A Natureza Feminina: um problema também da Filosofia Medieval

Camila Ezídio

Pesquisadora de pós-doutorado Cnpq/PPGF-UFBA e professora da Universidade do Estado da Bahia

19/03/2024 • Coluna ANPOF

Desde a antiguidade masculino e feminino, macho e fêmea, homem e mulher representam não apenas categorias de organização dos seres, mas polos de uma distinção hierárquica que atravessa biologia, ética e política. A Filosofia nada disso ignorou, na realidade foi também pelo olhar dos filósofos que se estabeleceu o lugar, no qual um desses polos domina e regula a narrativa da história da filosofia no que diz respeito a natureza humana. Apesar das concepções ditas universais de natureza, nas entrelinhas da Filosofia institui-se uma ordem de poder entre a natureza que deve governar e a que deve obedecer, a mais e a menos racional, a forte e a fraca, a que tem mais e menos ou nenhum direito, e assim por diante.

Como nos conta Le Goff (1989, p. 21), em O homem medieval, a Idade Média dividia suas mulheres sob as categorias de virgem, esposa ou viúva. Notemos que estas fazem referência direta àquele que representa o polo dominante na hierarquia da natureza: o homem. O paradigma que divide o mundo — molda as relações e legitima a inferiorização da natureza feminina — adentra a Idade Média através do tema da criação da mulher e do pecado original. No Renascimento ele encontra lugar na chamada Querelle des Femmes e, posteriormente, ainda que não mais sobre a égide do cristianismo, a inferioridade da natureza feminina é tema dos muitos movimentos protofeministas e feministas. Este ensaio apresenta alguns apontamentos, desenvolvidos posteriormente em um artigo, acerca do problema da criação da natureza feminina e do pecado de Eva, figura central na sustentação da hierarquia entre masculino e feminino na história da filosofia medieval.

A literatura dos Padres da Igreja se esforçava por compreender se a mulher assim como o homem foi criada a imagem e semelhança de Deus, isto é, se ambos compartilhavam de uma mesma natureza racional. As respostas são distintas estando revestidas por considerações da filosofia antiga sobre a mulher e do sentido paradoxal do Gênesis que possui duas versões sobre a criação de acordo com as fontes literárias adotadas. Tais respostas determinam não só a relação da mulher com o Criador, mas, posteriormente, o seu papel no evento da queda, logo, o seu lugar no mundo. Na primeira versão do Gênesis (1, 26-27) homem e mulher são criados simultaneamente, partilhando de uma mesma natureza entre si e em semelhança com seu Criador. Entretanto, na segunda versão, em Gênesis (2, 21-22), o homem é criado do barro e recebe o sopro da vida, a mulher é criada de sua costela, isto é, de sua carne. A mulher é criada porque não é bom que o homem esteja só, ela é criada para ser sua ajudante. Notemos que, enquanto na primeira versão prevalece uma noção de igualdade entre homem e mulher, na segunda, desponta a supremacia masculina que dá início a uma teoria da subordinação natural da mulher determinada já na criação de sua natureza. É essa segunda versão comumente adotada pelos autores medievais para a interpretação do episódio da criação. Somado a essa narrativa, ainda no Gênesis, a protagonista do pecado original é a mulher. A queda pelo pecado torna a submissão ontológico-física da natureza feminina na criação, um fardo moral. A mulher seduzida pela serpente come o fruto proibido e o oferece ao homem que, seduzido, o aceita. São muitas as consequências desse ato mas, em particular, aqui nos interessa a culpa atribuída exclusivamente à natureza feminina.

Além do Gênesis, as cartas de Paulo são importantes documentos teológico-políticos que reforçam no medievo a imagem inferior da natureza feminina quanto a seu corpo, intelecto e ações. A natureza de Eva e de suas filhas é a fonte do pecado que marcou toda a humanidade, portanto seu fardo é eterno. O peso moral e físico que carrega a natureza feminina só é atenuado quando esta se encontra ligada a um homem, pois é junto dele que a mulher cumpre a função para a qual foi criada. Desde Fílon de Alexandria o homem representa a inteligência e a mulher a sensibilidade estando, portanto, hierarquicamente um sobre o domínio do outro, mas indispensavelmente unidos. De modo que, a dependência do feminino para com o masculino estabelecida na criação é institucionalizada com o casamento.

