À luz da história das filosofias

Nathan Braga Fontoura

Mestre em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

12/12/2023 • Coluna ANPOF

A palavra “filosofia” compreende inúmeras significações; ela assume diferentes sentidos a partir de diferentes perspectivas: “amor à sabedoria”, “esclarecimento conceitual”, “modo de vida”, “sistema de pensamento” etc. Estas são algumas das denominações habitualmente atribuídas a isso que chamamos de filosofia. Entre essas e outras, é possível perceber a imprescindível presença de um elemento constituinte em comum, isto é, um traço marcante que as atravessa e, de certo modo, as reúne sob um mesmo nome: o logos, em outras palavras, a racionalidade filosófica, característica essencial de todas as filosofias em todos os tempos. Portanto, as diversas racionalidades conduzem e delimitam uma importantíssima área do saber, componente fundamental para a formação humana, intelectual e, sobretudo, ético-política das sociedades.

Desde épocas remotas, as investigações filosóficas são associadas ao estudo das linguagens, da physis (física, natureza) e do pensamento, uma vez comprometidos com o objetivo de apreender um autêntico conhecimento a respeito desta realidade em que vivemos. A partir dessa problemática, proponho a pensar numa imagem que, paradoxalmente, “aparece” subjacente, ao conceito de razão: a metáfora da luz. Compreendida metaforicamente, a luz é tradicionalmente pensada na sua relação com o conhecimento dito explícito, real, verdadeiro, ou seja, um tipo ou modalidade específica dos saberes, sejam eles propriamente filosóficos ou científicos. Um raciocínio luminoso é esclarecedor, pois nos ajuda a visualizar alternativas, respostas e/ou saídas possíveis para determinado problema. Ao longo da história da humanidade, as filosofias e as razões que as acompanham foram entendidas a partir de diversificadas luzes, as quais oscilaram conforme o contexto geográfico, político e social em que apareceram. A seguir, apresento-lhes de maneira sucinta alguns exemplos notáveis de como a metáfora da luminosidade foi tratada na tradição ocidental.

No âmbito da civilização grega antiga, encontramos raios de luz desde os poemas épicos de Hesíodo e Homero. Na Teogonia, narra-se a passagem do Caos originário para a brilhante claridade dos deuses olímpicos. Os primeiros filósofos gregos buscaram intensificar esse lampejo inicial uma vez empenhados na tentativa de encontrar racionalmente um princípio fundamental que explicasse a physis das coisas. Heráclito, por exemplo, exaltou o fogo com toda a sua intensidade e movimento como sendo o elemento primordial na constituição do mundo ordenado. Com o surgimento daquele que veio a ser talvez o maior representante do pensamento grego antigo – a saber, Platão –, o brilho da razão tornou-se mais intenso. Seu mestre e personagem Sócrates perambulava pela ágora “dando à luz” às ideias de quem estivesse disposto a dialogar com ele. Em A República, Platão formulou a ilustre Alegoria da Caverna, artifício bem construído entre luz e sombras: através da metáfora solar presente no mito – a máxima representação do Belo, do Bem e do Justo – Platão relacionara à Ideia (eidos, grego para imagem) de Luz ao conhecimento verdadeiro da realidade.

Séculos depois de Platão, mas ainda na sua sombra, a civilização do Ocidente vira acontecer o advento e a institucionalização de uma forma nova de religiosidade. Em virtude disso, a metáfora da luz sofreu certos deslocamentos. Retomando o mito da criação do mundo presente nas escrituras sagradas, é importante lembrarmos que, no início, o Deus judaico-cristão determinou que houvesse luz, sendo esta uma de suas primeiras realizações. A divina Luz Suprema compartilha uma centelha de si com os homens, e é a partir desse princípio que um pensador como Agostinho elaborou a sua teoria da iluminação: a luz natural que existe na interioridade humana é uma fração pequena da Luz divina, a qual ilumina os nossos juízos e serve para orientar as ações que devemos tomar no caminho sinuoso da vida. A luz da razão torna-se instrumento necessário para caminharmos no desconhecido e misterioso universo da fé. Assim, os homens estariam lançados à possibilidade de vislumbrar um conhecimento genuíno, pois que a luz que ilumina a verdade se encontra no seu íntimo.

A era moderna do pensamento ocidental foi marcada profundamente por uma clara distância em relação às filosofias da “obscura” Idade Média. Assim como no passado da civilização ocidental, o homem – que, neste momento, começa a ser lido também a partir de categorias como “indivíduo”, “sujeito” etc. – retorna ao centro iluminado do palco da história. Um espírito típico da modernidade, esplendidamente crítico, jamais permaneceria satisfeito diante de justificativas ou respostas prontas provenientes de alguma entidade externa, relativamente alheia a si próprio, e que não nos possibilita ver com toda a clareza as razões últimas em tudo que há. Descartes fora um admirável exemplo em sua desejosa procura por certezas que fossem claras e distintas o suficiente para serem indubitáveis, uma evidência que contribuiu, sem dúvidas, para o aparecimento de novas metodologias científicas, as quais, enquanto “luzes artificiais”, seguramente feitas por mãos humanas, reforçam a concepção figurada preexistente.

