A filosofia precisa se pronunciar acerca do terror
Georgia Amitrano
Professora (UFU)
31/10/2023 • Coluna ANPOF
Este texto foi divulgado no Le Monde Diplomatique Brasil em parceria com a Coluna Anpof. Ele é parte de um artigo maior a ser publicado.
Impossível não se sensibilizar com os atos de terror perpetrados nas últimas guerras do século XXI: Ucrânia-Rússia e a, infelizmente recente, Israel-Palestina. Diante das imagens chocantes das últimas semanas, entendo que a Filosofia deva se pronunciar. Conceitos como os de Europa, Ocidente, terror, terrorismo, colonização e o Outro como um Ser sem Ser parecem necessários para esta análise.
Dada a quantidade de situações as quais a Guerra nos impõe, circunscrevo esta análise-problema apenas na tentativa de me curvar diante daquilo que me assombra, a Guerra que eclodiu no sábado, 07 de Outubro; ou seja, o Conflito, se assim se pode chamar, Israel-Palestina. Entretanto, para tal debruçar, é necessário trazer os conceitos, aquilo que nos fortalece filosoficamente, bem como o entendimento das bases simbólicas, entendidas como ocidentais/europeias, que fomentam as práticas de terror e do terrorismo, que hoje se dão na região daquele que um dia fora chamado de Ásia Ocidental. Donde começar pela problematização do próprio nome da localização geográfica, a qual é hodiernamente designada Oriente Médio. Nomear, assim, implica uma ação colonialista europeia, haja vista surgir de uma denominação inglesa, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, cuja intenção era determinar os povos, circunscrevendo-os a uma dada região entre o Mar Vermelho e o império inglês nas índias.
O nomear é fundamental aqui na medida em que retirar o ocidente do termo geográfico não apenas tem implicações nas diferenças geográficas e culturais; mas, antes, designa um olhar para fora daquela Europa husserliana que transcende um continente. Para Husserl é fundamental definir o conjunto de características que constitui o espírito de um povo e que este se deve-a um local específico de nascimento. Local este que constitui o patamar de valores e crenças. Ora, a Europa designa o ocidente e tem sua origem, seguindo a referência husserliana, na Grécia Antiga. Donde a retirada do Ocidental da Ásia ser fundamental para a exclusão daqueles que não podem ser reconhecidos como europeus e, portanto, seu Ser se encontrar em xeque, haja vista o entendimento de valores advindos de uma Grécia, cuja característica, neste caso, é a de dividir o mundo entre civilizados e bárbaros. De antemão, já há o problema posto, o do Nome. Há um nomear que exclui aquele que não é lido como Europeu e, portanto, não é civilizado, comportando-se como um bárbaro. Entretanto, há um para além nesse ato de nomear, pois, a despeito da região geográfica, o Estado de Israel é forjado a partir de um sionismo advindo da tal Europa no sentido husserliano, cujo caráter civilizatório transcende o Continente. A formação do Estado de Israel traz consigo, para além da terra santa, os valores daquele nascimento anterior, que se respalda tanto na filosofia quanto nas ciências europeias. Donde ser importante guardar esta questão aqui colocada; afinal, dela derivam apoios a um ou a outro lado no conflito Israel-Palestina, bem como outra nomeação fundamental no conflito, a de terrorista.
Ora, não há conceitos soltos, tampouco deslocados da história. Nesse sentido, é fundamental resgatar os conceitos de Europa, como designação do ocidente, de inimigo, de outridade e, consequentemente, a observação do que seja prática do terror e suas especificações diante do conflito que está causando morticínio tanto para israelenses quanto para palestinos. As imagens brutais não podem ter um lado apenas na sustentação de que aquele atacado possui o direto de defesa. E já que Guerra existe, as regras devem ser jogadas de modo limpo, e não com limpeza étnica. O conflito, assim, pelas telas midiáticas, demonstra o quanto está pautado pela negação do Outro, um outro que é inimigo na essência e, por esta razão mesma, lhe cabe a morte, mas não sem antes lhe implementar todo medo e terror. O ato de terror perpetrado diante de inocentes se torna ato de terrorismo. Donde a característica de contra-ataque, retaliação ou qualquer meio de defesa ou ataque em tempos de guerra declarada, deixar de ser uma defesa; antes se manifesta como escalada do terror.
Ao pensarmos para fora da Palestina, mas circunscrevendo a situação ao Hamas. Esquece-se que o Hamas é formado a partir de palestinos, cuja existência e essência é lida, por Israel, como inimiga. E inimigos podem desaparecer. Não obstante, o mesmo ocorre entre o Hamas e os judeus. Eu troco as nomeações, palestinos por Hamas e Estado de Israel por Judeus propositadamente, pois há uma duplicidade da negação.
