Adentrar ao Recife pelo fim, como o anjo da história

André Ricardo Dias

Professor de Filosofia junto ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano - IFSertãoPE. Docente permanente do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFPR) no núcleo IFSertãoPE.

26/09/2024 • Coluna ANPOF

– Em alusão ao XX Encontro da Anpof sediado na cidade em setembro de 2024

No Parque das Esculturas Francisco Brennand[1], erguido sobre o molhe da bacia do Pina em seu encontro com o oceano Atlântico, um complexo de esculturas perfaz uma obra plástica e arquitetônica marcadora da virada do milênio. Garças, totens, frutos, figuras míticas e pórticos ocupam o estreito e vertiginoso arrecife circundado pelo mar e pela deságua dos rios. Dentre tais representações, cinco mulheres, ditas sereias, nomeadas como Cora, Severina, Justina, Marina e Alberta, são imagens figurativas perfiladas diametralmente em seus bustos tesos. Ao lado, uma torre quebrada, de um pálido branco, é informe e torta, pendente para o lado inverso ao das sereias. Segundo o autor de todo o conjunto, o mesmo que dá nome ao Parque, elas representam, cada qual, estes últimos cinco séculos. A torre é o porvir.

Como tais, as sereias não poderiam cantar como na mitologia. Mas gritam. De cabeça voltada para o alto, elas saem de tubos cerâmicos nos quais parecem aprisionadas, agarrando-se às suas bordas buscando soerguerem-se. Suas expressões refletem aflição e clemência. Os bustos nus imprimem a um tempo força e altivez, mas também reproduzem o desespero das vestes rasgadas, lembrando que, apesar do horror do qual aparentemente tentam se livrar, continuam firmes. Os séculos gritam em horror. O futuro já é fraturado e aponta para um rumo diverso do passado. O mar, junto ao estilo primitivo-moderno do artista, coroa de sargaço a metáfora.

No campo da Arte pública, comumente placas explicativas turvam os nossos processos de interpretação e fruição estética.  Aqui, uma traição aos enigmas subversivos da obra. O Parque situou-se naquele contexto em que se marcava os 500 anos da conquista deste território pelos colonizadores. No início deste século, a compreensão crítica do episódio pouco alcançava a opinião pública, mesmo a escola e a universidade. A narrativa oficial estava garantida pela institucionalidade pública. A grande mídia e seus totens na forma de relógios espalhados pelo país, marcava em contagem regressiva os dias e as horas para a virada dos séculos. Adentramos neste novo milênio em louvor ao velho.

Aquelas mulheres-sereias, em seu desespero nu, são o verdadeiro pórtico de entrada de todo aquele conjunto. Ali, restam esquecidas, ao lado. São diametrais ao totem central e estão fora do piso principal, sobre pedras que contêm o mar e por ele são constantemente banhadas por ondas com força de destruição. De algum modo dialogam com aquele todo a partir de uma negação. Seus lábios não se abrem como na fábula do beijo traiçoeiro. As mulheres-sereias abrem suas bocas para o desespero, mas também para o ataque.

Elas se afastam da cidade sem mirá-la, mas não sem horror, prestes a serem engolidas pela fúria oceânica através daquele abate covarde desferido pelas costas. Proferem aquele inaudito grito benjaminiano ao progresso do outro lado do Capibaripe (com João Cabral de Melo Neto, um rio-lâmina) o qual se recusam olhar. Um conjunto dialético nos espera e nos reflete. Em tempos de fetiche do conceito, seus gritos nos recordam – a nossa consciente amnésia – que somos nós os colonizadores. O enigma das sereias não fora decifrado e a torre alquebrada soçobra ao lado sem muita importância para o espectador. Mulheres de Atenas, de Gaza, do sul global, da bacia do Pina.

Que a Filosofia ainda possa nos fustigar a nos implicarmos no real. Rasgue o véu do rosto da victime[2], desvelando a falsa pureza do brado de suas ruminações queixosas – falsas negações decoloniais. Junto ao passado, a torre inacabada aguarda tanto por um projeto de conclusão quanto por sua iminente e definitiva destruição. Saibamos se importa salvar a torre ou o que restar de seu chão.


Notas

[1] O Parque das Esculturas foi inaugurado no ano 2000. Fez parte do projeto intitulado Eu vi o mundo... ele começava no Recife, título que faz referência à obra de Cícero Dias, um dos artistas participantes do projeto de reconfiguração urbanística da área do antigo Porto do Recife.   

[2] “La victime” é o título de uma obra cerâmica do mesmo autor. Trata-se de um busto com o rosto enlaçado por uma venda. Partindo do vasto conhecimento literário, mitológico, científico e filosófico do artista encetados em toda a sua obra, a peça evoca tanto uma leitura psicanalítica – o ressentimento – quanto uma referência a duas obras, a peça La victime (1914), de F. Vanderém, inscrita no realismo social francês do séc. XIX, de cujo enredo podemos aproximar a ideia contemporânea de ressentimento de classes, e La victime et ses masques (1988), de A. Hammoudi, que analisa a relação de continuidade entre sacrifício e festividade em um ritual da tradição islâmica. Estas correlações são aqui aproveitadas em diálogo com nossa leitura acima. Em referência a estes, Sigmund Freud, Gustave Flaubert, e o mundo árabe são temas de outros trabalhos de Francisco Brennand.