A Fenomenologia do Invisível e Religiões de Matriz Africana: Só um Orixá nos poderá Salvar

Arthur de Oliveira Machado

Doutorando em Filosofia (UFSM)

17/10/2023 • Coluna ANPOF

Assim, pois, encontramos na África isso que se tem chamado de ‘estado de inocência’: da unidade do homem com Deus e com a natureza. É o estado da inocência de si. (…) O reino do espírito é entre eles tão pobre e o espírito tão intenso, que uma representação que se lhes inculque basta para instigá-los. (HEGEL, 1999. p., 282–292).

Certamente Hegel é o maior representante da filosofia ocidental na idade da razão. As passagens são claras e facilmente fazem o texto hegeliano ocupar espaço entre os mais miseráveis da história da filosofia ocidental. Mas isso não é exclusividade do pensamento do velho Hegel. O texto é claro em exibir seus pressupostos ontológicos em uma determinação que se repete: da infantilidade, da inocência e do atrofiamento do Espírito, ainda em unidade com a natureza, nessas culturas.

A tese segundo a qual a filosofia do mundo ocidental, e com isso Hegel, se apoia em pressupostos unilaterais é explorada por um pensador da segunda geração da fenomenologia francesa: Michel Henry. O que venho chamando de unilateralidade dos pressupostos é o que ele denomina, n’A Essência da Manifestação, como monismo ontológico. E a filosofia, em sua história no ocidente, praticamente se confunde com essa determinação de pensar. A divisão, a separação, a opacidade, a oposição a si mesmo e o distanciamento são precisamente as condições da fenomenalidade no monismo ontológico (Cf. HENRY, 2015, p. 90). Este último condiciona, sobre estas determinações, aquilo do que se pode conhecer, o que se fenomenaliza e como se constitui um saber legítimo. Esse pensamento unilateral engendra, entre outras consequências, a matematização do real e a exclusão quase completa da esfera afetiva e subjetiva em detrimento de uma objetividade, afasta da realidade dos objetos suas qualidades sensíveis e elimina a sensibilidade, as impressões, as emoções, desejos e paixões, em suma, o que constitui a substância de nossa vida subjetiva. É aqui que assumo o risco das acusações em defesa de uma outra forma de pensar a cultura a partir de seu ponto nodal: a subjetividade.

Questionando essa tradição em suas determinações ontológicas, quero pensar que a herança cultural e religiosa brasileira de matriz iorubá preserva elementos pré-ontológicos que a nossa pobre e vã filosofia ocidental tratou de esquecer ao tematizar sobre o ente que nós mesmo somos. Cultivada por povos que chegam ao Brasil traficados inicialmente do Golfo do Benin e, depois, de toda região da África Centro-Ocidental, a noção iorubá de pessoa, sua concepção de temporalidade, de saúde e de cura e, sobretudo, o conjunto de práticas de culto aos Orixás, carrega elementos fundamentais e verdades originárias alternativas ao modo de pensar característico do mundo greco-romano e cristão. As experiências em primeira pessoa do que permanece aí na cultura religiosa brasileira de matriz africana guardam um privilégio em relação à tradição filosófica do mundo ocidental especificamente iorubá, e para serem plenamente compreendidas e interpretadas de acordo como estatuto próprio da subjetividade, de acordo com sua natureza, “[..] exigem a superação decisiva da problemática hegeliana do fenômeno e da filosofia monista da manifestação em geral” (HENRY, 2015, p. 697). Ao contrário desse saber unilateral, que preserva apenas um modo de fenomenalização, e do qual o pensamento hegeliano é só mais um exemplar, o culto aos Orixás ainda preserva um modo de manifestação verdadeiramente cultural da revelação e celebração da Vida conforme a própria natureza em que essa se manifesta. 

Nessa direção, defendo que nesse saber reside uma noção de cultura frente à barbárie da mortificação da subjetividade promovida pelo pensamento técnico. Me inspiro novamente em Michel Henry, que abre sua obra chamada Barbárie com a tese segundo a qual a nossa época é “[...] caracterizada por um desenvolvimento sem precedentes do saber. Pela primeira vez na história da humanidade, o saber e a cultura divergem, a ponto de se contraporem em um enfrentamento gigantesco — uma luta até a morte, a crer que o triunfo do primeiro acarrete o desaparecimento da segunda” (HENRY, 2012, p. 13). Isso se expressa de modo considerável nos textos hegelianos. É por isso, como nas passagens que abro este texto, que o pensamento não-ocidental é considerado um saber ilegítimo, ingênuo e inocente, imaturo ao Espírito e primitivo.

Para sustentar de modo integral essas teses, entretanto, unicamente a presença da fenomenologia não basta. Na verdade, por razões de espaço, a filosofia hegeliana encontra-se encurtada; pelo mesmo motivo não é reconstruída aqui a crítica fenomenológica à história da filosofia. Contudo, é incontornável aos propósitos deste texto a introdução de algumas concepções ontológicas e antropológicas do pensamento e religião iorubá afrodiaspórica. Obedecendo esses limites de tamanho, introduzo algumas noções indispensáveis.

