AO CENTRO DO PODER: A tirania da maioria parlamentar

Érico Andrade

Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

07/10/2016 • Coluna ANPOF

A constituição de 1988 não conseguiu ser referência para guiar a política nacional no sentido do fortalecimento do poder do voto e, com ele, da soberania popular, nem muito menos parece ter sido eficaz na garantia do Estado laico; constantemente ameaçado. Isso ocorreu não tanto pela constituição, pelo texto propriamente dito, mas pela decisão da política brasileira, radicalizada pelo impedimento da presidenta Dilma, de abandonar o respeito à legalidade e aos procedimentos próprios de uma república, e se refugiar na forma de uma proto-democracia em que os seus concernidos, os que votaram na presidenta Dilma, foram obrigados a se submeter à tirania da maioria parlamentar e não mais à constituição. Ou seja, as razões constitucionais e republicanas, que teoricamente contemplam todos os cidadãos que pactuam a constituição, são pálidas diante do poder que os parlamentares outorgaram para si de 1) destituir a presidenta sem que houvesse algo próximo de um consenso quanto aos supostos crimes de responsabilidade e invertendo a lógica do in dubio pro reo; 2) desatrelar arbitrariamente, numa espécie de abrandamento da punição, o impeachment da perda dos direitos políticos da presidenta.


O parlamento brasileiro parece ter criado uma república própria que funciona para si mesma e em benefício de si mesma. Para tanto, ele lançou mão de várias estratégias. Permitam-me destacar algumas delas: 1) O uso do foro privilegiado como escudo legal para a política da propina, por meio da qual se compra o voto dos parlamentares, uma vez que a morosidade do STF em julgar os casos dos políticos, que só podem ser julgados lá, serve de passe livre para a corrupção; 2) Um descompromisso generalizado com posições políticas ideológicas, basta ver a exorbitante quantidade de siglas partidárias, incompatível com o número de possibilidades de ideologias, e o discurso em defesa de decisões técnicas que têm como foco a construção da falsa ideia de que é possível esvaziar o componente político das decisões administrativas. Discurso, aliás, incorporado pelo próprio PT e usado, sobretudo, para bancar a candidatura de Dilma na sua primeira eleição. A ausência de qualquer compromisso ideológico facilita a formação e o trânsito de uma coalizão de centro, incapaz, quando bem contemplada financeiramente, de se indispor de modo radical com o governo, mas suficientemente forte para não passar nenhuma reforma importante que garanta direitos civis essenciais de minorias (como o casamento homoafetivo), sendo essa coalização de centro ainda confortavelmente plástica para se moldar a qualquer governo; 3) O uso político do judiciário (o caso do espetáculo midiático dos procuradores e juízes de Curitiba que fazem declaradamente justiça seletiva). Em outras palavras, os parlamentares instigam a politização da justiça (lembremos das conversas do ministro do STF Gilmar Mendes com Serra antes do julgamento dos embargos ao rito do processo de impeachment da presidenta), que é, paradoxalmente, alimentada por uma judicialização da política, visto que a inépcia dos parlamentares em legislar abre um vácuo político ocupado perigosamente pelo judiciário, claramente partidário e sobre o qual a sociedade não tem o controle por meio do voto (lembrem-se de que o juiz Itagiba Cata Preta Neto não teve constrangimento, mesmo tendo participado fortemente das manifestações contra o governo Dilma, de deferir a suspensão da posse de Lula como ministro do governo da presidenta).

Essas estratégias fortalecem o parlamento na mesma proporção que enfraquecem o republicanismo, visto que a atuação dos parlamentares passa a ser de autodefesa; sem nenhum compromisso com a coisa pública. Nesses termos, explica-se, por um lado, o uso da liberação das verbas parlamentares e da distribuição de cargos como as moedas de negociação mais fortes do governo, uma vez que por meio dessas verbas eles conseguem investimentos nos seus currais eleitorais, garantindo a reeleição e por meio dos cargos conseguem exercer livremente o tráfico de influências. Por outro, o abusivo investimento privado nas campanhas eleitorais; graças ao qual é possível a compra de votos (prática ainda comum no Brasil e pouco combatida) e por meio do qual os parlamentares assumem, quando eleitos, a função de lobistas; como no caso explícito da bancada da bala, bíblia e boi. (1)

Sem nenhuma forma de controle popular, o parlamento goza das prerrogativas de um déspota o que lhe outorgou o direito de promover uma espécie de golpe parlamentar, orquestrado, por um lado, pela dificuldade política da oposição em se lançar como alternativa eleitoral viável e, por outro, pelo esgotamento do poder de barganha do governo, fruto da crise econômica e da falta de habilidade política de Dilma. Os parlamentares resolveram pegar o caminho mais curto para ampliarem o seu poder, a sua influência: impediram a presidenta de continuar o seu mandato. Embora existam várias razões para explicar a promoção do referido golpe, o que fica patente diante de sua consumação é a falha crônica da política brasileira em produzir antagonismos suficientemente fortes ideologicamente para tornar desnecessária, por um lado, a governança na base da propina e, por outro, a necessidade de alianças esdrúxulas para se ganhar as eleições.

