A filosofia é uma atividade coletiva... e daí?
Alexandre Meyer Luz
Prof. Filosofia (UFSC)
31/01/2022 • Coluna ANPOF
O recente “O Mito do Individualismo Intelectual e a Prática Filosófica Atual”, publicado nesta coluna em 19/01/2022) fez o excelente trabalho de desafiar a suposição de que o trabalho filosófico é o resultado de um esforço primariamente individual. Claro, muitos dos produtos filosóficos podem dever significativamente a um indivíduo em particular, mas este é um ponto que não deveria obscurecer o trabalho comunitário que - vou assumir - sempre está ao lado do eventual esforço ou brilho individual: cada um de nós aprendeu estratégias de investigação, escreveu para discutir teses, recebeu críticas de outros membros de uma comunidade que partilha vocabulário, suposições sobre como se conduz uma discussão, como sobre se discute, sobre porquê se deve discutir, etc.
Lembrar que a Filosofia não é uma atividade individual pode ser útil para pensarmos nas características comunitárias do trabalho filosófico. Considere, por exemplo, a suposição de que a Filosofia tem um compromisso para com a verdade, que por vezes aparece associado à tese de que a Filosofia é argumentativa. Considere, para fins do argumento, que as duas teses são corretas (e o autor deste ensaio considera que elas - ou alguma versão delas - são corretas); o que estas teses dizem sobre o como devemos nos comportar na comunidade filosófica, dado o compromisso com a verdade, com a o argumentar e etc? Nada! Todavia, uma sugestão que muitas vezes as acompanha é a de que o comportamento apropriado é o diante de qualquer tese, contra-argumentar. Contra isso, um olhar que parte do trabalho comunitário pode nos ajudar a fomentar práticas mais úteis para a satisfação do interesse de longo prazo na verdade e comportamentos mais apropriados para popularizar o interesse na reflexão cuidadosa, não-viciosa.
Não são raras as reclamações sobre comportamento arrogante por parte de membros destacados de uma dada comunidade de filósofos. Tais reclamações podem ter uma motivação moral, partindo da suposição de que a arrogância é um vício moral. Nós podemos, porém, pensar na arrogância também como um vício intelectual que impacta negativamente no trabalho comunitário. Claro, alguém pode ser arrogante e ter o melhor argumento e, com isso, satisfazer o compromisso para com a verdade e etc. O ponto, porém, é que a arrogância não raramente tem impactos sobre o interesse de longo prazo na verdade.
Imagine, por exemplo, que alguém é o auto-intitulado “o melhor filósofo” (seu nome será F) de uma comunidade razoavelmente isolada (chamemo-la de B). Imagine que esta pessoa F tipicamente tem as melhores considerações sobre as questões que são postas entre os filósofos daquela comunidade B e que, por isso, esta pessoa “vence” todas as discussões que lá acontecem (discussões que ela trata como combates intelectuais, nos quais “em nome da verdade” deve-se mostrar retumbantemente que o adversário está errado - algo que F frequentemente faz acompanhado por uma sugestão sutil de que o adversário é “intelectualmente limitado” ou algo do gênero). Suponha, também, que por conta disso a comunidade B diminua ao longo do tempo, até se resumir a uma pessoa (não por acaso, F). Considere, por fim, que as melhores opiniões em B são, por acaso, as mesmas melhores opiniões que outras comunidades, maiores e mais efervescentes, tinham há cinquenta anos atrás (não por acaso, a data do último contato de F com estas comunidades). Qual o resultado do zelo pela verdade de F para a comunidade B? Se as melhores opiniões disponíveis em B ajudam a resolver problemas práticos em B, num dado instante, talvez tenhamos um resultado digno de valor. Se não for o caso, parece que temos razões para desconfiar do comportamento intelectual de F (mesmo que guiado pelas teses acima).
A expressão “interesse na verdade”, vou sugerir, não deveria ser entendida em sentido estrito, mas como querendo captar um interesse em boa investigação. Uma investigação é boa quando é bem conduzida, em termos da ausência de vícios. Adicionalmente, uma investigação é boa quando espalha seus resultados de modo mais amplo possível. No caso da Filosofia, os resultados também estão relacionados, portanto, com o apreço pelo exercício e pela divulgação da preocupação com a eliminação de vícios intelectuais. Se a Filosofia, como é dito frequentemente, preza pelo “pensar bem”, este tipo de pensamento não-vicioso deveria ser um valor a ser distribuído amplamente e não algo tolhido - como aconteceu em B. Note que “pensamento não-vicioso” não é sinônimo de “ter o melhor argumento agora, neste instante”.
Pensar na atividade filosófica como comunitária pode nos ajudar a pensar em “compromissos para com os outros”, por razões morais e epistêmicas - que muitas vezes se entrelaçam. Pode nos ajudar, por exemplo, a colocar ao lado do interesse em “ter o melhor argumento agora” o reconhecimento do valor da opinião do outro: trata-se de uma opinião de um estudante de começo de curso, que talvez precise ser tratada como um exercício intelectual, como parte do treinamento para o ser capaz de justificar apropriadamente suas futuras crenças? Trata-se de um insight inicial por parte de um filósofo experiente, talvez promissor mas ainda carente de desenvolvimento? Trata-se de opinião apresentada com considerações que resumem uma tese mais ampla e sofisticada? Enfim, pensar em termos comunitários pode nos ajudar a pensar melhor sobre os diferentes cenários em que são feitos trabalhos que são do interesse da comunidade filosófica, por diferentes motivos: do trabalho apresentado em um congresso repleto de pares até o ensino e a divulgação filosófica; da conversa com um estudante iniciante até o debate com um par em um bar.
O interesse em se ter a opinião mais bem justificada sobre um tópico da agenda filosófica deveria ser um interesse de qualquer comunidade, inclusive de comunidades filosóficas que estão colocadas em posições periféricas, em um determinado momento. Todavia, como sugerimos, este é apenas um dos bens que deveríamos perseguir. Se uma comunidade periférica não consegue liderar o estado da arte em alguma área da pesquisa em Filosofia, ainda restam outros bens importantes, como o de disseminar o apreço pela boa investigação, inclusive para além dos muros da comunidade filosófica local. Estes outros tipos de bens podem ser, inclusive, mais importantes para a cultura na qual tal comunidade se insere (já que a Filosofia não produz tecnologia, não liderar o estado da arte de alguma discussão não tem os impactos que estar tecnologicamente subordinado traz).
A consecução destes outros tipos de bens parece exigir estratégias menos combativas (ao modo de nosso colega F, mais acima) e mais colaborativas. Trata-se mais de como fazer do que de ter este ou aquele objeto de investigação. Um olhar mais comunitário sobre o trabalho intelectual e sobre os bens que devem ser perseguidos poderia ajudar a investigar as melhores formas e estratégias deste fazer, em suas diversas versões e em diferentes meios: como divulgar, como ensinar, como discutir e, até, como (e quando) combater.
Agradeço as críticas caridosas de muitos colegas a versões prévias deste breve ensaio.