A comunicação como código do esquecimento

Wolfgang Theis

Doutorando em Filosofia pela Universidade de Brasília

17/06/2024 • Coluna ANPOF

A comunicação humana é algo bastante complexo. Ela promove entendimentos e mal-entendidos, fala idiomas que às vezes são incompatíveis entre si, usa o corpo como um meio para alcançar um fim. Ela também empacotada em sistemas de códigos, e influenciada culturalmente entre tantos outros aspectos. Se analisarmos isso com mais atenção, é questionável o porquê das pessoas se comunicarem. Não seria mais fácil se isolar e simplesmente deixar a comunicação de lado?

Vilem Flusser afirma que a comunicação é um artifício contra a solidão da morte e que é um processo que vai contra a tendência geral da natureza à entropia (Flusser, 2007). Essas afirmações merecem uma análise mais detalhada.

As pessoas nascem sozinhas e morrem sozinhas. Esses são atos individuais, mas entre eles geralmente há um período em que o indivíduo deve, pelo menos parcialmente, entrar em contato com outras pessoas, mesmo que não queira. Como o indivíduo está integrado a uma comunidade e à administração do Estado, até mesmo a pessoa mais isolada precisa se comunicar de vez em quando. Flusser diz que “a comunicação humana é um artifício cujo objetivo é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada à morte” (Flusser, 2007, p. 10). Deveria ser óbvio que toda vida tem um começo e um fim. A morte é um evento inevitável na vida de uma pessoa e é o objetivo final da vida. Entretanto, cabe ao indivíduo dar sentido ao tempo entre o nascimento e a morte. A expressão de Flusser sobre a falta de sentido na citação acima deve ser entendida como o significado de que a vida, na verdade, tem apenas um propósito: morrer. Essa expressão não tem nada a ver com a questão do significado da vida em termos de conteúdo, porque as pessoas certamente querem organizar sua existência de forma significativa, mas a morte parece ser o significado da vida, porque afeta todos os seres vivos igualmente.

O homem é, na verdade, um idiota no sentido original da palavra grega. Ele é uma pessoa privada que vive sozinha em sua própria existência. Entretanto, se ele aprendeu a usar os meios de comunicação, como a linguagem, ele se torna um zoon politikon, porque conseguiu se comunicar com outros idiotas e, assim, combater sua solidão e preencher o vazio da existência. Se Flusser agora afirma que “a idiotice é uma falta de arte” (Flusser, 2007, p. 9), fica mais claro porque a comunicação é vista como um artifício. Ela tira as pessoas de sua privacidade, elas se comunicam com outras pessoas por meio de artifícios e, assim, esquecem que estão inevitavelmente caminhando para um determinado evento certo, a morte. A comunicação é, portanto, um meio de alimentar o esquecimento e fazer com que a vida pareça valer a pena. Isso explica, por enquanto, o sentido da comunicação como um artifício contra a solidão da morte.

A segunda afirmação de Flusser, de que a comunicação é um processo contra a tendência geral da natureza à entropia, ainda não foi abordada. Flusser afirma que a comunicação humana é um processo artificial e não natural (Flusser, 2007, p. 9). Em contraste com os animais, que utilizam um sistema de sinais rígido, os seres humanos desenvolveram um sistema de sinais flexível que permite uma comunicação suave e complexa, modificada em nuances. Esse sistema de sinais desenvolvido nada mais é do que um sistema de códigos que os humanos codificam e decodificam para poder entendê-lo. É criado um mundo codificado no qual as pessoas precisam primeiro se orientar. Elas ficam desorientadas se não entenderem os vários códigos da comunicação e não souberem como usá-los. Embora as letras estejam sendo gradualmente substituídas por números (Flusser, 2008, p. 25), isso não significa que os códigos de letras, ou seja, os idiomas, estejam morrendo. A única coisa que está mudando é a forma como nos comunicamos. L3tr4$ $ã0 sub5t1tu1d4$ p0r num3r0s e, portanto, novos códigos são introduzidos. Entretanto, a codificação não é um processo que ocorre na natureza em si, portanto, a comunicação por meio de códigos é um processo não natural. Como tudo na natureza corre em direção à maior desordem possível, ou seja, o maior grau possível de entropia, a comunicação, que tenta trazer ordem a um sistema codificado por meio de várias regras, é contrária à natureza. Isso também aborda a segunda afirmação de Flusser com relação à comunicação.

