(Ainda) sobre a polêmica dos videogames como esportes
Guilherme Foscolo
Prof. Filosofia/UFSB e membro do GT de Estética
Nicolau Spadoni
Doutorando em German Studies/Cornell University
12/02/2023 • Coluna ANPOF
A polêmica que se movimentou desde a terça-feira, dia 10 de janeiro – quando a Ministra do Esporte, Ana Moser, declarou que e-sports não são esportes, mas entretenimento – encontrou tal ressonância nas mídias sociais que lembrou outra do início do século XXI, quando o crítico de cinema Roger Ebert, em várias ocasiões, afirmou que videogames não eram arte, levando à atenção pública a controvérsia sobre o estatuto artístico dos videogames. É interessante que, em ambas, boa parte das críticas aos jogos eletrônicos coincidiram ao menos em uma premissa fundamental: videogames são entretenimento e, portanto, não podem ser arte ou esporte. Em sua forma geral, este é um debate já datado: seu ponto de partida está sobretudo em Kant, cuja distinção entre o belo e o agradável, na Terceira Crítica, ganhou toda uma nova importância com as críticas à absorção de formas e produção artísticas pela indústria avançadas nos séculos XIX e XX — e que se tornaram tão famosas através da Escola de Frankfurt. No estado atual das discussões na Estética, a saída para ela é bastante simples: ninguém mais, hoje em dia, tenta seriamente defender que o fato de uma dada mídia ou conjunto de práticas ser industrializável constitui condição suficiente para afirmarmos que, com isso, elas não possam ser também (e sobretudo) outra coisa — como um esporte ou uma arte. Do ponto de vista filosófico, “esporte” e “arte” participam do mesmo problema de definição que “jogo”: são conceitos sob os quais não se conseguiu reunir, em uma mesma definição, características necessárias e suficientes para dar conta da amplíssima gama de possibilidades que podem abrigar. A questão complica-se ainda mais pelo fato de os videogames constituírem uma espécie de tecnologia intermídia que não se deixa reduzir a uma plataforma específica: consoles dedicados, computadores, tablets ou celulares; e, por fim, pelo fato de possuírem a capacidade de simular quaisquer outras mídias, qualidade que Alan Kay, em “Computer Software”, famoso artigo de 1984 para a Scientific American, atribuiu então aos computadores, descrevendo-os como a primeira “metamídia”.
Tal qualidade inter-meta-mídia torna muito difícil, para não dizer impossível, qualquer tentativa de excluir por completo a possibilidade de videogames também serem arte ou, para seguirmos com a polêmica do momento, um tipo de esporte. As críticas que propuseram que videogames não poderiam ser também um esporte se justificaram basicamente nos seguintes quatro argumentos: por prescindirem do componente “corpo”; por pertencerem a empresas privadas; por oferecerem apenas experiências programadas; por serem apenas um brinquedo. A acusação de que videogames prescindem do componente “corpo” (o que inclui os argumentos de que os videogames não exigem esforço físico ou que não fazem bem à saúde) e por isso não seriam um esporte teria que se ver com alguns problemas: primeiro, qual atividade feita a nível profissional não exige esforço físico? Por exemplo, a capacidade de concentração prolongada de um jogador de xadrez não é um esforço físico? Sessões de estudo de um acadêmico não são completamente extenuantes? E se “esforço físico” remete à ideia de “cansaço físico” (também difícil de definir — é por aumento de batimentos cardíacos, pressão e oxigenação do sangue?), como lidar com atividades fisicamente extenuantes que não têm nada a ver com esportes, que inclusive podem ser competitivas? Além disso, cada vez mais se popularizam games que fazem uso do corpo inteiro – é o caso, por exemplo, dos fitness games ou dancing games, e a perspectiva se abre com o crescimento vertiginoso dos videogames de óculos VR. Segundo, no que diz respeito a não fazerem bem à saúde, sabe-se que esportes praticados em alto nível, até mesmo em nível não profissional, têm efeitos de longo prazo negativos para seus praticantes – ao mesmo tempo, os efeitos positivos dos videogames para o corpo já têm sido estudados e divulgados (conferir, por exemplo, “Brain Tune-up From Action Video Game Play: Shooting zombies and repelling aliens can lead to lasting improvement in mental skills”, texto de 2016 da neurocientista francesa Daphne Bavelier para a Scientific American. Há também uma palestra TED da mesma pesquisadora intitulada “O cérebro nos videojogos” disponível online). O argumento de que os videogames pertencem a empresas privadas enquanto os esportes constituem algo como “bens públicos” pressupõe, por um lado, um purismo institucional inexistente da prática de esportes como algo descentralizado e espontâneo, e dos esportes profissionais como produtos da auto-organização de uma expressão agonística, quando na prática os esportes não existem sem enorme organização institucional e uma indústria de bens de consumo esportivos que se beneficia de sua visibilidade como principal instrumento de marketing para o business de vendas em varejo ao esportista amador; e, por outro lado, porque também pressupõe erroneamente que o fato de que um jogo tenha “dono” faz alguma diferença para a experiência de intensidade concentrada dos jogadores. Também a crítica de que, como disse a ministra, os videogames proporcionam apenas experiências repetitivas e previsíveis por conta de serem experiências codificadas é facilmente refutada por qualquer pessoa que já tenha jogado um jogo eletrônico na vida, visto que, assim como nos esportes, um conjunto de regras pré-determinadas – ou um programa – não só não impede, como constitui até mesmo um pré-requisito para a infinita variabilidade de ações. Por fim, não cabe dizer que os videogames sejam apenas brinquedos: brinquedos são objetos de uso livre e aberto; a partir do momento em que se introduzem regras e o elemento competitivo, tal característica se perde. Nesse sentido, uma bola, por exemplo, é um brinquedo até que se especifique o conjunto de regras para seu uso, suas dimensões e material etc., e que se converta em meio para a realização de uma atividade de competição.
Sabe-se, no entanto, que muitos e proeminentes gamers constituíram uma sólida base de apoio ao governo Bolsonaro, aceno que este, depois de haver extinguido o Ministério dos Esportes, devolveu com o corte de impostos sobre consoles. A exclusão dos e-sports das futuras ações do Ministério dos Esportes poderia ter, sob este prisma, contornos politicamente simbólicos. Acontece que, como admitido pela própria ministra, desde muito antes – já quando dirigia a ONG Atletas pelo Brasil – ela se posiciona pelo fechamento da definição de esporte na Lei Geral do Esporte que corre no Senado com a exclusão dos e-sports com base na categoria do “esforço predominantemente físico”, categoria que, como dito, é ulteriormente pouco plausível. Agora, se os e-sports não serão objeto do Ministério dos Esportes, fica a dúvida: qual Ministério, então, se encarregará do seu fomento? Ou, para o novo governo, trata-se de arbitrariamente excluir do rol de suas ações uma vertente competitiva contemporânea cuja existência já se impõe mundialmente? Se for este o caso, falhará em ver até os efeitos pragmáticos de tal apoio, como, por exemplo, que o fomento aos gamers pode ser planejado no sentido de estar aliado à expansão do acesso à internet e computadorização, um dos pilares do novo governo. O problema da definição não é superficial ou inoportuno, como boa parte das reações de uma camada da classe média ilustrada brasileira deu a entender. Ao contrário, o problema da definição é central: tanto para que as políticas públicas não fiquem soltas ao bel-prazer e à arbitrariedade (pessoais, políticas, partidárias) dos gestores, quanto para enriquecerem o debate público com uma reflexão mais séria sobre a dinâmica contemporânea das mídias em geral.