As instituições importam, também para a filosofia brasileira

09/10/2020 • Coluna ANPOF

Tiago Medeiros

Em momentos distintos do século passado, o slogan “instituições importam” foi pintado nas fachadas dos departamentos de economia, sociologia e história, sobretudo nos Estados Unidos e na França. Esse dizer revelava a coincidência de terem aquelas ciências percebido que suas atividades teóricas e aplicadas não precisavam — e nem deveriam — permanecer restritas a uma performance de foco e desfoco nas noções de estrutura e agente, em que, ao se conferir nitidez a uma, turvava-se a imagem da outra e vice-versa. Celebraram os cultores das ciências sociais e das humanidades o acesso a dispositivos simultaneamente constituintes das estruturas sociais e padronizadores das ações individuais, dispositivos esses irredutíveis a quaisquer daquelas categorias. Estando sujeitas a mudanças que redefinem a forma das estruturas ou a conduta dos agentes, e expressando as regras que dão conteúdo às interações, as instituições cumpririam o papel de mediar e plasmar a vida social. A sensibilidade a esse papel, sumarizada no slogan institutionsmatter, fez prosperarem os movimentos ou correntes autonomeados institucionalismos.

Na filosofia, contudo, o institucionalismo não reverberou com a mesma consistência, figurando a temática das instituições apenas episodicamente nos textos de uns poucos interessados. Talvez, o modo como aquelas ciências conduziram o debate, muito voltado a questiúnculas sem abrangência, e muito mais interessado na análise institucional do que na crítica e na reconstrução das instituições, tenha espantado os filósofos do mainstream institucionalista. Apesar disso, não são poucos e nem secundários os pensadores que, desde Hobbes (com destaque para Montesquieu e Hegel), especularam sobre a natureza das instituições, sobre a predisposição humana a formá-las e conservá-las, sobre o que confere a elas necessidade ou, ao contrário, sobre o que atribui a elas contingência.

Creio que algumas das mais pertinentes e duradouras entre essas contribuições formam dois tipos de abordagem a respeito da relação entre a consciência/agência e as instituições. De um lado, a dos pensadores que tem por propósito aprofundar a experiência de estabilidade garantida pelas instituições contra a vulnerabilidade ameaçadora dos impulsos de ação e das volições. De outro, a dos que exploram a plasticidade e a contingência das instituições vigentes para realizar a emancipação dos indivíduos no presente. Tenho considerado essas duas abordagens como dois institucionalismos filosóficos e os tenho chamado de imanentismo e transcendentismo, respectivamente.[*]

O institucionalismo imanentista, que abrange pensadores como o último Hegel, Émile Durkheim e Arnold Gehlen, combina ideias sobre a formação espontânea das instituições, o fundamento ético que as chancela e a estabilidade que elas proveem à sociedade. O institucionalismo transcendentista, de filósofos como Cornelius Castoriadis e Roberto Mangabeira Unger, combina ideias sobre a origem deliberada das instituições, o fundamento político que as suporta e a plasticidade que as qualifica, podendo ser manipuladas em favor dos interesses dos indivíduos e grupos.

Tais abordagens apontam para rumos distintos e reveladores das demandas particulares e nacionais no interior das quais — ou em referência às quais — as ideias em pauta foram desenvolvidas, as do Atlântico Norte. A preocupação com a institucionalidade torna evidente o compromisso dos filósofos com o seu contexto, com a sua realidade histórica e continental. Dizer que as instituições importam para a filosofia é dizer o que, através delas, os filósofos esperam otimizar ou desobstruir com as especulações normativas destinadas à realização de seu tempo e lugar.

A tarefa filosófica de ajudar a esclarecer a relação entre a consciência/agência e as instituições precisa ser postulada com objetividade, contundência e tenacidade também, e principalmente, no contexto particular do Brasil. As instituições precisam ocupar o centro das nossas preocupações teóricas e políticas. Isso, contudo, requer que nos movamos pelo propósito de construir o que não foi construído: um aparato institucional com lastro efetivo nas interações sociais. A contribuição mais relevante da filosofia consiste na articulação conceitual desse aparato. Para o exercício, não é necessário sacrificar as consciências pela racionalização ou naturalização da institucionalidade, nem desprezar, hostilizar ou meramente denunciar as instituições pelo enaltecimento das formas de consciência por elas pressionadas. O trabalho é, primeiro, o de discutir as características, a qualidade, as origens e as possibilidades dessa relação entre os entes, não o de reconhecer qual deles predomina na relação. Segundo, imaginar caminhos institucionais promissores possíveis e provê-los com justificativas defensáveis.

