responsáveis por sua consolidação. 

Essa expectativa em torno do debate filosófico brasileiro foi realizada? Sem dúvida. Basta visitar os Grupos de Trabalho da associação, em funcionamento desde 1999, para constatá-lo. Mas, embora os GTs sejam espaços de interlocução relevantes para a pesquisa em filosofia, trata-se no geral de conversa interna, que, mesmo chegando a resultados originais, permanece discussão entre especialistas. 

O fenômeno não afeta apenas a filosofia, mas todas as áreas do saber. Mundo afora, a pós-graduação possui pesquisadores hiper qualificados que transitam pouco fora de sua especialidade. No caso do químico, do biólogo ou do cientista político, a especialização entrega o que promete. Na filosofia, concebida como discurso apto a falar de tudo sob um ângulo “crítico”, a especialização inflete em crise: “para que, afinal, serve o que faço?” 

A má consciência não é boa companhia na hora cogitar os efeitos do conhecimento na economia, na cultura e na educação, especialmente no caso de disciplinas reflexivas, como a filosofia. Mas, sejam quais forem as alternativas para lidar com o encapsulamento dos filósofos em seu nicho, a solução não virá de uma normativa acerca dos novos temas ou epistemologias a pautar nosso trabalho. Não que sejam irrelevantes. Mas o debate que admitem, se for para valer, exigirá literatura especializada e formação específica, de modo que trocamos seis por meia dúzia, sem resolver o problema da perda de densidade pública da filosofia e da evasão em nossos cursos. Debater como a pós-graduação realiza seu alcance social requer atentar para as políticas públicas da área, não para a bibliografia dos cursos.

Diferentemente do CNPq, que financia pesquisadores individuais, a CAPES induz os programas a ter esse ou aquele perfil. Das bolsas de estudo à internacionalização, passando pelos acordos regionais, qualificação do corpo docente e extensão, os programas são concernidos pela CAPES em quase tudo. Cada área de conhecimento possui uma coordenação na agência, incumbida de adaptar a suas especificidades as diretrizes gerais, enunciadas pelo Conselho Técnico Científico conforme o Sistema Nacional de Pós-Graduação. Essa adequação do geral ao específico é feita no diálogo da coordenação com os programas. Daí por que o monitoramento crítico da coordenação da área pela ANPOF seja decisivo, quando o assunto é saber como tornar os programas mais inclusivos, suas pesquisas e seus discentes mais qualificados etc. É preciso ler atentamente a ficha de avaliação. 

No início da ANPOF, o número diminuto de programas fez com que a relação com a coordenação de área na CAPES fosse pautada por certa informalidade. Com o crescimento da pós-graduação, surgiram diferenças entre programas, entre eles e a coordenação de área etc. A Avaliação de Livros (que remonta a 2004 no CTC), por exemplo, resultou de pleito comum do colégio de humanidades. Para que medidas assim estejam sintonizadas com os programas, é fundamental que a ANPOF se posicione de forma pública diante dos parâmetros avaliativos adotados por nossa coordenação. 

A interação entre iniciativas da filosófica universitária e a CAPES mediada pela ANPOF produziu bons resultados. Exemplo disso foi a criação do PROF-FILO, voltado para professores do ensino médio, o que contribuiu para enfrentar nosso encapsulamento na academia. O estopim foi a criação da ANPOF do Ensino Médio (atualmente, ANPOF do Ensino Básico) no Encontro Nacional de 2012, em Curitiba. Foi ali que se abriu o caminho para que fosse criado o PROF-FILO (2017). A cultura acadêmica de viés especializado catalisada pela ANPOF também beneficiou o PNLD. Os títulos em filosofia indicados pelo MEC a partir de 2012 contaram com autoria daqueles que atuam como membros em diversos GTs da ANPOF. O recrutamento de especialistas pelas equipes de avaliação também ganhou com isso, dando à presença da filosofia no PNLD o nível das áreas consolidadas.

A maior conquista desses quarenta anos, porém, arrisca passar despercebida. Foi a cultura acadêmica difundida entre os programas reunidos na ANPOF, com sua exigência de leitura e argumentação, o que evitou que o recente tsunami de retrocessos político-culturais (com recorrentes ataques à ciência) não contaminasse de morte a filosofia universitária brasileira. Recorde-se que o vale tudo discursivo da extrema-direita foi capitaneado, na esfera ideológica, por alguém que se apresentava como “autêntico filósofo”, adversário da academia e do cânone. Bastará abrir os textos do dito cujo para ver como as ideias se amontoam e se descolam sem constrangimento algum, como tudo vai junto e misturado, bem ao modo do narrador das Memórias póstumas de Brás Cubas. Se não perdermos de vista nossa diferença de método com essa e outras variantes do proselitismo contemporâneo, levaremos adiante o espírito que motivou a criação da ANPOF.

DO MESMO AUTOR

Meditações desocupadas sobre ocupações por toda parte

Vinicius Berlendis de Figueiredo

Professor do Departamento de FIlosofia da UFPR e ex-presidente da Anpof

10/11/2016 • Coluna ANPOF