A responsabilidade de sustentar uma democracia: sobre as razões para mantê-la e o custo diário deste esforço para o cidadão comum

Deivide Garcia da S. Oliveira

Professor de Filosofia da UFRB

06/05/2021 • Coluna ANPOF

Reza a lenda que quando as pessoas perguntaram para Benjamin Franklin que tipo de governo os EUA tinham, após a reunião que tomou esta decisão, ele respondeu “uma República, se vocês puderem mantê-la!”. Agora, o que está implícito nessa resposta? Brevemente, trata-se de uma celebração e de um alerta. Uma celebração pela notável conquista de ter uma República democrática. E um alerta pela necessidade da responsabilidade individual para com a República democrática. É por isso que a moeda da democracia tem, numa face, a responsabilidade, com certo preço para o cidadão comum, mas, noutra, benefícios e boas razões para pagar o preço da responsabilidade, para celebrar. Em poucas palavras, a democracia não sobrevive se as pessoas buscarem apenas usufruir de seus benefícios, sem assumir a responsabilidade de mantê-los.

Ainda assim, fato é que democracias, para o bem ou para o mal, possuem esta dupla natureza. Nas palavras sábias do Tio Ben (Homem-Aranha), “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. E a responsabilidade de trabalhar em favor e para a democracia é uma das grandes. Sendo até mesmo uma prova de amor com esta e com as próximas gerações. Todavia, como toda responsabilidade, não há descanso, dia de folga do trabalho, e mais que tudo, não há a possibilidade de delegação desta responsabilidade. A democracia é responsabilidade de todos e de cada um de nós. Não se pode delegá-la para os nossos representantes, lavando as mãos após os elegermos; não podemos delegar para a estrutura legal, pois sem nós, os seus protetores, a lei é apenas tinta no papel; e não podemos tampouco delegar para a uma entidade abstrata que seria a própria democracia, como se ela existisse como uma entidade autônoma.

Neste ponto, pode-se perguntar, não seria verdade que os representantes eleitos deveriam proteger a democracia? Sim, é verdade que representantes eleitos deveriam proteger a democracia e nossas liberdades, mas não há garantias de que ocorrerá. Ademais, eles sozinhos, nos alertou o Sr. Franklin como representante do povo que o era, não são capazes de fazer isso. A indispensabilidade dos cidadãos no processo de manutenção e fortalecimento da democracia é tão inexorável quanto exaustiva. Ainda assim, sinto dizer que se quisermos usufruir de um sistema que reflita a vontade popular nas políticas públicas, que garanta as liberdades individuais, que respeite as leis e o diálogo, que proteja as regras do jogo democrático (Mounk, 2018), então essa tarefa deve ser tomada em nossas próprias mãos. Longe dos olhos dos cidadãos, a democracia ruirá para um dos lados políticos, ela perderá uma característica valiosa e consensual vista em grupos que se definem de esquerda e de direita (pelo menos em suas versões não-extremistas) (Bobbio, 1996), a saber, sua alternância perpétua do poder, somada à paralela vigilância do grupo ora derrotado a fim de evitar abusos. Estas questões me parecem implicações diretas da fala do B. Franklin.

Cabe dizer, não trouxemos novidade até aqui, exceto talvez o fato de que tal responsabilidade seja penosa para pessoas comuns, aquelas que diariamente estão preocupadas em como colocar comida na mesa. Além disso, essa tarefa de zelo pela democracia é ainda mais difícil nos dias de hoje, e também por isso precisamos da ajuda de especialistas, jornalistas e bons profissionais, de excelente educação, etc. Precisamos de canais confiáveis de notícias que nos ajudem a analisar uma estrutura legal cada vez mais detalhada, de uma educação que nos ensine a ler a pluralidade emaranhada de sistemas formais e informais, disputas sobre as fronteiras dos poderes político, judicial e executivo. Precisamos ser capazes de entender a existência da verdade, mas também sua pluralidade, sem com isso se deixar levar por aqueles que buscam confundir a verdade plural com relativismo radical, com notícias falsas. Um exemplo de verdade inegável? Vivemos uma pandemia de um vírus mortal, e a ciência e a consciência, apesar de ambas falíveis, ainda são nossa melhor resposta.

Contudo, entender como cuidar de nossa democracia tem um custo. Tempo livre para entendê-la. Coisa que, mesmo se conseguirmos, cobrará seus sacrifícios. Por quê? Porque para cumprir essa responsabilidade, mesmo que não acarretasse perda salarial para o trabalhador, ela acarretaria um sacrifício precioso do nosso tempo com a família, com nós mesmos, entretenimento em geral, etc. Isso revela, por um lado, uma tensão entre o desejo de viver em uma sociedade democrática e livre, mas de outro, a cobrança de nossos próprios problemas sem ter responsabilidade adicional com a democracia.

