A relação hierárquica entre alma e corpo em Aristóteles

Gabriel Kaspary de Moraes

Mestrando de Filosofia pela UFRGS

06/06/2024 • Coluna ANPOF

Aristóteles identifica os seres vivos como compostos de alma e corpo. De acordo com Aristóteles, constituindo os indivíduos concretos, alma e corpo se relacionariam de tal modo que (i) ambos são mutuamente dependentes um do outro e (ii) a alma tem certa primazia sobre o corpo. Argumentarei que a primazia da alma sobre o corpo é uma primazia explicativa, e que tal primazia é compatível com o fato de que a alma depende do corpo para existir e persistir, uma vez que Aristóteles se vale da explicação funcional - baseada em sua teleologia natural - para descrever a relação entre ambas[1].

1 - Hilemorfismo aristotélico

Aristóteles afirma que todo ser natural é composto de forma e matéria. No caso dos seres animados, a forma do ser vivo é identificada com sua alma, assim como a matéria do ser vivo é identificada com seu corpo orgânico. Aristóteles, de modo sucinto, argumenta o seguinte: “a alma é isto por meio de que primordialmente vivemos, percebemos e raciocinamos. Por conseguinte, a alma será uma certa determinação e forma” (ARISTÓTELES, 2006, 414a10-13). Maria Cecília Gomes dos Reis nos elucida o argumento de Aristóteles:

Em suma, o argumento pode ser formulado brevemente da seguinte maneira: é principalmente em virtude de sua forma que se diz de certa coisa que tem tal e tal propriedade; ora, é principalmente em virtude da alma que se diz do animado que ele vive; a alma é, portanto, forma do ser vivo (REIS, 2006, p. 214).

Ou seja, a forma de certo ser determina suas propriedades, e já que “o animado se distingue do inanimado pelo viver” (ARISTÓTELES, 2006, 413a20) e “a alma é aquilo por meio de que vivemos”, decorre que a alma é a forma do ser vivo.

Contudo, os seres vivos não são apenas alma, mas também corpo[2]. Existem dois tipos diferentes de corpos: os animados e os inanimados, ou os orgânicos e os inorgânicos. Uma pedra é um corpo inanimado e um leão é um corpo animado. O que diferencia o corpo animado do inanimado é precisamente a posse de uma alma.

Os seres vivos são compostos, portanto, de forma e matéria. A forma dos seres vivos é a alma. A matéria dos seres vivos, por sua vez, é certo tipo de corpo - a matéria animada, o corpo orgânico[3]: O “corpo natural que tem em potência vida” é o “corpo orgânico” (ARISTÓTELES, 2006, 412a27-28).

Passemos agora à análise de como alma e corpo se relacionam.

2 - A relação entre alma e corpo

Comecemos com a tese de que a forma não pode existir sem a matéria. Mesmo M. J. Loux, que interpretava a forma como substância primeira, reconhecia que as formas não eram autossubsistentes, mas sim entes predicativos que “existem apenas como coisas predicadas da matéria que constitui os objetos ordinários” (LOUX, 1991, p. 130). 

A forma de x deve ser compreendida como certa função essencial de x: “Podemos dizer que a forma de x é a função própria (ergon) de x” (ANGIONI, 2009, p. 259- 260). Assim, compreendendo a forma como função, a matéria surge como condição necessária para o desempenho de tal função. Do mesmo modo, a alma deve ser compreendida como certa função ou capacidade essencial de um ser orgânico. O corpo orgânico possibilita que a alma, compreendida como certas capacidades ou funções, possa se realizar. Por conseguinte, Aristóteles conclui que “a alma (...) não é separada do corpo” (ARISTÓTELES, 2006, 413a4-5), pois a alma é “algo do corpo, e por isso subsiste no corpo, e num corpo de tal tipo” (ARISTÓTELES, 2006, 414a22- 23).

Pois bem, fora observado que a alma depende do corpo para existir e se realizar. Mas por que o corpo depende da alma? A resposta está no modo correlativo[4] como Aristóteles explica o corpo: a alma é  “o que é, para um corpo de tal tipo, ser o que é” (ARISTÓTELES, 2006, 412b10-11). Assim como “o olho é a matéria para a visão e, ausente a visão, não é mais olho, exceto por homonínia” (ARISTÓTELES, 2006, 412b 19-20), um corpo orgânico “é aquele que tem órgãos, isto é, os instrumentos naturais para certos fins e as partes em vista de certas funções” (REIS, 2006, p. 207). Portanto, se um corpo orgânico deixa de possibilitar o desempenho de certas funções e fins, como no caso em que perece, ele deixa, a rigor, de ser um corpo orgânico. O corpo animado depende necessariamente da alma do ser vivo para ser aquilo que ele é: um instrumento para a efetivação das almas.

3 - A primazia da alma sobre o corpo

Observado o modo como alma e corpo se relacionam através de uma dependência ontológica mútua, é preciso explicar em que sentido a alma tem primazia sobre o corpo. A resposta que ofereço se baseia na explicação funcional. A explicação funcional, “grosso modo”, estabelece “que o caráter do que é explicado está determinado pelo seu efeito sobre o que o explica” (COHEN, 2013, 325). Pretendo argumentar que a alma explica funcionalmente o corpo no seguinte sentido: explicar funcionalmente x (o corpo) significa explicá-lo em referência a seus efeitos y (possibilitar a realização da alma) para z (a alma). O corpo é explicado funcionalmente pela alma porque ele é como é para que possa desempenhar certas funções à alma.

