A sociedade contra o mercado autorregulado: O dilema do Rio Grande do Sul
Bruno Fernandes
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
07/06/2024 • Coluna ANPOF
Os temporais transformaram o Rio Grande do Sul em um cenário de guerra: pessoas mortas e desaparecidas, crianças em abrigos à espera dos pais, corpos de animais em decomposição nas ruas, toneladas de resíduos e de lama, esgoto a céu aberto. Um Estado inteiro debaixo d’água. Com isso, as doenças típicas dessa situação começaram a aparecer: leptospirose, hepatite, gastroenterite, dengue, etc. O país inteiro se mobilizou para doar itens de primeira necessidade aos gaúchos pelos canais oficiais do governo e de forma independente. Destarte, em meio a essa situação, chamou atenção uma entrevista dada pelo governador Eduardo Leite (PSDB) à BandNews, em que afirma que “quando você tem um volume tão grande de doações físicas chegando ao Estado, há um receio sobre o impacto que isso terá no comércio local.” Essa afirmação é uma oportunidade para analisar a relação entre a sociedade e o mercado, já que ele recorre a uma lei econômica clássica, a da oferta e da procura, ao dizer que o aumento da oferta de produtos doados diminuiria a procura pelos mesmos produtos produzidos no próprio Estado. Uma via crítica possível é apresentada por Karl Polanyi.
O livro de Polanyi, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time, mostra-nos que as sociedades não podem depender de reguladores automáticos, como um mercado autorregulado, para garantir seu funcionamento adequado, sob pena de aniquilar a si mesma e a natureza. Segundo ele, a civilização do século XIX apoiava-se em instituições econômicas e políticas que, ao fim e ao cabo, desenvolveram-se em oposição à saúde do corpo social. O mercado autorregulado, o padrão internacional do ouro, o Estado liberal e, por fim, o sistema de equilíbrio de poder levaram a substância e o ethos desta sociedade ao colapso. O mercado autorregulado, especialmente, teria sido a fonte e a matriz de uma crise sem precedentes, crise que inauguraria uma civilização baseada em outros princípios no século XX. O prognóstico de Polanyi, cabe ressaltar, não se realizou completamente, já que o Estado de bem estar social – que também precisa ser analisado – logo deu lugar a ideologia neoliberal. No entanto, os efeitos da incompreensão da relação entre a sociedade e o mercado continuam, por esse motivo, nefastos.
O dilema ou a incompatibilidade entre o sistema econômico e o sistema social começa com a ideia de uma economia de mercado que desincrusta-se – o termo original é disembeddedness – da sociedade e, ao contrário do que aconteceu até então, vislumbra subordiná-la por completo, e não constituir-se apenas como uma função dentre outras da vida social. Uma sociedade que funciona desta maneira assume que a produção e a distribuição é controlada, regulada e dirigida apenas por mercados. Não admite, desse modo, nenhuma interferência governamental que não seja para a sua manutenção. A produção é, portanto, para a venda, os bens disponíveis são precificados de acordo com os gastos de fabricação e os rendimentos e, claro, o dinheiro, o meio e o poder necessário para a relação entre os possuidores e os não possuidores de mercadorias. Nessa totalidade, ou modo de produção, os seres humanos orientam-se a fim de atingir o máximo de ganhos monetários possível. Podemos perceber, com isso, a dimensão do ataque da produção humana à natureza e, consequentemente, a si mesmo, e a enorme dificuldade que essa sociedade encontra em dirigir as suas forças para a prevenção de catástrofes climáticas, catástrofes em grande parte provocadas por ele mesmo, porque o que importa é o ponto de vista do próprio lucro.
A incorporação do dinheiro, da terra e do trabalho ao mercado foi decisiva para o desenvolvimento de uma sociedade sui generis como essa. Polanyi mostra-nos que, antes, sob o feudalismo e o sistema de guildas, o dinheiro não havia se desenvolvido como elemento principal da indústria, a posse da terra era determinada por regras legais e costumeiras e o trabalho era regulamentado pelo costume e pelas regras da guilda e da cidade. Uma série de antropólogos, inclusive os que foram referência nas pesquisas de Polanyi, como Malinowski, Thurnwald e Mauss, mostram sociedades baseadas na reciprocidade e na redistribuição, sociedades em que o intercâmbio de produtos não se dava por meio do marcado. Com a compra e a venda do trabalho e o uso lucrativo da propriedade fundiária se inaugurou uma nova dinâmica social, que se orienta pela ficção de que o trabalho e a terra são produzidos para a venda. Agora, homens, animais, coisas, etc., orbitam em torno das leis automáticas do mercado. Se a oferta de café por algum motivo torna-se maior que a procura, seu preço diminui para o consumidor. O produtor, como muitas vezes já aconteceu, vê vantagem em queimá-lo para aumentar o preço e, assim, reestabelecer seus rendimentos. Nesse caso, pouco importa se o produto será desperdiçado ou se nem todos terão condição de comprá-lo pelo novo preço. O mesmo acontece quando alguns economistas defendem a chamada taxa de desemprego de equilíbrio no Brasil sob o argumento falacioso de desacelerar a inflação. Nesse caso, pouco importa seus efeitos para essa “mercadoria” tão peculiar como o ser humano.
A maneira que os que foram afetados pelo mercado autorregulado encontraram para se proteger foi recorrer a legislações, instituições e movimentos, pois se, de um lado, tínhamos o ponto de vista do próprio lucro da classe burguesa, de outro tínhamos a ameaça do desemprego e da fome dos trabalhadores e da classe média, movimento e contramovimento fundamentais para forjar essa nova estrutura social. Uma série de exemplos podem ser mencionados, como a luta pela diminuição da jornada de trabalho, a reivindicação de leis fabris que protegiam o trabalho e suas condições, etc. Uma das teses mais importantes de Polanyi é, portanto, que a sociedade buscou proteger-se do mercado. Esse dilema terminou nas maiores crises econômicas e políticas e na Primeira Guerra Mundial.
É por conservarmos a pretensão de colocar a sociedade nas mãos do mercado que a análise de Polanyi torna-se fecunda. O governador do Rio Grande do Sul, bem como os ideólogos que ainda hoje defendem a resolução dos problemas sociais através do mercado, são incapazes de perceber que a sociedade se protege da ficção de reguladores automáticos. Do ponto de vista econômico, a afirmação de Eduardo Leite é equivocada, porque a ideia de produtor implica a de consumidor e, no caso dos alagamentos no Sul, os consumidores não têm sequer condições materiais para comprar dos produtores. Do ponto de vista histórico e crítico, a natureza e a sociedade subordinada às leis econômicas produziu as maiores crises econômicas, políticas e culturais e se viu obrigada a recuar para amenizá-las ou se livrar delas. O reconhecimento dos limites da natureza e da natureza humana voltaram, assim, à ordem do dia, política e filosoficamente. A relação de subordinação da sociedade em relação ao mercado demanda uma inversão radical, em que o controle democrático preocupado com a saúde do corpo social prevaleça em relação às leis econômicas capitalistas.
Referências
POLANYI, Karl. The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time. Foreword by Joseph E. Stiglitz. Introduction by Fred Block. Boston: Beacon Press, 2001.
____. A grande transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
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