No séc. XVIII, vimos acontecer uma maximização do projeto racional iniciado no limiar da era moderna. Conhecido igualmente como século das luzes, o Iluminismo foi uma época fulgurante da história humana: eis o ápice da metáfora luminosa, a qual foi aliada às noções de esclarecimento, liberdade e progresso. Esse esplêndido movimento refletiu-se não apenas no âmbito filosófico, mas também no artístico, científico, econômico, político, social etc. Kant é, talvez, a personalidade mais ilustrativa desse momento, pois dedicou-se a combater as distintas formas de escuridão e ignorância que o intelecto é capaz de se submeter, embora na sua suprema Crítica tenha apontado as limitações de nossa capacidade de entendimento e ilustração; inclusive, esse reconhecimento dos limites aos quais a razão está subjugada passou a ser decisivo para a compreensão dos séculos seguintes.

Ao longo do séc. XIX, aconteceram consideráveis transformações no tecido social das ditas sociedades “esclarecidas”, de modo que o conceito de “crise” – da política, da racionalidade, enfim, do empreendimento humanista como um todo – irrompeu quase como palavra de ordem em escritos de filósofos oriundos de contextos distintos. Nesse sentido, a metáfora reluzente que, outrora, fulgia intensamente, agora desvanecia vagamente. A despeito dos esforços de mentes pensantes, tal como Husserl e a sua fenomenologia que manteve acesa/viva a luz no domínio da consciência – dependia dela, diga-se de passagem –, os dias da/na filosofia ocidental não pareciam ser tão cintilantes quanto fora no seu passado recente. As reflexões de alguém como Nietzsche denunciavam, primeiramente, um enfraquecimento e/ou o esgotamento de ideais e valores supostamente modernos; o anúncio da morte de Deus conduziu o homem a uma absoluta falta de sentido último para o existir humano, instaurando outros questionamentos que refletiram na nova era que irradiava no horizonte de nossa ocidentalidade.

O séc. XX contemplou o cenário filosófico internacional tremeluzir, não obstante uma parte significativa que conseguiu pensar a partir dessa “ausência” de luz, e é surpreendente que tenhamos recebido muitas contribuições esclarecedoras. Certas vertentes do pensamento ocidental souberam transpor as dificuldades presentes com o auxílio de uma lanterna, alimentada por novos debates a respeito das linguagens. Contudo, era inevitável reconhecer que o ideal absoluto de esclarecimento havia, há muito, se fragmentado e revelado como parcial. Dentre as excepcionais singularidades da era contemporânea, encontramos o idioma de Derrida: a desconstrução. Com extraordinária lucidez, repensou o papel que a metáfora desempenha na textualidade filosófica – considerando-a não mais um mero ornamento textual –, bem como a própria metáfora da luz. Em Violência e Metafísica, ele utilizou a expressão “violência da luz” para referir-se aos diferentes métodos fenomenológicos que carecem da luminosidade, a qual, por sua vez, incide sobre os objetos mundanos de modo a desvelar suas essências. Na obra Memórias de cego, Derrida questiona o privilégio da visibilidade inteligível e sensível – da visão no geral, enquanto o sentido mais privilegiado entre os sentidos na história das filosofias ocidentais desde a antiguidade grega.

A metáfora da luz – ou, o outro nome para a história do pensamento – é uma imagem mental disseminada mundo afora, em contextos que ultrapassam o filosófico. É natural, portanto, que ainda continue a ser bastante utilizada, mesmo após múltiplas problematizações de natureza propriamente filosófica. De fato, não entrevemos maiores problemas quanto a isso. Desde a sua acepção primitiva até os desdobramentos atuais, ela mantém-se como um recurso válido para a arte do discurso, e nós sabemos, por previsão, que onde houver filosofias dispostas a refletir acerca das mais diversificadas e intrincadas questões, encontraremos infinitos pontos de vista utilizando-a como fonte/instrumento de esperança e inspiração.


REFERÊNCIAS

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_______. Margens da Filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991.

_______. Memórias de cego: o autorretrato e outras ruínas. Tradução de Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

DESCARTES, René. Meditações. In: Os pensadores. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses. 3ª edição. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.

KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: ‘Que é esclarecimento’?”. In: Textos seletos. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1985.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PLATÃO. A República. 9ª edição. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.


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