A Estética, o Belo e as novas descobertas filosóficas

Jéssica de Farias Mesquita

Doutoranda (Filosofia/UFRGS)

03/04/2023 • Coluna ANPOF

O jornal britânico The Guardian publicou, no dia 29 de novembro de 2022, uma notícia sobre algumas transcrições de textos filosóficos que até então não haviam sido divulgados ao público. A notícia aponta que, recentemente, foram encontrados alguns manuscritos que contêm informações sobre as primeiras aulas ministradas pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Hegel (1770 – 1831) na Universidade de Heidelberg. Hegel ministrou palestras sobre cursos de estética entre os anos de 1818 e 1830, tanto na cidade de Heidelberg quanto na cidade de Berlim. A descoberta desses novos escritos, que correspondem aos primeiros cursos, representa a possibilidade de dar um redirecionamento para a definição de estética no pensamento do filósofo e esclarecer alguns outros pontos que já vêm sendo trabalhados por pesquisadores na área de Filosofia no Brasil e no mundo.  Ao que tudo indica, o pesquisador Klaus Vieweg, professor da Friedrich Schiller University Jena, foi o responsável pelo feito de ter encontrado na arquidiocese de Munique e Freising mais de quatro mil páginas de anotações sobre as aulas do filósofo Hegel. Os escritos estavam guardados em cinco caixas, onde mantinham vários cadernos bem escritos com transcrições de diversas palestras de Hegel que haviam ficado armazenadas por quase dois séculos. Os cadernos nunca foram examinados por pesquisadores e estudiosos, tornando ainda mais instigante refletir sobre os rumos pelos quais as atuais pesquisas sobre o pensamento de Hegel poderão tomar com essa nova descoberta. Vieweg fez a descoberta do século! Ele mesmo chegou a dizer que descobrir esses manuscritos foi comparável a encontrar uma nova partitura de Beethoven - “The discovery of these manuscripts is comparable to finding a new score by Beethoven”. Os escritos sobre as aulas de estética foram feitos por um dos alunos de Hegel chamado Friedrich Wilhelm Carové, da época em que Hegel ainda era professor da Universidade de Heidelberg e onde o mesmo ministrou aulas entre os anos de 1816 e 1818. Os manuscritos nunca foram examinados mais detidamente pelos estudiosos, e sua avaliação, certamente, colocará a pesquisa sobre a origem da teoria estética de Hegel em uma nova base de interpretação. Além da diferença entre arte e religião e dos comentários acerca dos textos de Aristóteles, Sófocles, Shakespeare e Schiller, também aparece nos manuscritos uma das maiores preocupações hegelianas já conhecidas pelos estudiosos de filosofia: a liberdade. Nesses novos textos também aparecem traços da concepção estética que Hegel desenvolve posteriormente. Em uma primeira leitura dos textos, disse Vieweg ao jornal, Hegel define a arte como uma parte intermediária entre o pensamento e a realidade, o que sugere uma função para a arte que é a de encontrar uma harmonia entre a abstração e o real.

Em entrevista ao The Guardian, Vieweg relatou que tanto nas primeiras páginas quanto nas últimas o tema da liberdade, tão caro a Hegel, aparece: “a transcrição termina com uma ênfase no eu, na liberdade individual e sua representação na arte. Mostra que a arte, sem dúvida, contribui para uma ideia que é crítica em nossos dias, a de que a educação leva à liberdade” – “that education leads to freedom”.

O aisthesis em grego, que é basicamente a capacidade de apreender o mundo pelas sensações, tem seu significado amplo, podendo assumir uma forma de perceber o sensível, ou aquilo que nos aparece, como algo que enseja um sentimento a partir dessas percepções. Desde a Antiguidade, a estética tem sua abordagem, sobretudo, no que tange à representação do belo em termos de gosto, embora não seja totalmente independente da lógica e da ética. Para Platão, por exemplo, o belo é o bem, a perfeição, a verdade. Mas foi somente em 1750, com o filósofo Alexander Baumgarten (1714 – 1762), que a estética ganha um sentido de disciplina filosófica que tem a pretensão de apresentar uma área do conhecimento com base na sensibilidade. Esse conhecimento estético que deriva da percepção vem somado com a lógica para dar mais sentido aos elementos que perpassam a nossa sensibilidade e nos chegam até a mente. Essa nova visão acerca do conhecimento, influencia o pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant (1724 – 1804), que também assume a estética (transcendental) através das intuições puras da sensibilidade (espaço e tempo), garantindo as condições de receptibilidade que precisamos para coletar informações por meio de critérios para a produção de conhecimento. No entanto, a estética depende da aplicabilidade de categorias (conceitos puros) que o sujeito impõe à sensibilidade (intuições puras), portanto, tornando-se parte de um conhecer que depende da estrutura cognitiva do sujeito que pensa o mundo. Já o belo no pensamento estético kantiano tem outro sentido que não intenta à construção do conhecimento, mas tem em vista “o livre jogo do entendimento e da imaginação”, ou seja, o belo como resultado da harmonia entre uma forma sensível e uma ideia concebida. É uma forma sensível que, depois de imaginada, pode exprimir uma ideia. Na obra Crítica da faculdade de julgar (1790), Kant apresenta o belo como desinteressado e sem conceito, assim, o “sem conceito” indica que o belo é uma representação que se dá apenas no âmbito subjetivo e não aplicado à representação de um objeto. Grosso modo, em Kant, o que é subjetivo está conectado ao que nos causa prazer ou desprazer, e, portanto, ligado a um sentimento (Gefühl) que não se encontra em uma posição na qual possa determinar o conhecimento. 

Hegel apresenta, em seus Cursos de estética já conhecidos, que embora Kant tenha tentado solucionar essa dicotomia entre abstrato e realidade, ainda assim, este se manteve preso à contraposição entre subjetivo e objetivo. Para Hegel, a solução apresentada por Kant, que transforma essa tentativa de reconciliação em algo subjetivo, não apresenta suficientemente o verdadeiro e o efetivo entre o conceito e a realidade. No entanto, ainda elogia essa tentativa da terceira crítica kantiana de destituir do belo todo o interesse, pois o nosso interesse nos impulsiona para a satisfação da necessidade sensível, como o consumo de alimentos para a manutenção do corpo ou o desejo de possuir algo. Isso faz com que o objeto não seja desejado por ele mesmo, excluindo a sua devida importância, mas, simplesmente, por aquilo que ele contribui quanto à satisfação de nossas necessidades. Kant afasta essa visão do belo e o coloca como uma relação despretensiosa, tornando-se parte de um prazer que apenas aceita o objeto por ele mesmo e, por isso, contendo uma forte conotação moral.

A estética, a filosofia da arte, os conceitos de belo e bom, sugerem uma reflexão sobre o tipo de relação que estabelecemos com o mundo, com a produção artística e com a natureza. E mesmo que a obra de arte se apresente, algumas vezes, como contingente quanto à manifestação de impulsos, desejos, inclinações, cabe a nós atribuir o verdadeiro sentido à arte, ao belo, reelaborando a estética como o ato de liberdade hegeliano. Pois, pensar sobre aquilo que nos “apraz” ou sobre aquilo que gera sentimentos que nos atrai ou repele é, antes de mais nada, pensar sobre que tipo de leis nos conduzem nessa relação com a realidade, partindo do entendimento subjetivo sobre nós mesmos como seres que apreciam o belo, não simplemente como meros espectadores da beleza, mas na tentativa racional de formar um juízo sobre o que, de fato, a beleza nos representa.