Como resolver esse conflito? Não queremos outra responsabilidade, alguém pode de imediato me avisar. Elegemos representantes para fazer este trabalho, quiçá dirão. Seria bom se fosse simples assim. Mas não é! As democracias morrem, antes de mais nada, porque nós, o povo, todos e individualmente, deixamos de nutri-las diariamente (Levitsky & Ziblatt, 2018). Se todo poder emana do povo, pelo povo, para o povo, então sem a dose diária de atenção do povo, ela morrerá gradualmente.

Se mesmo assim, o povo não quer saber, não se importa, ou não consegue saber o que fazer com o seu poder, há para esta escolha outras formas de governo que, de fato, retiram do povo qualquer necessidade de se preocupar ou se responsabilizar com a sociedade. São modelos em que a responsabilidade fica toda depositada no governante. Infelizmente, o custo desta escolha será o sacrifício de nossas liberdades, pluralidade ideológica, diversidade de credos religiosos, direitos e vozes individuais, manifestações populares ou de oposição política, organizações civis, etc. Por quê? Porque, sem responsabilidade também não há poder. Historicamente, foi o que aconteceu quando negligenciamos esse poder, havendo espaço apenas para aquilo que o governante deseja, i.e., “Je suis la Loi, Je suis l'Etat; l'Etat c'est moi”, teria dito Luís XIV.

Bem, se até aqui eu consegui te convencer de que alimentar a democracia é, principalmente, um trabalho meu e seu, nosso, a próxima pergunta seria: “ok, como fazer?” Para o cidadão comum, a sua execução possui um custo que devemos reconhecer. Os representantes sabem deste custo e as vezes até usam-no de modo suspeito. A todo instante repetem na TV que o cidadão comum está muito ocupado botando o pão na mesa para se preocupar com política.

O motivo é que, para dar atenção à democracia, o cidadão compromete parte do seu tempo de folga. O motivo é que assumir a democracia é presumir que precisamos estar bem informados, que seria um requisito fundamental para nossa responsabilidade. Precisamos ler não um, mas muitos e diferentes jornais, nacionais e internacionais, livros sobre vários temas escritos por especialistas, organizações internacionais, pensarmos sobre eles, compará-los, compartilhar pensamentos, confiar, desconfiar, fazer pesquisas, entender as decisões de nossos representantes, conhecer seus interesses, pautas, laços com os negócios, ajudá-los a manter suas independências antes e durante o processo eleitoral, entre outros! São muitas as tarefas.

Agora combine isso com uma pessoa que trabalha 8-10 horas por dia, dorme 6-8 horas por dia, possui família, precisa relaxar, cuidar ou encontrar o amor, ser amigo, ser feliz e, nos dias de hoje, ainda continuar a ser demandado pelo trabalho via mensagens de celular. Quando ele poderia assumir mais esta responsabilidade? Para falar a verdade, durante a semana, a tarefa é muito necessária, mas quase impraticável. A única saída seria, claro, nos fins de semana. E a questão é: quem vai abrir mão do descanso (da cabeça e do corpo), para pesquisar sobre a saúde da democracia? Há aqui um dilema que, acredito, só se resolve lançando mão dos benefícios da democracia. Devemos e podemos exigir melhores condições gerais de trabalho para que, ganhando mais tempo e sem prejuízo salarial, possamos cumprir o nosso dever para com a democracia. Afinal, uma estrutura social que proteja seus indivíduos é a base de uma sociedade livre, como destaca Feyerabend (1978).

Então, pergunto diretamente ao senhor(a) leitor(a): você deseja que os políticos representem nossas necessidades e as da sociedade ao distribuir fundos e legislar? Você quer manter o direito de liberdade de expressão, o direito de crença religiosa que quiser? O direito à privacidade, de ir para onde quiser, de uma imprensa livre e independente, de protestar pacificamente, de amar quem quiser, de ser respeitado nas suas escolhas individuais? Se você valoriza tudo isso, então mais uma responsabilidade te espera, uma responsabilidade primordial com a democracia e com a educação.

No entanto, se acreditas que vale abdicar de tudo isso para não ter que assumir a responsabilidade com a democracia, terás o governo que construiu, embora não seja uma democracia. O que diferencia uma democracia sólida das decadentes é o preço que queremos pagar como indivíduos e como sociedade. Precisamos formar cidadãos dispostos a assumir a responsabilidade pela democracia e pela verdade. Sobre isso, é público e notório, muitas pessoas em todo o mundo anseiam por esse sacrifício. Portanto, como dito, discorremos sobre as vantagens e custos da democracia. Se entendes ser difícil de cumpri-las, não há motivos para se envergonhar. Tornaram-nas assim. Tampouco, nunca disse que seria fácil.

Bibliography
Bobbio, N. (1996). Left and right: The significance of a political distinction: University of Chicago Press.
Feyerabend, P. (1978). Science in a Free Society. London: NLB.
Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). How democracies die: Broadway Books.
Mounk, Y. (2018). The people vs. democracy: Why our freedom is in danger and how to save it: Harvard University Press.