Ora, se judeus foram Outros desterritorializados e desprovidos de Ser para uma dada Europa, mas hoje o Estado de Israel configura uma Europa extra geográfica; então, ao ser essa Europa, o Estado de Israel traz consigo, não apenas o olhar dos demais grupos da região do Oriente Médio como aquele que invade um espaço na reivindicação de uma terra prometida; como também se apresenta enquanto colonizador que destitui um povo, uma etnia de sua existência. Torna-se, portanto, inimigo. Mas o invasor da terra prometida não é, simbolicamente, o europeu, mesmo que este a tenha invadido como colônia; o invasor é o palestino, que sequer deve ter o direito a seu Estado nação, haja vista ser engolfado no termo árabe. A inimizade pública se manifesta na violência. Uma violência que reduz os sujeitos a corpos passíveis do morticínio, sujeitos passíveis de serem violados no aspecto físico e psicológico.
O Hamas ataca inocentes e civis, em um violento ato de terrorismo. Na ação do contra-ataque, Israel vitima civis e impõe o medo em Gaza. A tensão histórica das várias negações da existência do Outro, palestinos e judeus, acaba por validar a sentença arendtiana, “se os objetivos não são alcançados rapidamente, o resultado será não apenas a derrota, mas a introdução da prática da violência na totalidade do corpo político” (ARENDT 2011:100). Afinal, pois os desígnios das ações bélicas não possuem qualquer resultado que não medo e o terror.
E, falando sobre terror, me reporto a Igor Primoratz e Michael Walzer. Para o primeiro, terrorismo é “o uso deliberado de violência, ou ameaça de seu uso, contra pessoas inocentes, com o objetivo de intimidar algumas outras pessoas em um curso de ação que de outra forma não seria necessário"; para o segundo, “O terrorismo é a morte deliberada de pessoas inocentes, de forma aleatória, a fim de espalhar o medo através de toda uma população e forçar a mão dos seus líderes políticos”. Ainda com Walzer, “o recurso ao terror é ideologicamente o último, mas não é o último numa série real de ações, é apenas o último em termos de desculpa”. Ou seja, a desculpa é o conceito chave, para ambos os lados, na manutenção do terror. Isso se dá na medida da negação do outro. Impossibilitados de falar abertamente de genocídios, aplicam o terror na tentativa da dupla eliminação.
Finalizo com a análise acerca do terror de um argelino, Albert Camus, para quem [1],
O terror continua sendo o caminho mais curto para a imortalidade. [...] Para milhares de solitários hoje o poder, por significar o sofrimento do outro, confessa a necessidade do outro. O terror é a homenagem que solitários rancorosos acabam rendendo à fraternidade dos homens. (CAMUS 1996: 283)
Camus manifesta suas preocupações ético-políticas a partir de um determinado evento histórico, o nazismo. Todavia, seu olhar, apesar de partir desse evento particular, não se atém a ele. De fato, há um deslocamento em vista da preocupação com a legitimação do terror e com ruptura da liberdade. Estes dois conceitos são
advindos de uma necessidade de se dizer “quem é humano ou não”, inerente a um pensamento que emerge no século XX. É por esta razão que a problemática da ‘revolta’ não se reduz ao fenômeno ‘nazi’; antes, examina as justificativas da legitimação do crime de morte e das práticas de terror que possuem, na filosofia, um álibi concreto (AMITRANO 2014: 31) [2]
Se há algo que a Filosofia possa fazer valer numa situação de Guerra, na qual o terror e a negação de humanos emergem, será a problematização diante do contexto da falta do diálogo, da falta de uma política de liberdade, no melhor sentido filosófico; daí ser fundamental compreender conceitos e perceber a impossibilidade da paz. A paz, na amplitude entre violência e terror, tem se perpetuado como guerra. A base dessa paz só se dá na relação de inimizade, pois o inimigo é sempre passível de eliminação. Enquanto as questões conceituais se mantiverem como mero aparato de justificativa de horrores, a própria Filosofia continuará a servir para tudo, inclusive trans formar assassinos em juízes[3]. (CAMUS 1996: 13)
[1] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996
[2] AMITRANO, Georgia Cristina. Albert Camus: um pensador em tempos sombrio. Uberlândia: 2014.
[3] “Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável, a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes”
Referências
AMITRANO, Georgia Cristina. Albert Camus: um pensador em tempos sombrio. Uberlândia: 2014.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2011.
CAMUS, A. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996.
AMITRANO, Georgia Cristina. Albert Camus: um pensador em tempos sombrio. Uberlândia: 2014.
PRIMORATZ, Igor. “What is Terrorism?”, in Terrorism. The Philosophical Issue, Houndmills 2004.
______. Terrorism: A philosophical Investigation. Malden MA: USA, Polity Press, 2013.
WALZER, Michael. Arguing about war, New Haven 2004.
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