Nas práticas religiosas assinaladas, na base dos elementos significativos (a palavra, os cantos e os costumes) reside uma apologia à sensibilidade. Mesmo na noção de pessoa, a afetividade ocupa lugar privilegiado na compreensão pré-ontológica, em comparação com a tradição greco-romana. Essa última, por exemplo, tratou de deflacionar a dimensão patética em detrimento da racionalidade. Uma Fábula greco-romana, de autoria do latino Hyginus, transmite uma visão onto-antropológica centrada em três elementos: o Espírito humano — atribuído por Júpiter; o moldador do Corpo — feito pela Cura; e o material orgânico do corpo — com a terra de Gaia. A Fábula da Cura é um exemplo de como o modo de pensar unilateral, que exclui a sensibilidade, encontra-se nas entranhas do pensamento ocidental. A razão e a cura agitam algo extenso, um corpo morto.

Na constituição da antropologia iorubá, o Òrìsà Obàtálá é o responsável por criar o ente que somos como um ente dentre outros, mesmo que o ente que somos esteja posto na dimensão de Àiyé (tudo que pode ser visto, pensado e contado), Obàtálá nos faz a partir de Òrun (é dimensão conjunta e contrária a de Àiyé, a invisibilidade que permite com que Àiyé seja). Porém, Obàtálá que utiliza a matéria de Nanã (barro), a mais antiga Òrìsà, não é capaz de suprir de vida os “bonecos de barro”. É quando Olódùmarê os preenche de Èmí, qualidade imperecível e eterna que permite com que o ente que nós mesmo somos [Àraòrun] passe do reino de Òrun, com a permissão de Òrìsà Àjalá [orixá do destino]. Porém, nessa passagem, agora Àraòrun (o ente que nós mesmo somos) tem de suportar o atributo de ser um “ente que é na vida com destino”, pois passou na casa de Ajalá, “o oleiro que faz cabeça [orí]”. Porém, Àjalá é um péssimo oleiro, e todo [orí] é incompleto, aberto e depende dos nossos projetos e arbítrios, justificando a tensão entre destino e liberdade (característica do ente que nós mesmo somos). Ainda que a cabeça [orí], tenha importância primordial, é pelo sopro de Olódùmarê no coração [Èmi] que fundamenta sermos o que somos. Em resumo, muito diferente da tradição greco-romana, segundo a cultura iorubá, é a divindade de mais alto grau que atribui algo tal como a Vida no momento em que dá a afetividade que anima o corpo. Embora sejamos um ente incompleto por ordenamento de Àjalá, o que fundamenta o eterno futuro que somos é algo tal como uma dimensão afetiva. Em outras palavras, é a afetividade que constitui a subjetividade humana e a abertura ao horizonte de possibilidade.

Assim, os cultos aos Orixás celebram a afecção pura, a experiência do indivíduo em sentir-se a si mesmo no presente imediato, o tambor, os odores, as danças e as canções são estímulos concretos que celebram as impressões sensíveis, as tonalidades afetivas e o encontro de um si-mesmo subjetivo e imediato através do culto a um Orixá. Daí que a própria palavra, que opera de acordo com uma conjuntura de significados (o mundo, em linguagem fenomenológica), precisa ser animada sensivelmente pelo ritmo, expressando o claro entendimento do fundamento do Mundo como Vida. Em outras palavras, como compreende Sàlámì: “[...] para que a fala produza um efeito total, as palavras precisam ser entoadas ritmadamente, porque o movimento precisa de ritmo” (SÀLÁMÌ, 1997, p. 44). Sob o estímulo sensível típico da ritualística, rítmico-sonoro, da visão, paladar e olfato, o que é experimentado, é a si mesmo; o que se venera é aquilo que em si mesmo é experimentado sensivelmente. Os Orixás, e mesmo sua representação relacional com os fenômenos da natureza (coragem, confiança, tristeza, alegria) são afinações afetivas, cultuá-los é recordar que somos afetados por afecções.

Como a Vida nunca deixa de ser um movimento de autoimplicação, o esquecimento dessa dimensão fundamental traz a autodestruição: a barbárie. Ou seja, a barbárie da destruição da vida se deve ao esquecimento das esferas subjetivas que a constituem. Apesar de algum mérito dessa reflexão, devo concluir admitindo que a filosofia é incapaz de realizar qualquer mudança da atual situação. Isso vale não só para a filosofia, mas para a atividade do pensamento humano em geral. 

Agora, somente um Orixá nos pode salvar.


BIBLIOGRAFIA

HEGEL, Georg. Lecciones sobre la Filosofía de La Historia Universal. Madrid: Tecnos Ed.1999. 

HENRY, Michel. A Barbárie. São Paulo: É Realizações. 2012.

______. La esencia de la Manifestación. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2015.

SÀLÁMÌ, Síkírù (King); RIBEIRO, Ronilda Iakemi. Exu e a ordem do universo. 2. Ed. São Paulo: Oduduwa, 2015.

SÀLÁMÌ, Síkírù (King). Dor e Júbilo nos rituais de Morte. São Paulo: Editora Oduduwa, 1997.