No Brasil, há uma notável precariedade dos laços institucionais. Há algo como um déficit, que não se verifica, com as mesmas dimensões e com a mesma pregnância, nos países do Atlântico Norte. As pistas para se compreender esse déficit foram bem colocadas por Oliveira Vianna, Guerreiro Ramos, Darcy Ribeiro e outros, que identificaram a ausência de projeto na condução da nação brasileira por suas elites dirigentes e nas consequências dessa condução para o imaginário nacional. Aquelas pistas encontram guarida também na expressão genérica “colonialismo mental”, recentemente formulada por Mangabeira Unger. Historicamente, as instituições oficiais figuram aqui como estandartes de castas especiais, raramente cruzadas aos interesses e aos propósitos das massas que formam o povo brasileiro. O reflexo desse alheamento é a rarefação da institucionalidade, a sua inefetividade.

Querendo pensar a relação entre a consciência/agência e as instituições a partir desse contexto, e com o propósito de corrigir o nosso déficit, proponho que a institucionalidade derive sua razão de ser da capacidade de engendrar duas experiências correlatas, a de pessoalidade e a de compromisso.

As instituições existem para fabricar pessoas. Mas a pessoa não é apenas a entidade detentora de direitos e deveres. É a atividade de criação permanente e consciente. Pessoalidade é autoria: a responsabilidade por um produto, enquanto coisa ou laços com os outros. A pessoa é esse cruzamento de produção material e econômica, autocriação estética e moral, e conquista de concessões e obrigações. As instituições existem para possibilitar essa pessoalidade, retirando o ser humano da condição meramente biológica, semissocial ou subsocial, para integrá-lo em domínios sociais específicas e encadeados. As instituições importam porque nos cercam.

As instituições existem ademais para renovar a cooperação. Elas requerem compromissos. Mais do que comandos em obediência às regulações, trata-se da adesão aos domínios sociais. Há distintas dimensões da adesão que propiciam níveis também distintos de engajamento. (1) Há a dimensão normativa, que direciona e coordena o agir no sentido da colaboração. É o que instrui, informa, orienta. O indivíduo adere à instituição porque precisa se orientar no mundo, saber o que fazer e como fazer de modo a satisfazer um propósito. (2) Há a dimensão constritiva (ou coercitiva), que representa a sanção à não-colaboração. É a dimensão das advertências prévias, das penas, dos castigos. O indivíduo adere por temer o poder que esse domínio exerce e os limites que ele impõe através dos instrumentos que efetivam a obrigação. (3) Há a dimensão afetiva que apela ao vínculo emocional do indivíduo através de símbolos. É a dimensão da associação não-reflexiva ou menos reflexiva. Nesse caso, o indivíduo adere à instituição principalmente por se identificar com ela.

A predominância de uma ou outra entre tais dimensões na trama social faz que as instituições expressem atributos: (a) de sociabilidade elementar, que resgata e molda o indivíduo para a vida coletiva; (b) de funcionalidade, que opera para conservar sistemas sociais, (c) de razoabilidade, que se expressa em dispositivos garantidores de confluências procedimentais, e (d) de emancipação/potenciação, que aperfeiçoa os propósitos e intensifica as capacitações dos indivíduos.

O atributo de que mais precisamos para corrigir o déficit de nossa institucionalidade é este último. O nosso interesse maior, no Brasil, é construir um aparato institucional propício a uma integração pela cidadania que não seja meramente nominal, nem se reduza a instrumentos pontuais e caricaturais como o sufrágio, mas que se efetive materialmente. As instituições seriam os vetores de uma outra forma de se constituir a cidadania, uma cidadania material e produtiva, não apenas formal e política. A razão institucional de formar a pessoalidade seria concretizada na autonomia material.

Pensar as instituições pelas noções de pessoalidade e compromisso, priorizando o atributo de emancipação/potenciação, não é omitir os conflitos que elas engendraram e engendram, nem esquecer a dominação com que se expressaram e se expressam, inclusive violentamente. Trata-se de atacar o exercício arbitrário e cruel do poder pelo que elas deixam de realizar, de possibilitar, de viabilizar: a experiência de florescimento da pessoalidade criativa, autoral e responsável e a experiência de uma vida social completa e integrada, repleta de tensões e de meios de destensionamento, de conflitos, mas também de cooperações. Para tanto, não é preciso ornar as instituições com a intangibilidade dos devaneios utópicos, mas vesti-las da carapuça do factível e do iminente. A tarefa de pensar filosoficamente a institucionalidade brasileira passa por esses eixos. Marchando nessa direção, constataremos, sem surpresa e sem perplexidade, o quão importam as instituições e o que temos a dizer sobre elas.

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Nota:
[*] Todas as ideias aqui levantadas foram exploradas em minha tese de doutorado Raízes da Institucionalidade, defendida no PPG de Filosofia da UFBA em agosto de 2020.

**O texto foi publicado na revista Estado da Arte no dia 02 de outubro em parceria com a Coluna Anpof.