Com isso, fica desfeita a tese que expressava a compreensão de que PT e PSDB substituiriam, de forma democrática, o bipartidarismo imposto pela ditadura militar (PSD e MDB), através da promoção de um debate político qualificado e com vistas a uma disputa ideológica sobre os rumos da coisa pública. A democracia representativa brasileira não fomentou essa polarização, mas sim uma ampliação do centro, capitaneado pelo PMDB, que se constitui como o ponto gravitacional da governabilidade. No entanto, é importante dar o nome correto ao centro no Brasil no qual se localizam a maior parte dos parlamentares brasileiros. Ele se chama zona cinzenta da política, isto é, trata-se do terreno privilegiado para as negociatas, estranhamente naturalizadas quando se afirma, por exemplo, a tese, com ar de realpolitik, de que "sem o PMDB e o centro não se governa”. Essa frase toma como ponto pacífico a condenação definitiva de qualquer projeto genuinamente ideológico ao ostracismo das causas perdidas. Mas qual a implicação da realpolitik para os rumos do Brasil? Arriscar não apenas os avanços sociais dos governos do PT, mas, também as garantias da própria constituição de 1988; ou, pelo menos, arrisca-se todos os avanços simbólicos dos últimos anos, visto que tudo é absorvido, todas as garantias, no buraco negro da governabilidade.

Se em nome da governabilidade tempos sombrios já se anunciavam no governo Dilma quando Feliciano assumiu a presidência da comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados e licenças ambientais foram, também em nome de um modelo de desenvolvimento pedratório, criminosamente concedidas, relativizando-se a legislação ambiental, para construir, por exemplo, a Usina de Belo Monte, a situação se agudiza agora quando o terceiro governo não eleito do PMDB assume a presidência. A falta de compromisso com as urnas autorizou o governo Temer a colocar em risco ganhos sociais dificilmente questionáveis. Do ponto de vista simbólico, por exemplo, o governo não vê a necessidade, tal como a ditadura também não via, de ter mulheres no primeiro escalão do governo. Do ponto de vista político, o governo promove, por exemplo, reformas, como a do ensino médio, por meio de Medida Provisória (novamente a lembrança do modus operandis da ditadura é inevitável), ferindo pontos da própria LDB como a obrigatoriedade das disciplinas de sociologia e filosofia.

Assim, enquanto PT e PSDB alimentam apenas projetos de poder - ambos, afinal não sejamos ingênuos para acreditar que apenas o PT tem projeto de poder: o que foi a reeleição de FHC? -, de se manterem na presidência, eles enfraquecem, por conseguinte, o discurso ideológico e a possibilidade de uma política com vistas ao debate sobre a coisa pública. Cresce, no entanto, o centrão amorfo e capaz de se adequar a qualquer governo, desde que lhe sejam garantidos benefícios, o que implica o reforço da ideia de que a política é um mero jogo de conveniências e interesses. Os dois grandes polos, ainda tímidos da democracia brasileira: PT e PSDB podem ser engolidos com o aumento do centro, que eles mesmos financiam, e nos obrigar, como dizia o filósofo, a, enfim, retomar a luta pelas causas perdidas sob o risco de perdemos todas as causas.

 


 

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(1) O estudo liderado por Dalson Brito (UFPE) mostra que os investimentos feitos em campanhas eleitorais são acompanhados pelo compromisso dos parlamentares de votarem de acordo com os financiadores da campanha: SANTOS, M. L. W. D. ; SILVA, M. B. ; FIGUEIREDO FILHO, D. B. ; ROCHA, E. C. . Financiamento de Campanha e Apoio Parlamentar à Agenda Legislativa da Indústria na Câmara dos Deputados. Opinião Pública (UNICAMP. Impresso) , v. 21, p. 33-59, 2015.

Érico Andrade é Professor da UFPE.

06 de Outubro de 2016.

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