8M entre Filosofia e Psicanálise: Sobre o preceito da suspeita
Léa Silveira
Professora de Filosofia na Universidade Federal de Lavras
28/05/2024 • Coluna ANPOF
Quando Simone de Beauvoir escolhe uma frase de Poulain de la Barre como uma das epígrafes de uma das obras mais fundamentais do pensamento feminista, ela destaca um aspecto profundo e pervasivo da tarefa que então se impõe. Pois a ideia de que “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte” pode mesmo ser alçada à condição de preceito metodológico. Ele poderia talvez ser chamado “preceito da suspeita”.
Colocar argumentos sob suspeita, prova ou crítica, não tomar de saída o que se lê (ou o que se diz) como certo ou verdadeiro, podemos assim dizer, é atitude intelectual que caracteriza a própria filosofia, seja em sua história – sempre, ela mesma, filosófica –, seja em suas constantes e necessárias aberturas. Nada é mais contrário à filosofia do que o dogmatismo. Posturas doutrinadoras e proselitistas paralisam o pensamento e produzem estagnação, habitadas por ilusões com consequências deletérias não apenas no campo epistemológico, mas também no político. Na verdade, o avanço na pesquisa filosófica, não é temerário dizer, conduz inevitavelmente a perceber a inexistência de fronteiras nítidas entre epistemologia e política.
Assumir um preceito de suspeita não tem, por isso mesmo, nada que ver com retirar livros de nossas prateleiras. Trata-se do contrário: ler mais, tornar nossos repertórios mais ricos, problematizar mais, incluir em nossos estudos e em nosso ensino autoras e autores que, tendo costurado palavras importantes para o que somos e para o que queremos ser, foram, no entanto, silenciados.
Mas é crucial ficarmos atentas também a autores que não conheceram o gesto do silenciamento.
Estamos acaso dispostas a abrir mão, por exemplo, da lógica silogística, uma vez identificada a misoginia de Aristóteles? De minha parte (este é um texto de opinião), meu interesse residiria antes em, com chiste e tudo, “dominar o órganon” e, então, fazê-lo trabalhar contra Aristóteles, para provar que, de sua metafísica, não se segue a possibilidade de situar fêmeas como inferiores a machos em virtude de escassez de calor. De minha parte, interessa-me também que minhas alunas e alunos tenham a oportunidade de, se assim quiserem, conhecer a fundo a gênese e a complexidade da ideia de democracia para melhor defendê-la e, em qualquer caso, que desenvolvam a capacidade de identificar argumentos válidos e de apontar falácias quando couber.
De minha parte, digo que preciso de Aristóteles para não capitular.
Estamos acaso dispostas a abrir mão da ideia de soberania popular ou da importância da ideia de universalismo para o pensamento político? Estamos acaso dispostas a colocar em risco o horizonte dos direitos humanos? De minha parte, tenho mais interesse em conhecer seus meandros, envergaduras e impasses, sempre de mãos dadas com a pergunta “em que mundo queremos viver?”. Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant sobre a mesa. Mary Wollstonecraft, Angela Davis e Yara Frateschi também.
Refazer caminhos exige também olhar para o que já foi caminhado e muito do que já foi caminhado nos é útil, a nós, mulheres, desde que não percamos de vista um preceito de suspeita.
Tal preceito é igualmente congênito à psicanálise. Aqui ele tem, obviamente, outras camadas de sentido, relacionadas à pulsão e ao fato disso ser, também, pensamento. Uma forma de nos referirmos ao conceito freudiano de inconsciente é afirmar que a distorção se instala entre ser e aparência.
Sem perder isso de vista, cabe afirmar que a diferença sexual pode ser tomada, em diversos aspectos, como o próprio objeto da psicanálise. Isso, por si só, exibe a relevância da psicanálise para o debate feminista, embora só possa ser situado à luz de muitas tensões que incidirão, dentre tantas outras coisas, inclusive sobre o modo de flexão de número gramatical com o qual veiculamos a expressão “diferença sexual”: faria mesmo sentido preservar seu emprego apenas no singular? Mas é curioso e ao mesmo tempo sintomático que a teorização (implicada) desse objeto insista em reproduzir uma sobreposição entre masculinidade e cultura, seja, por exemplo, através da teoria freudiana da cultura ou das teses de Freud sobre a sexualidade feminina, seja por meio da teoria lacaniana da sexuação, que contrapõe um gozo Outro ao gozo fálico, convergindo para a afamada declaração “? mulher não existe”.
Por que, afinal, preservar o laço entre feminino e repúdio? Sigmund Freud e Jacques Lacan sobre a mesa. Ruth Brunswick, Luce Irigaray, Tania Rivera e Alessandra Martins também.
Que a filosofia e a psicanálise incluam a fresta, a abertura, isso não é algo novo, pois, para onde quer que olhemos, o que quer que pensemos ser a filosofia ou a psicanálise, isso está lá. O verme nasce com a fruta. Não perceber isso é ter ficado tristemente incólume ao verme, é ter estudado bastante sem nada saber, é ainda, como o teria dito Freud, ter se defendido dele. O que seria a filosofia sem o campo da disputa argumentativa e sem um preceito de suspeita? Fé? O que seria a psicanálise sem que direcionemos a nós mesmas a pergunta pelo que não se sabe em nosso saber? Paixão da ignorância?
O que é novo, em certo sentido e ao menos para nós, é o espraiamento do espanto, tanto na filosofia quanto na psicanálise, com algo que pode, apesar das problematizações possíveis e necessárias, ser chamado de patriarcado, e da percepção da necessidade de, por um lado, ouvirmos vozes de mulheres – que, aliás, sempre estiveram aí – e, de outro lado, mobilizarmos nosso repertório, tão amplamente construído por homens, contra tal coisa.
Assim, tanto na filosofia quanto na psicanálise, multiplicam-se hoje em nosso país projetos dos mais variados tipos (produções individuais, trabalhos coletivos) que insistem em aberturas, ressignificações, críticas e criações do ponto de vista de mulheres, projetos engajados no ideal de outro mundo possível. Não vou nomear tais projetos – eles felizmente são muitos e vigorosos, sabemos onde encontrá-los, e seria injusto correr em espaço tão curto o risco de uma seleção. Quero mencionar apenas o fato de que linhas de força e de fuga em torno do 8M encontram um lugar privilegiado de cruzamento no GT Filosofia e Psicanálise, pois aqui estamos atentas e atentos à riqueza, relevância e rigor do pensamento filosófico feminista e do pensamento psicanalítico atento ao feminismo. Que saibamos fazer operar o preceito da suspeita e lidar com o fato de também sermos juízas e parte, pois, duplamente advertidas contra armadilhas de totalização, isso atravessa, mesmo quando flertamos com a possibilidade de pensar que não, as tarefas que nos cabem ou que fazemos serem nossas.
Texto publicado originalmente na 9ª edição do Informativo Conexões, produzido pelo GT Filosofia e Psicanálise da Anpof. Acesse aqui.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.