Atoleiro Epistêmico

Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho

UFBA, CNPq

02/02/2021 • Coluna ANPOF

Numa democracia a confiança epistêmica nos outros é algo absolutamente necessário. Não apenas na democracia, mas na experiência humana em geral nós somos epistemicamente dependentes uns dos outros, da palavra dos outros, do testemunho dos outros, pois dependemos de uma rede de cooperação epistêmica para conhecer partes significativas do mundo que seriam inacessíveis à pessoa isolada ou a um grupo isolado. Mais ainda, a distinção entre fontes confiáveis e fontes não confiáveis de informação é uma distinção crucial.

E aqui está a nossa tragédia. A pandemia que assola todo o planeta e que sacrificará milhões de vidas acontece exatamente no momento em que todos nós estamos vivendo um período singular na história da cultura marcado por, pelo menos, dois eventos:

(a) a ascensão ao poder de políticos e partidos de extrema-direita pelos meios legítimos do voto popular em Estados de democracias consolidadas. Esses agentes políticos arrastam consigo uma pauta xenófoba, conservadora nos costumes, ultraliberal nas relações econômicas, anticientificista, com declarados ataques aos intelectuais, artistas e jornalistas e, quase sempre, apelando para uma inspiração divina para se autojustificar e;

(b) a produção em escala industrial de notícias falsas com o objetivo de fomentar e sustentar a pauta extremista. Essa produção de mentiras (que recebem os carinhosos eufemismos fake news e pós-verdade) atacam a credibilidade epistêmica da ciência, da universidade, do jornalismo e de qualquer agente que expresse discordância com a pauta da extremista [2].

A ideia de pós-verdade, por exemplo, significa simplesmente isso: a verdade, os fatos, as evidências disponíveis não são relevantes para que pessoas, grupos e nações formem suas crenças sobre questões cruciais. Em um movimento que culminou, por exemplo, com as eleições estadunidense (2016) e brasileira (2018) e com o Brexit (2016), parece que pessoas passaram a nutrir um declarado descaso com a verdade e com o movimento da realidade. Posto isso, é natural aceitar que todos os discursos são igualmente válidos e, consequentemente, cada um tem o direito de escolher no que acreditar de acordo com suas inclinações privadas, ideologias, religiões, humor...

O problema é que isso não apenas começa a povoar o imaginário popular com mentiras, mas tem uma consequência epistemicamente trágica: isso desata os laços de confiança social. Edward Craig [3] chama de estado de natureza aquilo que seria a condição para que indivíduos se organizem coletivamente para garantir a sua sobrevivência e, desse modo, compartilham necessidades básicas e cooperam. Dado o estado de natureza, parte dessas necessidades básicas são epistêmicas, isto é, a necessidade que implica compartilhar crenças verdadeiras (e evitar as crenças falsas) como mecanismo de sobrevivência.

Essas coisas combinadas, (a) e (b) acima, criaram um atoleiro onde as instituições, a confiança pública, a transmissão do conhecimento e a possibilidade de disputas intelectuais e políticas legítimas não têm terreno firme para se mover e prosperar. Esses dois eventos têm efeitos diretos sobre a condução das medidas de enfrentamento da pandemia.

O caso brasileiro é ainda mais extremo em relação a outros países. Mesmo países dirigidos por partidos de Direita, como Israel e Hungria, a luta política não afetou a credibilidade na ciência como meio de enfrentar a pandemia. O Brasil protagoniza um episódio histórico que os historiadores não deixarão de comentar, estudar e lamentar: a vontade de um presidente obscuro e insano e seus seguidores enfeitiçados, religiosos e militares criou um atoleiro epistêmico que está levando milhares ao cadafalso e produzirá uma crise social e econômica que pode durar mais de uma década. Com propaganda bancada pelo Estado, com manifestações de agentes públicos, com um conjunto de decretos e normativas assinados por representantes do Estado se criou uma zona obscura que exige hoje, mais do que nunca, a ação do intelectual público combatendo na arena pública.

Num arco temporal, (i) primeiro as pessoas, diante de todas as evidências, não acreditavam na existência da pandemia, (ii) depois, passaram a acreditar que ela era resultado de uma conspiração global comunista, (iii) que era apenas um gripe que não justificava o “isolamento social”, (iv) seguiu-se que haveria, contra as evidência cientificas e clínicas, um remédio contra a doença, (v) ainda houve a crença de que a pandemia havia acabado em dezembro de 2020... e  (vi) com a chegada as vacinas, único meio de enfrentamento eficiente da pandemia, esse atoleiro foi ficando ainda mais movediço. Não dá para descrever aqui o conjunto de fatos negacionistas que têm matado diariamente.

