Arte e tecnologia: uma reflexão intempestiva?
Rita de Cássia Oliveira
Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMA.
07/02/2024 • Coluna ANPOF
Estou no fim da tarde a refletir sobre a experiência que tive no dia 27 de janeiro de 2024: ESTIVE NO QUARTO DE VAN GOGH! Confesso que a visita não me acalmou, fiquei agitada e ansiosa. É muito nova a experiência com a tecnologia digital! Fiquei imersa nas telas de Van Gogh durante a Exposição Van Gogh e os impressionistas! Quantas vezes vi a representação da tela do Quarto de Van Gogh? Não lembro exatamente, mas sei que já jovem, quando ingressei na universidade no ano oitenta. Quanto à tecnologia, sou de uma geração em que a tecnologia desflorou em máquinas no começo dos anos noventa. Eu já havia entrado nos trinta anos.
Neste século, é a tecnologia que impõe sensações que meus sentidos não conheciam e lembro da Feira do Livro de 2023, em São Luís, em que o escritor e professor Cristóvão Tezza contava sorrindo que sua netinha, de quatro anos, tinha sido proibida pela mãe de ter um celular (atualmente, smartphone, porque têm mais funções além daquelas de poder ouvir ou falar de qualquer distância), mas, ainda se fala celular. É uma palavra ainda usada por nós, nativos da língua portuguesa no Brasil, mais fácil de pronunciar e escrever. Mas, a netinha de Cristóvão Tezza chorando, perguntou a ele com quantos anos ele teve seu primeiro celular. Ele, de uma geração anterior à minha (eu ainda sou de uma época em que se diferenciava geração de dez em dez anos). Na última pesquisa sociológica sobre o tema da diferença entre gerações, lembro que foi em 2013 e falava-se que a diferença passou a ser de quatro anos em quatro anos. Então, imagina a diferença entre a geração da neta de Cristóvão Tezza e a dele? O modo de pensar da neta de Cristóvão Tezza e o dele?
Neste longo intervalo o mundo mudou muito!
Eu me surpreendo a todo instante! Mas, tinha um bebê na exposição e seu pai e sua mãe jovens!
A sala toda se compôs de telas de Van Gogh. E o meio-dia foi invadido por uma Noite Estrelada e toda a sala foi preenchida pelo azul do céu que Van Gogh viu em algum lugar. Na entrada da sala onde se dava a projeção, ainda tinham fotografias exibidas em colunas quadradas com descrição da data e do lugar da pintura. Uma pequena biografia de algumas telas fotografadas.
A sala da projeção é um mundo mágico! Todos os meus sentidos foram afetados! Já estive em outras exposições de arte e tecnologia, mas, cada experiência é fundamento. Fundamento, sim, naquilo que quer dizer cavar mais profundamente os sentidos, as emoções, o estado mental... Dizer o quanto a tecnologia dos anos noventa para cá mudou a minha vida e de toda uma cultura, é um desafio. Mas, assim, no estado em que a arte pode ser manifestada por meio da tecnologia, com cores, sons e rapidez me dão a imersão no século XXl. Não sou deste século, estou nele. E nele conheço em sua emergência a tecnologia e entro no Quarto de Van Gogh! Penso: minhas sobrinhas-netas, a neta de Cristóvão Tezza e o bebê da exposição são deste século e como serão suas sensações, seus sentidos, seus estados mentais, já completamente pertencentes à tecnologia ou a tecnologia pertencente às sensações, aos sentidos, estados mentais dessas criaturas do século XXl?
E acordo na madrugada do dia seguinte a Exposição e dou continuidade a este escrito que, inicialmente, pensei em ser uma crônica e se tornou o testemunho de uma professora de filosofia alterada pela arte e tecnologia! E lembro de um texto de Paul Ricoeur chamado Culturas Nacionais e Civilização Universal, um ensaio no qual ele faz a reflexão do risco do apagamento e até mesmo da morte das culturas nacionais, fragilizadas pelo poder da tecnologia, que caracteriza a civilização universal. Na época, Ricoeur era um jovem senhor e a tecnologia ainda não era digital, como atualmente, tudo é mais rápido, mais intenso, atinge a constituição do ser. Eu estive numa Exposição de imersão na arte de Van Gogh por meio da tecnologia! Na época de Ricouer a tecnologia ainda não havia chegado neste estado de super projeção de 360 graus de representação de telas em videografismo, uma arte originada da tecnologia.
