A doutrina dos tópicos na Lógica antiga e medieval

Jorge Alberto Molina

Professor da Universidade Estadual de Rio Grande do Sul

05/09/2022 • Coluna ANPOF

Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof

A origem da doutrina dos tópicos se encontra principalmente nos Tópicos e na Retórica de Aristóteles. Esses dois textos correspondem a duas disciplinas diferentes que, porém, Aristóteles considerava estreitamente ligadas: a Dialética e a Retórica. As duas se ocupam de tipos diferentes de argumentos. O silogismo (argumento) dialético parte de premissas prováveis (?νδοχα) e sua conclusão é também provável. O silogismo retórico visa persuadir. São prováveis, segundo Aristóteles, aquelas afirmações aceitas pela maioria das pessoas ou pelas mais sábias ou pela maioria das sábias (Tópicos I, 100b). Dialética e Retórica são disciplinas normativas. As duas pretendem dar parâmetros aos quais os discursos se devem adequar. A Dialética trata de discursos cujos assuntos não estão determinados nem local nem temporalmente, temas gerais tais como se a virtude pode ou não pode ser ensinada, se o sábio é ou não é feliz, se a ciência dos contrários é única ou se há uma ciência para cada contrário. A Retórica lidava com discursos cujos temas se cingem a tempos, pessoas e lugares determinados, questões tais como se Aristides devia ser condenado ao ostracismo ou se para Atenas era conveniente lutar contra Felipe da Macedônia. Outra diferença entre Retórica e Dialética reside em que a primeira se ocupa com as técnicas para obter a persuasão sem considerar se aquilo do que se quer persuadir é verdadeiro ou pelo menos verossímil, ao passo que a segunda almeja a verossimilhança. Finalmente, uma terceira diferença entre Retórica e Dialética reside em que os discursos dos que se ocupa a Retórica são aqueles proferidos por um orador perante uma plateia que ouve e não responde, não interage com ele, ao passo que a Dialética se ocupa das técnicas que devem usar os participantes de um diálogo, em que cada um busca fazer predominar seus pontos de vista. Discurso contínuo de um lado, quebrado do outro.

Nem nos Tópicos nem na Retórica, Aristóteles deu uma definição do que é um topos (τ?πος) ou lugar de argumentação (locus argumentorum no latim). Sua natureza se mostra no uso. Pacius, um comentarista da Renascença, distingue quatro sentidos do termo topos, nos Tópicos de Aristóteles. Primeiro, um topos é um axioma, não restrito a um gênero determinado de objetos, que é usado em qualquer tipo de discussão; segundo, um topos é um axioma, não restrito a um gênero de objetos, mas que é usado em um tipo de discussão determinado; terceiro, um topos é uma diferença entre axiomas, algo que distingue um axioma de outro; quarto um topos é um preceito destinado a nos provir de uma grande quantia de argumentos para defender um ponto de vista. Enquanto comentaristas contemporâneos dos Tópicos e da Retórica de Aristóteles privilegiam um ou até dois desses sentidos e constroem a partir deles a definição de topos, divergindo entre si por privilegiar sentidos diferentes, a posição de Pacius parece mais equânime. Para cada um desses quatros sentidos pode-se encontrar suporte textual nos Tópicos e também na Retórica. Quando se diz que os tópoi são axiomas é no sentido de que eles são aceitos sem exigir prova deles.

Distinguem-se dos axiomas das ciências pelo fato de que não versam sobre um gênero determinado de objetos como é o caso dos axiomas da Geometria. Os tópoi tirariam sua aceitação não de um imperativo da razão senão do fato de ser aceitos pela maioria das pessoas, ou pelas mais sábias ou pelos sábios mais destacados. Por isso, Aristóteles não inclui os princípios lógicos dentro dos tópoi. Correspondem àquele sentido da palavra “ tópos” máximas tais como: o que se predica do gênero se predica da espécie, aquilo cujos contrários se diz em diferentes sentidos é homónimo. Usando esta última máxima podemos concluir que agudo é homónimo. Pois seu contrário é grave, se falarmos de uma voz, e se de uma inteligência o contrário é obtusa. Um topos também pode ser considerado uma axioma que é aceito no marco da discussão de determinados assuntos. Os tópoi (loci) do preferível, apresentados em Tópicos III,1 são desse tipo. Eis aqui alguns deles: o que é mais durável ou mais estável é preferível ao que o é menos, o que é desejável por si mesmo é preferível ao que é desejável por outra coisa que por si mesmo, o que é bom falando absolutamente é preferível ao que é bom somente para tal ou tal pessoa .Esses tópoi são usados ao discutir questões éticas. Usando o segundo desses tópoi podemos concluir que estar em boa saúde é preferível a fazer ginástica, pois fazer ginástica é desejável em razão da saúde ao passo que estar em boa saúde é desejável por si mesmo.   Pacius diz que os tópoi entendidos como axiomas podem ser separados por meio de suas diferenças. Essas diferenças são chamadas também de tópoi.