Para que uma forma possa se realizar, isto é, possa desempenhar sua função, é preciso que uma matéria adequada lhe sirva de substrato material. A forma de um serrote, por exemplo, é sua função de serrar, mas um serrote não pode ter como matéria o algodão, pois este não seria duro o suficiente para a função de serrar: “para quem definiu que a função de serrar é uma divisão de tal e tal tipo, esta, precisamente, não poderá ser o caso, se não dispuser de dentes de tal e tal tipo; estes, por sua vez, não poderão ser o caso, se não forem de ferro” (ARISTÓTELES, 2009, 200b5-7). Do mesmo modo, a alma “subsiste no corpo, e num corpo de tal tipo” (ARISTÓTELES, 2006, 414a22- 23): ou seja, num corpo específico, adequado à alma.

E na medida em que a alma, para se realizar, depende de um corpo que lhe seja adequado, a alma serve como princípio que engendra como o corpo orgânico será: “A alma é causa e princípio do corpo que vive” (ARISTÓTELES, 2006, 415b8). Aristóteles afirmará que a alma é causa final do corpo:

É evidente que a alma é causa também como o em vista de algo; pois, assim como o intelecto produz em vista de algo, da mesma maneira também a natureza o faz, e este algo é seu fim. E nos seres vivos a alma é, por natureza, algo deste tipo; pois todos os corpos naturais são órgãos da alma - tanto os órgãos dos animais como os das plantas - como se existissem em vista da alma (ARISTÓTELES, 2006, 415b15- 20).

A alma é o em vista de quê do corpo orgânico. E do mesmo modo que o intelecto, o qual, “ao presidir a produção de algo, arranja os componentes materiais em vista de certo fim”, a natureza age teleologicamente, organizando a matéria de tal modo que se torne apropriada a certo fim, a saber: “se a alma é a forma determinante e imanente do corpo vivo, então também é o fim em vista de que o corpo vivo é organizado” (REIS, 2006, p. 221).

Pode-se concluir, então, que a explicação funcional permite a Aristóteles conceder primazia explicativa à alma sobre o corpo, ainda que haja certa dependência mútua entre ambos. Ou seja, a alma explica o caráter do corpo, mas o corpo não explica o caráter da alma. A relação explicativa entre forma e matéria é assimétrica. A forma explica por que a matéria é do modo que é, uma vez que a matéria se organiza de certo modo em função da forma: “a matéria (...) se subordina à função e ao acabamento” (ANGIONI, 2009, p. 374). Por outro lado, a matéria não explica por que a forma é do modo que é. A causa final é a “causa responsável pela matéria, ao passo que esta última não é causa responsável pelo acabamento” (ARISTÓTELES, 2009, 200a32-33). Ou seja, a causa final - que é o acabamento: “o acabamento é aquilo em vista de quê” (ARISTÓTELES, 2009, 200a35) - é responsável pela organização da matéria, a qual se organiza para se tornar adequada ao acabamento, mas a matéria não é responsável pela causa final.


Bibliografia

ANGIONI, Lucas. Física I-II. Tradução e comentários de Lucas Angioni - Unicamp, 2009.

ARISTÓTELES. De anima. Editora 34, 2006.

                              Física I-II. Unicamp, 2009.

COHEN, G. A. A teoria da história de Karl Marx: Uma defesa. Unicamp, 2013.

LOUX, M. J. Primary ousia: An essay on Aristotle’s Metaphysics Z and H. Cornell University Press, 1991.

REIS, M. C. G. De anima. Tradução e comentários de Maria Cecília Gomes dos  Reis - Editora 34, 2006.


Notas

[1] A argumentação se baseia em como G. A. Cohen (2013) resolve um problema relativamente similar quanto à relação entre forças produtivas e relações de produção.

[2] “o corpo e a alma constituem o animal” (ARISTÓTELES, 2006, 413a3).

[3] Aristóteles identifica o corpo com a matéria na seguinte passagem: “o corpo não é um dos predicados do substrato, antes, ele é o substrato e a matéria” (ARISTÓTELES, 2006, 412a17-18). O contexto da passagem nos permite interpretar que o corpo é a matéria própria dos seres vivos, já que o corpo, nesta passagem, denota “um corpo de tal tipo - que tem vida” (ARISTÓTELES, 2006, 412a16-17).

[4] Como Lucas Angioni explica: “matéria é um conceito correlativo, cujos denotata não podem ser especificados fora de uma relação precisa na qual exercem a função relevante para receberem a denominação de matéria” (ANGIONI, 2009, p. 186). Quando afirmamos, portanto, que o corpo orgânico é a matéria do ser vivo, estamos afirmando que o corpo orgânico, enquanto matéria, é compreendido correlativamente ao ser vivo, desempenhando certas funções para este. E caso deixe de desempenhar essas funções, o corpo orgânico deixa de ser a matéria do ser vivo, deixando, também, de ser um corpo orgânico, já que este é essencialmente a matéria do ser vivo.


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