A (i)legítima defesa da honra ou sobre o caráter masculinista da liberdade civil

Príscila Carvalho

Professora associada ao NEA/UFRJ

06/04/2021 • Coluna ANPOF

                                    A liberdade civil depende do direito patriarcal

                                                              Carole Pateman, 1988, p. 19.

O direito está presente nas mais diversas teorias da justiça, seja naquelas que apostam em seu potencial emancipatório seja nas teorias que o apontam como principal meio de manutenção das disparidades sociais. Instituição à qual todos podem recorrer para orientação e gestão de conflitos, o direito extrairia sua legitimidade do pacto social por meio do qual teríamos abandonado a situação de insegurança natural para vivermos sob o comando da neutralidade da lei e do Estado civil modernos. Com a garantia de segurança e liberdade para todos, convertemos nossa liberdade natural em liberdade civil: eis o que nos diz a narrativa contratualista. Com sua licença para fazer uso de uma expressão coloquial: só que não”. Em o Contrato Sexual (1993 [1988]) Carole Pateman questiona o cerne das teorias contratualista e da neutralidade do direito, após analisar contratos de diversas espécies.

A teórica demonstra como o fim do poder do paterno, da sociedade organizada pelo critério do parentesco, não significou o fim do patriarcado. Na construção do Estado, do direito civil e das estruturas institucionais modernas, de fato, pôs-se um fim ao patriarcado paterno, ou seja, para alívio dos filhos homens o poder de seus pais, enfim, deixa de existir. Em seu lugar os cavalheiros deram lugar ao que Pateman chama de “patriarcado da fraternidade”, já que com a fundação do direito e o Estado a liberdade civil dos homens passaria a garantir não apenas sua condição de plena cidadania, mas estendê-la para dominar as mulheres em vários âmbitos da vida social e familiar. As mulheres deixam de ser propriedades mais recentemente, mas continuam subjugadas. O direito civil nasce sexista, mas se apresenta como neutro e universal e fruto de um pacto social livre de coações. Pateman se propõe a revelar a História oculta do pacto social. Apresentada como uma História de conquista da liberdade civil, a História do contrato original teria sido, na verdade, um pacto sexual-social. Pateman explica que a demonstração do caráter oculto do pacto original traz à tona sua natureza originária tanto social como sexual e, ainda, duplamente sexista, a saber: “é sexual no sentido de patriarcal, isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres –, e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens aos corpos das mulheres” (PATEMAN, 1988, p. 17). Sem o exame dos pressupostos patriarcais desse contrato o pacto passaria por socialmente legítimo, sem que sua dimensão sexual fosse destacável nos termos que Carole Pateman o faz. Ao trazer a dimensão sexista do direito, a teórica pôde demonstrar como a liberdade civil dos homens se ergue a partir da subjugação das mulheres. Não se trata, portanto, de um defeito que se corrija sem maiores reformas no escopo patriarcal do direito. A extensão da liberdade dos homens deriva precisamente da sujeição das mulheres, deixando evidente a essência particularista da lei e a essência sexista do pacto que a fundamenta e a ela dá origem. Ou, nas palavras de Pateman

A liberdade civil não é universal, é um atributo masculino e depende do direito patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade, mas para assegurar as mulheres para si próprios. Seu sucesso nesse empreendimento é narrado na história do contrato sexual. O contrato está longe de se contrapor ao patriarcado ele é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno (PATEMAN, 1988, p. 17)[1]

Seria essa uma explicação que responde por um perfil datado do direito? Alguém poderia razoavelmente objetar que mulheres já não são propriedades dos homens do ponto de vista legal. Conquanto é pouco provável que se encontre argumentos plausíveis para sustentar tal assertiva, já que tal objeção não cobre a extensão da ausência de plena liberdade civil das mulheres em diversos nichos do direito. Por que dizer que quando deixam de ser propriedades, as mulheres mantêm-se subordinadas em diversos outros níveis? Porque é gritante o baixo valor de suas vidas, como se pode constatar irrefutavelmente observando-se o número de estupros diários quase no mundo todo, o número de violência doméstica, de desqualificação das falas das mulheres em diversos espaços público e privado e, sobretudo, observando-se a impunidade feminicida[2] através das recorrentes absolvições dos réus com base no argumento insustentável da “legítima defesa da honra”. Olhando para trás vê-se, como mostra Pateman, a alocação do casamento como instituição privada, cuja distância da esfera pública cumpre função política de dominação.