Um exemplo ajudará a entender isso (Tópicos II, 2). Queremos determinar se é possível fazer dano a um Deus. Os tópoi podem ser usados tanto para refutar um enunciado quanto para prova-lo. Trata-se aqui de refutar o enunciado: um Deus pode ser lesado. Aristóteles formula a seguinte estratégia: substituir pelas suas definições tanto o sujeito (um Deus) quanto o acidente (o predicado poder ser lesado) ou pelo menos um deles e ver depois se ao fazer essas substituições obtemos um enunciado que possa ser aceito. Pois o que se diz de algo, se diz de sua definição e se de uma coisa se predica outra, também se predica a definição desta última. Perguntemos: o que é lesar? Lesar é ferir, ofender, prejudicar. Mas é claro que um Deus não pode ser nem ferido, nem ofendido, nem prejudicado por um mortal. O tópos usado é um que usa a definição, é um tópos a partir da definição. Definição então é uma diferença entre esse tópos e o seguinte que se apoia nos contrários: atribuir a um sujeito um predicado tal que se o enunciado é verdadeiro, esse sujeito deveria possuir dois atributos contrários. Podemos usar este ultimo tópos para refutar a afirmação de que as Ideias estão em nós. Se isso for verdade, as Ideias estariam em movimento porque nós estamos em movimento e além disso, seriam sensíveis porque nós somos seres sensíveis. Mas por outro lado os partidários da teoria das Ideias afirmam que são imóveis e inteligíveis. Assim definição, contrários e outras noções lógicas, são diferenças de tópoi que permitem distinguir uma família de tópoi, por exemplo, aqueles que se baseiam na definição, daqueles outros que se baseiam na noção lógica de contrários (εναντ?α).    

Na transmissão posterior da doutrina dos tópicos a obra de Cícero Os Tópicos, teve uma grande importância.  Ela estava destinada a um jurisconsulto que, aparentemente, queria saber da doutrina dos Tópicos o necessário para realizar seu trabalho.  Por isso os exemplos dados por Cicero são, na maioria dos casos, obtidos da argumentação forense. Cicero divide a Lógica ( ars bene disserendi) em duas partes:  Dialética e Tópica. O que Cícero entende por Dialética é diferente do que Aristóteles entendia por esse nome. A Dialética, para Cícero, é a lógica proposicional estoica. A Tópica é, para ele, a arte de encontrar argumentos para defender uma afirmação que está posta em dúvida como, por exemplo, só o sábio é feliz. Aqui é onde são usados os tópicos.  Cícero os define como lugares de argumentos (sedes argumentorum). Parece que ele pensava que os argumentos estão já colocados prontos nos depósitos de um armazém. Na porta de cada depósito estaria o nome de um tópico que muitas vezes é um conceito lógico: espécie, diferença, contrários, causa, efeitos, antecedentes, consequentes, coisas contraditórias.  Por exemplo, suponhamos que se quer defender a afirmação de que o conhecimento do direito civil é útil. Buscamos a definição de direito civil. Ele é definido como o conhecimento do que corresponde a cada um. Claramente esse conhecimento é útil. Aqui o argumento se apoia no tópos da definição (ex definitione). Outro exemplo: suponhamos que se discute se a uma viúva a quem lhe foi legada a posse de todo o dinheiro que tinha na casa o marido, foi também legado o dinheiro que deviam os devedores do marido.  A resposta é negativa, dado que há grande diferença entre o dinheiro em caixa e aquele que aparece nos livros de contas. O tópico usado é a partir da diferença (ex differentia).  Cícero classifica os tópicos de outra forma que o fez Aristóteles nos Tópicos. Cícero distingue entre os tópicos inerentes à questão de que se trata e aqueles extrínsecos a essa questão. Estes últimos correspondem ao que Aristóteles chamou provas athecnoi (Retórica 1355 , b 55). No caso de Cícero se reduzem as provas que se apoiam nos relatos das testemunhas.  

Boécio escreveu um comentário, In ciceronis Topica, aos Tópicos de Cícero e o texto De differentiis topicis. No seu comentário Boecio se detém em várias questões de Lógica que Cícero expusera de forma superficial nos seus Tópicos, entre elas os indemonstráveis dos estoicos. Em De differentiis topicis, Boécio desenvolve sua própria perspectiva sobre a Tópica.  Os lugares de argumentação são, para Boécio, ferramentas para construir argumentos que fundamentem uma determinada posição sobre uma afirmação colocada em dúvida. Por um lado, Boécio considera os tópicos como proposições de máxima generalidade que não requerem ser provadas, não precisam argumentos que apoiem sua aceitação. Por exemplo: um bem que dura mais tempo vale mais que um bem que dura menos, o que se diz da definição se diz do definido, se é negado o gênero se nega a espécie (uma pedra não é um animal, logo uma pedra não é um felino).  Essas proposições podem ser classificadas segundo o conceito lógico ligado com elas (definição, espécie, género, contrários, etc.). Esses conceitos são as diferenças que permitem dividir em diferentes classes as proposições de máxima generalidade e essas diferenças também são tópicos. Em Boécio encontramos a tendência que se manifestará com mais força nos posteriores autores medievais, em pensar os tópicos a partir da silogística dos Primeiros Analíticos. Um tópico é usado para completar um entimema, entendido como um silogismo incompleto.  

A redução da tópica à silogística se encontra de maneira mais nítida na Introdução à Lógica (século XIII) de Guilherme de Sherwood. Junto com cada argumento que usa um tópico, Guilherme dá o silogismo associado que prova a mesma conclusão, mas de uma forma mais sólida, como se o argumento que usa os tópicos fosse mais fraco que o silogismo associado e pudesse ser reduzido a uma forma silogística. Com essa finalidade, Guilherme teve que expandir a silogística aristotélica aceitando proposições com termos singulares (Sócrates) e indefinidos (um homem).  Por exemplo, a partir da premissa Sócrates é branco, se quer concluir que Sócrates não é negro. Usemos para provar essa conclusão o topos seguinte: aquilo a que inere um dos contrários, não inere o outro. Mas esse argumento usando aquele  topos pode ser reduzido à forma silogística, quarto modo da primeira figura, assim: Nenhum branco é negro; Sócrates é branco; portanto, Sócrates não é negro.  

Os lógicos medievais e renascentistas continuaram se ocupando da Tópica até ela cair em descrédito devido à crítica cartesiana. Uma tardia defesa da Tópica a encontramos na dissertação de Vico, O método dos estudos de nosso tempo de 1708.