Assédio mata ou quando foi que nos desumanizamos?
Solange Aparecida de Campos Costa
Professora de Filosofia (UESPI); Integrante do GT Filosofia e Gênero
23/03/2023 • Coluna ANPOF
Escrever esse texto não é uma tarefa fácil, hesitei por um tempo em escrevê-lo. Mas esse mês da mulher e mais alguns acontecimentos das últimas semanas, de certo modo, me incitaram a essa tarefa.
Não sou especialista no assunto, minha área na filosofia é a estética e recentemente a relação de filosofia e gênero a partir da perspectiva de algumas autoras brasileiras e espanholas. O tema do assédio não é, portanto, algo que tenha estudado, mas toda mulher dentro e fora da filosofia já sentiu na pele o que ele significa. O assédio deixa uma marca em nós e a cada vez que ele acontece, novamente a casca dessa ferida antiga, abre e sangra.
Minha irmã sofreu de modo violento a pressão que o assédio exerce sobre o corpo e pensamento das mulheres. Dia 22 de novembro do ano passado essa pressão foi tão grande que ela não aguentou. Depois de uma reunião de trabalho, na qual foi exposta perante os colegas que a avaliaram e a rechaçaram publicamente, foi levada para casa e ainda muito abalada, deixada só. Chegando em casa, com um fio de varal ela se enforcou. Muitos são os motivos que podem levar uma mulher ao suicídio, mas uma coisa é certa, se essa reunião não tivesse acontecido, se ela tivesse sido advertida de modo privado e não fosse exposta publicamente, se não tivesse sido deixada sozinha ainda no horário de trabalho e totalmente transtornada, imagino que isso não teria acontecido. Portanto a luta contra o assédio não é para mim uma questão teórica, é algo que me atravessa, me fere, me sangra e me indigna.
Existem várias formas de violência contra a mulher, não cabe aqui defini-las, mas é preciso urgentemente admitir sua existência dentro das universidades. Nesse ambiente acadêmico, a filosofia é um curso predominantemente masculino, seja na formação do corpo docente, no número de discentes, como nos pensadores estudados. A história da filosofia ensinada nos currículos de graduação, admitamos, é desigual para com as mulheres, elas são ainda elementos estranhos nesses espaços. Sua presença e sua produção é fortemente invisibilizada e questionada. Nesse cenário, já não basta mais que os professores dos departamentos se digam antimachistas, que olhem para si mesmos e afirmem que não são adeptos de práticas misóginas. Já não nos basta mais sua solidariedade e condescendência, seu apoio e seus aplausos individuais. Precisamos de mudanças estruturais e isso impõe muito mais do que apenas gestos públicos de apoio.
O suicídio e o feminicídio são desfechos trágicos de anos de violências cotidianas normalizadas e que ocorrem livremente à nossa volta. É preciso saber que a nossa omissão tem consequências! Janaína, Sonia (minha irmã), Dania são apenas algumas dessas mulheres assediadas e violentadas publicamente nos corredores, nas reuniões, nas festas...Cenas que já vimos e revimos inúmeras vezes. As punições em cadeia nacional como aconteceu com MC Guimê ou Sapato não mudam esse cenário, apenas aliviam a “nossa” culpa por nada fazer quanto a isso. Não basta encontrar os culpados, é preciso criar mecanismos de mudanças estruturais efetivos para que essas práticas sejam expurgadas de todos os lugares.
Não posso falar da sociedade como um todo, nem tenho competência para tanto, mas posso aqui dentro das minhas possibilidades sugerir algumas mudanças na sala de aula, sobretudo nos cursos de filosofia para valorizar a presença das mulheres nesses espaços e, quem sabe, a longo prazo ter um ambiente mais equânime. Para começar é importante deixar apenas de atribuir a gestão superior e seus órgãos competentes a responsabilidade total pelas mudanças. Não que não devamos cobrá-los quanto a isso, mas é preciso também colaborar individualmente nesse processo, isso impõe cobrar, mas também nos cobrar quanto a isso. Aqui vão apenas algumas sugestões que tem feito muita diferença na minha prática docente em sala de aula e que gostaria de compartilhar com vocês:
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Insira o pensamento de filósofas na sua disciplina. Melhor ainda se forem pensadoras negras. Talvez não seja sua área, talvez você não tenha familiaridade com essas teorias, mas esforçar-se para entender o pensamento dessas autoras já representa em si uma mudança enorme em prol de um ambiente mais inclusivo.
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Ouça seus alunos e sobretudo, suas alunas. Estimule as discentes a participar das aulas. Ouça de verdade o que elas tem a dizer e valorize sua fala. Transforme o ambiente de sala de aula em um ambiente de acolhimento e não de disputa.
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Se oponha vigorosamente a qualquer prática de assédio nos ambientes em que circula. Isso implica não apenas em sair de perto dos colegas que riem das ações de sedução e objetificação frequentemente realizadas com alunas e professoras, mas na imediata desaprovação, censura e na denúncia dessas práticas para seus órgãos competentes. Não se omita jamais!
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Ofereça bolsa de pesquisa PIBIC, monitoria, PET, etc para alunas. Estimule a continuidade de suas pesquisas, ajude e acolha suas ideias. Pense que você também já foi jovem e que não se forma um pesquisador de dia para a noite e é preciso de orientação no início da trajetória acadêmica. Lembre-se, você pode fazer a diferença na formação de uma futura pesquisadora.
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Lute junto com os órgãos estudantis para conseguir políticas de acolhimento e permanência de estudantes mulheres na universidade. Isso implica em espaços individuais de estudos, bolsa moradia, criação de creches nos ambientes universitários, etc.
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Nas formação de bancas, nas comissões e nas representações de colegiado e conselho, tente apoiar a participação de mulheres. Se sinta verdadeiramente desconfortável quando olhar ao redor de si nas reuniões e nas salas de aula e ver apenas professores e alunos homens. Tente-se perguntar diariamente o que você mesmo pode fazer para mudar esse cenário? Sugira a criação de documentos e mudanças regimentais que possam mudar a longo prazo esse ambiente dissimétrico.
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Trate as alunas e alunos com humanidade. Vejo muitos colegas, grandes e reconhecidos pesquisadores, sendo exageradamente duros com seus alunos e orientandos. A desculpa é a de sempre: sou bruto mesmo! Não, não é! Você pode ser cordial, você pode ser acolhedor sem parecer fraco. Você pode ouvir e ensinar, afinal essa é também sua tarefa docente. Para um discente, sobretudo para as alunas que já se sentem intimidadas por estarem em um ambiente predominantemente masculino que as repele e duvida delas, que já vem com diversas outras cicatrizes de assédios anteriores, uma palavra bruta pode causar um abismo sem tamanho.
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Por último: Leia mulheres e melhor ainda, leia bell hooks. Qualquer livro dela pode te ensinar muito sobre a luta antimachista, antirracista e antihomofóbica.
Em tempo: obrigada ao GT de Filosofia e Gênero do qual faço parte por me acolher e me apoiar, pelas palavras de Jelson Oliveira que sem saber inspiraram esse texto e por todas as mulheres que não estão mais presentes e que resistiram e resistem sempre a todas as formas de agressão. #mariellepresente #janainapresente #soniapresente.