Mas o que é comunicação? Basicamente, é a troca ou transferência de diferentes tipos de informações. Isso acontece de forma verbal, não verbal ou até mesmo paraverbal, dependendo da situação e da necessidade. Embora os seres humanos sejam zoon politikon, eles vivem sozinhos. O ser humano é solitário e, como mencionado acima, está condenado à morte certa. Para não estar constantemente ciente de sua existência mortal, ele troca informações com outras pessoas. As novas tecnologias possibilitam que os seres humanos transmitam e troquem informações eletronicamente. Isso tem certas vantagens se pensarmos em termos antropológicos e sociológicos, pois, por meio da comunicação intercultural, as pessoas entram em contato com outros pontos de vista e mundos de pensamento que podem não ser conhecidos ou difundidos em seu ambiente cultural e social imediato. Ao fazer isso, no entanto, as pessoas precisam, na melhor das hipóteses, usar um código linguístico comum, pois, caso contrário, a troca mútua de informações e, portanto, o fluxo de informações, será impossível. Entretanto, os seres humanos têm a capacidade de dominar diferentes sistemas de códigos (até mesmo simultaneamente) e, assim, possibilitar a comunicação. De vez em quando, os humanos se comunicam dessa forma, não apenas por meio de dispositivos de comunicação, mas também com máquinas e aparelhos. Esses últimos (felizmente) ainda não têm sua própria consciência e só se comunicam com os seres humanos por meio de rotinas pré-programadas, mas agora, às vezes, não é mais tão fácil distingui-los dos parceiros de comunicação humana. O progresso técnico não se limita à comunicação humana.

Os seres humanos não estão realmente cientes da artificialidade do processo comunicativo, pois aprenderam ao longo de suas vidas a decifrar os códigos imediatamente e a reagir com códigos criptografados. Os códigos se tornaram uma espécie de segunda natureza (Flusser, 2007, p. 10) e sua antinaturalidade já foi internalizada a tal ponto que parecem naturais para o sujeito humano. As pessoas se adaptam e aprendem rapidamente, porque a solidão em que vivem de fato é insuportável para elas. Ele busca uma maneira de esquecer a solidão e o objetivo final da vida, a morte - e a comunicação é um meio de fazer isso. Por esse motivo, há um verdadeiro boom de auxílios técnicos para essa finalidade, como os mensageiros instantâneos, que permitem a comunicação imediata. Na atual forma dominante de nossa sociedade, uma sociedade telemática na qual o acesso a informações e auxílios técnicos é agora possível quase sem grande esforço, os meios de comunicação foram bastante simplificados pelo progresso tecnológico. Não é mais um problema se comunicar com pessoas (ou até mesmo com máquinas) a longas distâncias como se estivessem frente a frente. Depois que você domina o código de comunicação com a outra pessoa, isso não é mais um problema. As ajudas técnicas agora possibilitam que você não precise mais dominar o código em si. A tradução de um código para outro é feita pela tecnologia e a pessoa fica à mercê do desempenho técnico. Ela perde o controle sobre seu próprio trabalho, seu próprio desempenho de comunicação. Entretanto, as traduções agora são tão sofisticadas que o parceiro de comunicação pode decifrá-las e entendê-las sem maiores problemas. Portanto, a tecnologia também é uma ferramenta que ajuda as pessoas para esquecer.

Se analisarmos tudo isso agora, podemos dizer que o ser humano, que na verdade está se aproximando da morte desde o nascimento, se comunica para esquecer esse estado e preencher seu vazio solitário/existencial?

Para isso, a comunicação é uma ferramenta artificial de um código criado pela própria pessoa solitária para fazer contato com outras pessoas solitárias e que, em uma sociedade telemática, faz uso da tecnologia atual para cumprir o objetivo final de esquecer a sentença de morte proferida na hora do nascimento. O homem precisa de comunicação para justificar sua existência para si mesmo e para esquecer sua solidão condenada à morte.


Bibliografia

Flusser, V. Kommunikologie, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 2007

_______. Kommunikologie weiter denken. Die Bochumer Vorlesungen, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 2008

_______. Absolute Vilem Flusser, herausgegeben von Nils Röller und Silvia Wagnermairer, Freiburg, Orange Press Verlag, 2009


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