Arte-educação: o potencial estético-político em Rosana Paulino na redação do Enem | Especial Novembro Negro
Alice Lino
Professora na Universidade Federal de Rondonópolis e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso
12/11/2024 • Coluna ANPOF
Reprodução da página da redação do Enem 2024. Fonte: G1
Na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2024, 3,1milhões (Inep) de estudantes tiveram que dissertar sobre os desafios enfrentados para a valorização da herança africana no Brasil. Dentre os argumentos motivadores para a questão, consta a imagem de uma obra da artista Rosana Paulino, intitulada: Ainda a lamentar (2011), acompanhada de um provérbio africano que nos diz: “quando não souberes para onde ir, olhe para trás e saiba pelo menos de onde vens”. Nesta obra, figura a escultura de uma mulher preta, sem braços, que se arrasta, carregando um toco de madeira atado ao seu corpo por cordões de sisal. Sobre a madeira, dispõem-se objetos embrenhados de valores simbólicos como um boneco branco, vestindo um fraque; um coração de cerâmica; um anel dourado de metal e uma boneca branca nua, de plástico. Assim, o peso carregado pela mulher preta pode nos remeter ao patriarcado, às dores e opressões impostas a essas mulheres, durante o período escravocrata e ainda hoje, quando submetidas às relações racializadas e sexistas, que as relegam à base da pirâmide social brasileira.
Em outro excerto, também apresentado como móbil para a redação do Enem, Eduardo Oliveira apresenta críticas aos estereótipos, que operam reduzindo as culturas específicas negras ao que se denominou folclore ou mesmo exótico. E, assim, dá caminhos para possíveis reflexões sobre uma representação insuficiente da ancestralidade negra no Brasil. Pensemos. Em acordo com Stuart Hall[1], os estereótipos somente são concebidos em sociedades, que se apresentam segregadas, pois é o olhar hegemônico a ajuizar, a partir da sua régua e esquadro, o outro, a alteridade que lhe escapa e, portanto, lhe atormenta. Trata-se de uma dominação simbólica, que manipula as formas de se compreender a população negra e sua respectiva cultura, visto que veiculam características simples, tidas como essenciais. Estas serão exageradas e fixadas ao imaginário social rendido a uma suposta naturalização ou normalização imposta mediante juízos facilmente memoráveis e compreensíveis. Nesse sentido, atente-se para a potência formativa dos estereótipos no que tange aos sentimentos de aversão cultivados contra as/os afrodescendentes.
As mulheres negras em geral na diáspora partilham da experiência do racismo, sexismo e trabalham incessantemente, de maneira a confrontarem essas violências e erigirem relações sociais razoáveis para elas e para as gerações vindouras. Elas são submetidas às ideologias de embranquecimento, têm perseguidos seus corpos, por vezes, hipersexualizados e ainda são subestimadas no que se refere às suas aptidões intelectuais e artísticas. Diante deste contexto, Paulino, na sua produção, desvela em termos simbólicos a sua ancestralidade, suas memórias e raízes enquanto uma mulher afrodescendente e comunica aspectos da história do seu grupo de pertença étnico-racial relacionados à escravidão e a sua degradação no âmbito pseudocientífico, o que por si só já determina o caráter político das obras. Nesses termos, ela apresenta uma disposição corpórea, inserida em um território, que define um modo de ser em sociedade, pois mobiliza uma subjetividade resiliente às violências físicas e simbólicas.
No tocante à sua poética particular, Paulino, em suas reflexões, considera “um desejo quase irreprimível de comunicação [...] de conteúdos singulares, que pulsam dentro do ser”, isto é, “daqueles [...] comprometidos com uma busca que, em alguns casos, chega mesmo a dar sentido à vida”[2]. Ela afirma lidar com seus anseios e “necessidades profundas” conformados em indagações relativas à “ditatura dos modelos de beleza, discussão da representação do indivíduo negro e, principalmente, da mulher negra na sociedade brasileira e várias questões referentes à psicologia e a representação do corpo feminino na arte”[3].
A artista compreende que a sua obra abarca as noções de forma e conteúdo. Para tanto, ela evoca a sua memória ancestral, tanto na escolha de materiais no constructo das obras, quanto no diálogo estabelecido com as práticas artísticas populares, onde a resistência política no âmbito de uma estética negra origina-se. Segundo a sua perspectiva, a escolha de materiais, tidos como predominantemente femininos, como “tecidos, linhas e muitas vezes elementos ligados a um tipo de fazer manual, oriundos do artesanato e das expressões visuais populares”[4] corrobora para o sentido pretendido para o trabalho, sendo que das culturas populares especificamente, herda o “papel machê, barro, fitas, palha e outros fortemente ligados ao fazer manual em suas manifestações [...], como o carnaval, o Candomblé e a Umbanda”[5] e aposta tanto nas formas originadas por estes materiais quanto em um reforço ao significado a estas atribuídos.