Na esteira de Pateman podemos dizer que tal distinção permite que as proteções legais tenham sido direcionadas prioritariamente ao domínio da esfera pública, criando uma dubiedade na condição social das mulheres. Quando não estão na esfera privada como objetos, estão no limbo no qual não é possível a garantia da liberdade civil em sentido pleno. Perscrutando casos de impunidade dos assassinos, verificamos sem dificuldades uma tentativa falaciosa de analogia da defesa da honra em relação à previsão de “legítima defesa da vida”, que exclui a condenação por ilicitude em situações de crimes não intencionais. Essa previsão legal não exclui assassinatos planejados ou realizados por impulso quando se trata de expectativas frustradas relacionadas à tentativa de sujeição da vítima. Vejamos como a tentativa de analogia se faz presente no caso que ganhou projeção nacional na década de 1970 do assassinato de Leila Diniz cujo assassino,  Raul Fernando do Amaral Street, vulgo “Doca Street”, foi defendido pelo advogado, e ministro do STF já aposentado, Evandro Lins e Silva. Na ocasião o renomado advogado apelou para legítima defesa da honra, através de uma versão putativa já que a “legítima defesa da honra” não está prevista no ordenamento jurídico brasileiro: o réu teria agido motivado pela crença de que teria o direito provocado ao crime pela vítima a ponto de agir de modo que jamais faria e jamais o fez anteriormente. Recorrendo à desqualificação da vítima a defesa do réu argumentou que

A “mulher fatal”, esse é o exemplo dado para o homem se desesperar, para o homem ser levado, às vezes, à prática de atos em que ele não é idêntico a si mesmo, age contra a sua própria natureza. [...] Senhores jurados, a “mulher fatal”, encanta, seduz, domina, como foi o caso de Raul Fernando do Amaral Street[3]

Apelou ainda pela utilidade da absolvição do assassino:

O Júri é uma instituição democrática, que representa o povo dentro da justiça, julgando de consciência, com amplitude de visão, sem peias legais, julgando com o alto sentido finalístico de verificar se alguma pena deve ser aplicada ou se não o deve, se ela é útil ou se ela não é útil, se ela representa alguma vantagem para a sociedade ou de não existe essa vantagem.[4]

Não obstante a relação dessa declaração com a problematização da cultura punitivista, é justificável que mesma implique impunidade? Nesse contexto, a menção às noções de “povo” e “democracia” nos faz saber que o sujeito da democracia em questão não se mostra outro que não aquele cuja liberdade civil a pensadora Carole Pateman mostra que sempre foi a única válida no direito civil: a dos homens. Afinal que democracia seria essa que prevê ou incentiva a impunidade de assassinos feminicidas? A quem e a que servem a “utilidade” desta absolvição? Por onde escapa a liberdade civil das mulheres nessa argumentação? Talvez o único aspecto democrático no julgamento teria sido a configuração de um tribunal de júri popular, não fosse seu endosso patriarcal antidemocrático contrário aos direitos constitucionais fundamentais. Onde estaria a justiça animada que Aristóteles[5] atribuiu a juízes? Por que muitos juízes de toga e júris populares se mantém igualmente fiéis à subalternização das mulheres? Como explicar que juízes e outros operadores do direito sigam reiterando a banalização dos assassinatos de mulheres ou que apenas recentemente – em sessão virtual concluída dia doze de março do corrente ano, meses após lamentável e repugnante assassinato feminicida da Juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi – o Superior Tribunal Federal tenha resolvido proibir o uso do argumento da “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio[6]? Motivado ou não pela morte da colega, uma reação reflexiva vem à tona com o tardio reconhecimento constitucional: “antes tarde do que nunca” ou “por que só agora”?

 


[1] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [1988].

[2] Ainda que a tipificação dos assassinatos de mulheres seja recente o crime de assassinato já existia. 

[3] O Caso Doca Street . Site da  OAB de São Paulo. Acesso disponível em: www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/o-caso-doca-street

[4] O Caso Doca Street . Site da  OAB de São Paulo. Acesso disponível em: www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/o-caso-doca-street

[5] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. 4. ed., V. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

[6] Ver STF proíbe uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio. Disponível em  www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462336 , em 15/03/2021.

 

DO MESMO AUTOR

Nota em defesa de Márcia Tiburi

Carla Rodrigues

Professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e pesquisadora Faperj
Integrante do GT Filosofia e Gênero

17/12/2021 • Coluna ANPOF