Já, as pinturas de Van Gogh pertencem a cultura nacional assimilada como universal e erudita, em que a classificação erudita impedia o universal de continuar popular. Agora, comprovo aquilo que Ricoeur não teve tempo de vivenciar: que a tecnologia se tornou mais poderosa e constituidora de identidades por um lado, mas, por outro, mostrou o risco que ele enxergou sendo evidenciado pela virada digital, em que as culturas nacionais tiveram que fortalecer as suas identidades ou se apagavam e morriam. Então, emergiram com total imposição como povos originários! E as Culturas Nacionais inspiram tendências e são vivificadas por se identificarem como originárias!
Mas, acho que já posso responder a Ricoeur que a tecnologia não apagou ou matou as culturas nacionais. Será? Quando penso que a tecnologia assim como pode difundir a arte de Van Gogh pode também criar armas muitos sofisticadas que atingem e destroem civilizações mundo afora, como a dizimação do povo palestino e do povo Yanomami etc. E o que a tecnologia tem a ver com isso? A tecnologia desencadeou o sentido da destruição do ser humano e do mundo pelo próprio ser humano. Uma ganância pelo poder do dinheiro que a tecnologia dá. A ganância é constituidora da identidade do ser humano? Entendo a identidade como alguns filósofos concebem desde a metade do século XX para cá, entre esses, Ricoeur, para ele a identidade se constitui mediante a cultura. A linguagem tem um papel de mediação neste processo de constituição da identidade.
E penso nas minhas sobrinhas-netas, na neta de Cristóvão Tezza e no bebê que estava na exposição. A tecnologia constitui as suas identidades. Tenho essa certeza. Mas como acontece isso é um mistério para mim. Sei que sair alterada da Exposição! Uma Exposição deste nível de elaboração tecnológica aplicada a arte não fez parte da minha infância. E de quem vivencia este nível de tecnologia desde a infância, como reage a tal Exposição?
Reflito sobre a preocupação e o alerta de Ricoeur da necessidade de se resgatar o núcleo ethico-mythico das culturas nacionais seja urgente. Moral e Ética são culturas! E foram terrivelmente transformadas ou perdidas. É o retorno ao Mal-Estar da Civilização, de Freud? Não saímos dele com todo o frescor da tecnologia? Penso até ser um mal-estar ao reverso do que pensava Freud no século XlX, que acusava que com toda a emancipação da tecnologia da sua época, que já era impositora, não se ter deixado de se buscar pelo pai que se tinha comido depois de se ter matado, com a crença de assim possuir o poder do pai. Sempre a questão do poder. Agora no século XXl, é tudo tão doido!, não se precisa mais matar e comer o pai, ou o que essa metáfora significa. Acho que não significa mais nada. Se Freud acusava um problema identitário, hoje se tem uma diversidade de identidades que cada pessoa “veste” conforme a ocasião e necessidade. Temos ainda um problema identitário! Hoje, se faz colagens de identidades!
A dissimetria apontada por Ricoeur entre a identidade mesmidade e a identidade ipseidade, qual pesa mais na balança da civilização do século XXl? Reflito que a identidade ipseidade, que instaura o desiquilíbrio pelo poder da transformação e da sedução da mudança que a tecnologia tem, tende a fazer com que a identidade ipse ofusque a mesmidade. A identidade ipse perdeu a promessa que Paul Ricoeur afirma como a marca de manutenção de si para si e para o outro. Como manter a promessa diante do poder de sedução da metamorfose que a tecnologia cria na identidade ipse? A pessoa cria quantos avatares deseja. A tecnologia cria desejos! É um mundo muito doido!
E eu vivo neste mundo. Para mim, têm muita coisa estranha que eu não sei manusear, tais como objetos e palavras de outras línguas que não sei a pronúncia e a escrita... Enfim, não pertenço a este século, estou nele, mas confesso que este século me seduz, têm momentos que são maravilhosos como a imersão nas pinturas de Van Gogh, entrar em seu Quarto. Seu famoso Quarto do século XlX e tão contemporâneo, ficou tão íntimo meu, depois desta Exposição. E, também, sou assustada com o poder da tecnologia. De como ela possui a identidade alcançando poder ontológico. A tecnologia cria um tipo humano diferente. E digo cria não no sentido científico, genético, mas no sentido ontológico mesmo, como ser naquilo que se constitui como ser humano, no modo de existir, pensar, falar, escrever, fazer arte e ciência. Atinge a constituição da ética e da moral naquilo que delas se origina uma cultura. Cria desejos e mentalidades. Cria uma civilização! Se isso é bom ou ruim? Não sei. Só sei que sair alterada da Exposição Van Gogh e os impressionistas!
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.