No ato da criação, ela retorna ao passado porque tem a necessidade de se reconhecer na tradição, que a formou enquanto artista e mulher negra. É de onde também vem a sua inspiração, seu modo de habitar o mundo. Assim, absorve estas práticas e saberes “e transforma em sangue próprio todo o passado, o seu e o dos outros, para utilizá-lo em sua obra, mas sabe também que todo ato criador nasce de uma atmosfera não-histórica, de um estado de esquecimento”[6]. Isto porque o ato criativo não se refere à mera reprodução desta cultura popular, mas a partir da sua assimilação, acrescida das técnicas utilizadas, dos materiais selecionados, das ideias e sentimentos, que lhe sucedem, dá-se as produções das formas, as quais enseja para a sua arte.
No âmbito da fruição estética, a potência da arte na formação corpórea, considera tanto o refinamento dos sentidos, quanto a experiência de sentimentos e reflexões desencadeadas a partir do contato com as obras. A arte de Rosana Paulino mobiliza ainda um olhar para si mesmo, da parte do público, visto que cada uma ao seu modo nos remetem às mostras de percepção possíveis acerca da mulher negra na diáspora. Refiro-me aos aspectos históricos, às culturas específicas, que as formam, assim como as disposições psicológicas e os recursos de linguagem utilizados na representação da complexidade político-existencial das/os afrodescendentes. Evidencia-se, assim, a potência comunicativa dessas obras junto às mulheres negras em geral, contudo, a fruição evidentemente não distingue a/o observadora/or e propicia igualmente possibilidades formativas para quaisquer pessoas, que se sintam tocados pela arte a partir dos sentimentos experenciados. A própria artista concebe a fruição e a criação da arte como “geradora de ideias, experiências e instruções”, de modo que o tipo de conhecimento ofertado “nos torna cientes em termos de apreensão de mundo e de um alargamento das experiências cognitivas necessárias à vida em sociedade”[7].
Ao se considerar que a arte compreende certa potência na exibição da aparência do “sentimento, em uma projeção simbólica perceptível”[8], de maneira que, na experiência estética podem ser incitados sentimentos diversos pertencentes ao/à próprio/a observador/a, a funcionalidade da arte está em “articular conhecimentos que não podem ser expressos discursivamente porque ela se refere a experiências que não são formalmente acessíveis à projeção discursiva”, sendo que “tais experiências são os ritmos da vida, orgânica, emocional e mental”[9].
A potência dessas obras comunicarem as subjetividades alienadas forçosamente de suas protagonistas, pelas ideologias de embranquecimento, compreende, portanto, o aspecto estético-político elaborado pela artista. Nesse sentido, são ofertados ao público formas de sentimentos que dignificam a mulher negra, a afastando da imagem depreciativa imposta pelo colonizador e por concepções racistas na atualidade. No intuito de representar a sua ancestralidade, Paulino busca, então, enobrecê-la e ainda dá contornos para a autoestima, a coragem e esperança, pois restitui o afeto e a reverência dirigida às mulheres negras.
Cabe, por fim, observar que o tema da redação faz cumprir as leis 10.649 (2003) e 11.645 (2008), que discorreram sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, no ensino fundamental e médio, no que concerne às contribuições destes povos para a constituição do Brasil no âmbito social, econômico e político. Note-se que a arte é, inclusive, destacada no corpo da lei como uma das linguagens a ser mobilizada para tal, a saber, “os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”[10]. Ao se erguer contra o racismo, Paulino nos oferta, então, ferramentas críticas para o constructo de um senso de comunidade com o propósito de tornar as relações sociais mais confortáveis para a população negra. Nossa gratidão! Sigamos! Axé!
Notas
[1] Cf. Hall, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Editoria PUC Rio, 2016.
[2] PAULINO, Rosana. Imagens de sombras. 2011. Tese (Doutorado em Artes). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p.20.
[3] Ibidem, p.21.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] DIAS, Rosa Maria. Nietzsche educador. São Paulo: Editora Scipione, 1991, p.63.
[7] PAULINO, Rosana. Imagens de sombras. 2011. Tese (Doutorado em Artes). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p.11.
[8] LANGER, Susanne. Sentimento e Forma: uma teoria da Arte desenvolvida a partir de" Filosofia em nova chave". São Paulo: Editora Pesrspectiva.1980, p.409.
[9] Ibidem, p.250.
[10] BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: L10639. Acesso em: 08 nov. 2024