Dentre as interpretações dos Padres da Igreja sobre o tema da criação e do pecado da mulher, destaco Agostinho, fonte para algumas filósofas nesta discussão. Agostinho tem ideias paradoxais quanto ao tema. No De Genesi Contra Manichaeos (II, 11.15), ele reforça a ideia de uma mulher submissa ao homem, na medida em que essa relação denota uma estrutura natural da organização do cosmos, tal como no caso da alma que governa o corpo. No De Genesi ad Litteram (III, 22), o filósofo argumenta que a distinção entre homem e mulher é puramente física sendo o homem e a mulher semelhantes no que diz respeito ao seu intelecto, princípio primordial na relação de semelhança com Deus. Tal ideia é retomada por Christine de Pizan na construção de sua defesa da natureza feminina na Cidade das Damas (I,9). Entretanto, é possível que nos escape o que Agostinho diz em suas Confissões (XIII, 32.47) e no De Trinitate (XII, 7.10) sobre o fato. Segundo ele, Eva, considerada sob o aspecto de sua razão, isto é, na qualidade de ser humano, sem um corpo físico que a caracterize como mulher, é a imagem e semelhança de Deus. Entretanto, considerada no seu dualismo de uma alma que tem um corpo material do sexo feminino, Agostinho só entende a mulher como imagem e semelhança de Deus se unida ao homem, aquele do qual seu corpo foi tirado. Uma vez mais desponta a ideia de que a mulher só é, em alguma medida, completa e cumpre a função de seu ser, se unida ao sexo masculino. Quanto ao pecado original, Agostinho, na Cidade de Deus (II, XIV, 11), atenua a culpa sob a natureza feminina na medida em que considera que a mulher tomou por verdadeiro aquilo que foi dito pela serpente. Enganada, ela oferece o fruto proibido a seu companheiro que, pelo amor (caritas) à sua própria carne (Éfés. 5, 28-29), o come e peca também por engano.

Retomando alguns dos escritos agostinianos e de ideias contidas nos textos naturalistas correntes, desponta, no séc. XII, uma filósofa medieval que se ocupa do problema da natureza feminina quanto a sua criação e queda, falamos de Hildegarda de Bingen. Considerando o contexto religioso no qual estava inserida e a misoginia teórico-eclesiástica do período, Hildegarda retoma em seus textos, tais como o Scivias, o Causae et Curae e em suas cartas, qualidades como a falibilidade e a fraqueza da natureza feminina em detrimento de uma figura masculina forte e viril. Tais concepções que atravessam o âmbito físico-naturalista para a moral estão ligadas também a própria etimologia das palavras latinas vir (homem) que deriva de vis (força) e mulier (mulher) que deriva de molities (moleza).

Segundo Hildegarda, do homem criado da terra moldada com a água, que se transforma ao receber o sopro da vida, é tirado um corpo frágil de carne, o corpo da mulher. Estabelece-se assim uma hierarquia entre o elemento forte e o elemento fraco. Entretanto, segundo a filósofa, homem e mulher são complementares em sua existência e na organização do cosmos. De acordo com Hildegarda, à mulher foi dado o conhecimento manual, é a natureza feminina a artífice que em seu ventre tece toda a humanidade. A fraqueza do corpo feminino aéreo feito de carne, em comparação com a dureza de um corpo feito do barro, faz-se biologicamente necessária para o trabalho da artesã. Entretanto, é também essa fraqueza que leva esse corpo ao engano do pecado.

Em Hildegarda parece ser possível afirmar que o pecado não é efeito de uma inferioridade do intelecto feminino determinada na criação mas, na realidade, se trata de uma condição física do corpo da mulher que a leva a ser enganada pela serpente. A filósofa atenua o peso da culpa de Eva, atribuindo uma parte desta ao Diabo que, por inveja da condição da mulher no mundo, como aquela que de Deus recebeu o dom da geração, amaldiçoou toda a humanidade. O homem, por sua vez, peca porque enganado escolhe estar com aquela que é a sua própria carne.

A reabilitação física e moral da mulher que, por engano, comete o pecado se dá no seu papel como mãe-artífice que primeiro tece a humanidade e, segundo, salva a humanidade, vestindo de carne também o filho de Deus. Maria é o modelo de natureza feminina para a Idade Média. Entretanto, pela biologia, Hildegarda compreende que ser mãe e virgem é impossível, por isso sua defesa é daquela que mesmo pecando conserva a semelhança com Deus no seu dom gerador, a artífice humana, a nossa mãe: Eva.

Ainda o elemento mais fraco, a carne, o sensível, mas aquela sem a qual nada seria: uma mulher.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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