O intelectual público precisa falar mais e, entre outras coisas, dizer algo simples: a vacina salva vidas. Não porque uma pessoa vacinada estará livre da doença e da morte terrível. A vacina não imuniza uma pessoa. A vacinação só tem resultado satisfatório quando a população, na sua grande maioria (entre 70 e 80%), está vacinada e o vírus começa a deixar de circular. Se os ricos conseguem comprar vacina gourmet nas clínicas privadas (como, de fato, tenta-se) isso não terá qualquer efeito positivo sobre a pandemia ou sobre a economia. Será apenas mais um gesto para agudizar as desigualdades sociais.

Em que pese a incerteza em relação ao controle da pandemia e de seus efeitos sociais e econômicos, trata-se de uma questão em que não há qualquer espaço para aventuras, apostas, adivinhas, ideologias e simpatias. Mas, por que se deve confiar em cientistas das mais diversas disciplinas e nas autoridades médicas?

Deve-se confiar na ciência por um razão elementar: a ciência trabalha com conhecimento. Conhecimento e verdade, embora relacionados, são coisas distintas, pois algo que cientistas afirmam hoje pode, perfeitamente ser contestado e revisto por colegas na próxima semana ou década. O segredo é que para ser enquadrado como ciência é preciso que o conhecimento seja passível de ser desafiado, ou falseável, caso contrário é simples opinião. A verdade joga um papel importante no conhecimento por ser o objetivo final da uma investigação. Porém, o que realmente importa é que cientistas procuram usar recursos rigorosos, amplamente testados, publicamente verificáveis, expostos argumentativamente à luz de experimentos e revisões teóricas. O processo de produção de crenças na ciência é de maior confiabilidade por ser aquele que mais facilmente se afasta do erro, mesmo que sem garantias definitivas. É confiável porque os achados são expostos publicamente e cada passo pode ser revisto, contestado, corrigido pelos pares da comunidade. No fundo, o que a ciência nos diz é: nós não temos o direito de acreditar em qualquer coisa de acordo com nossa vontade.

Do mesmo modo, se as autoridades médicas e sanitárias alcançam seus postos por seus méritos acadêmicos, científicos e administrativos e se seus propósitos estão instruídos pelas informações e evidências científicas e técnicas, essas autoridades também são confiáveis (se uma pessoa está na posição de coordenador de combate à pandemia porque é um militar submisso ao mandatário, por melhor que sejam suas intenções, não é alguém confiável).

Entretanto, ainda resta uma pergunta que incomoda aqueles que não pertencem às comunidades científicas ou que não possuem contato direto com as autoridades: como o público mais amplo pode ter acesso às melhores informações, ao conhecimento?

Uma das respostas é simples: lendo os jornais. É claro que todos sabemos que o jornalismo é conduzido por organizações privadas que também têm interesse econômicos. Embora possamos nos irritar com jornalistas que expressam opiniões que contrariam nossas visões de mundo, é preciso reconhecer que o (bom) jornalismo profissional tem regras para manter sua credibilidade: checagem de fontes, comparação de opiniões divergentes, ouvir os dois lados de um conflito, narrativas fidedignas e obediência aos fatos. Todos esses protocolos criam constrições que tornam o jornalismo muito mais confiável do que os grupos de Whatsapp da família e de amigos. Ademais, o grau de confiabilidade de uma notícia de jornal cresce de acordo com as ações de leitoras e leitores que, ao comparar as diversas fontes, e refletir sobre sua consistência, podem reforçar, ou não, a plausibilidade das informações veiculadas. Não por acaso, em meio as incertezas da epidemia, é cada vez maior o número de pessoas que buscam a chancela do jornalismo profissional para se posicionar em relação às opiniões emitidas pelos profetas do momento no Twitter, Youtube e Instagram.

Uma outra fonte são as páginas dos órgãos científicos, das universidades e dos pesquisadores filiados a entidades científicas.

Escrevo tudo isso para dizer uma coisa simples: de todos os males que essa pandemia nos trará (não queremos nem mesmo pensar no número de homicídios da qual ela será a arma), pode haver algo muito grave que está se anunciando no futuro próximo: as pessoas podem simplesmente parar de conhecer porque estarão definitivamente mergulhadas em um atoleiro epistêmico e moral; as pessoas, ao se afundarem no atoleiro, ao romperem os laços comunitários de confiança, perderão a capacidade de saber como o mundo é e como lidar com os problemas reais.

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NOTA

[1] Alguns pontos abordados neste artigo foram apresentados em um ensaio “Confiança e Conhecimento em Tempos Difícieis” publicado em parceria com Sandro Cabral e disponívei em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/confianca-e-conhecimento-em-tempos-dificeis-01042020.

[2] Esse fenômeno de produção de mentiras e ataques a agentes epistêmicos não é privativo da Direita política. Agentes de Esquerda e movimentos identitaristas também usam do mesmo expediente para implementar suas pautas.

[3] Edward Craig (1990). Knowledge and the State of Nature: An Essay in Conceptual Synthesis. Oxford : Oxford University Press.

 

 

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