Biden, Brasil, Ubuntu
15/12/2020 • Coluna ANPOF
Leonardo G. S. Videira
Em seu discurso de reconhecimento da vitória eleitoral, no sábado em que a eleição foi dada como vencida (07/11), Joe Biden, disse “[...] eu prometo ser um presidente que busca não dividir, mas unificar; que não vê estados azuis ou vermelhos, mas apenas os Estados Unidos.” E depois de um longo momento “um beijo pra minha mãe, pro meu pai e especialmente pra você e pra Sasha”, ele continua:
“[...] agora, vamos dar uns aos outros uma chance. É hora de deixar de lado a dura retórica, de abaixar a temperatura, de enxergarmos uns aos outros, de escutarmos uns aos outros. Para progredirmos, precisamos parar de tratar nossos oponentes como inimigos. Eles não são nossos inimigos. Eles são americanos. A bíblia nos diz que para tudo há uma estação: um tempo para construir, um tempo para colher, para semear e um tempo para curar. Este é o tempo para curar na América [...]”
Assumindo que isso não é apenas uma retórica vazia, como em outras vezes já vimos discursos parecidos (por exemplo, o de Obama), Biden apresentou uma ideia bela e moral e que sem ela não acredito que aquele país tenha um futuro a desfrutar. É uma ideia que em linhas gerais é comum a diversas culturas e que está parcialmente presente na bíblia, como ele afirma. Contudo, sua versão mais forte e mais efetiva aparentemente não está na bíblia, mas na sabedoria Ubuntu. Tendo em mente ou não – provavelmente não –, o que Biden descreveu aqui é a noção ubuntu.
Ubuntu é o nome dado tanto a uma escola filosófica quanto a uma noção filosófica africanas (para simplificação, aqui, com letra maiúscula a escola e minúscula a noção), mais especificamente do sul da África – África do sul, Malawi, Zimbábue, Namíbia. A noção geralmente é apresentada a partir do lema “Eu sou, porque nós somos” ou de maneira mais explicativa “sua humanidade é afirmada na humanidade dos outros”[1].
Há outras diferentes interpretações[2] da noção que não se resumem apenas às relações entre humanos, bem como interpretações que se delimitam a apenas alguns humanos (mais especificamente os que estão dentro de uma mesma família ou nação), não obstante, todas as interpretações compartilham o caráter holístico e propõem que as definições de nós mesmos enquanto pessoas, dependem fundamentalmente das relações que temos com outros indivíduos. Na interpretação mais influente, simplesmente outros humanos. Também na interpretação mais influente, para que nós sejamos humanos, devemos aceitar (e tentar compreender) as diferentes formas de ser destes outros, pois apenas assim nós poderemos nos considerar humanos.
Fazendo assim, nos tornamos humanos, não no sentido de homo sapiens, pois isso já somos, o que é um fato óbvio e desinteressante, mas no sentido de pessoas com personalidade (personhood), com dignidade. O que, em uma interpretação mais restrita, pode ser interpretado como: tornamo-nos parte deste grupo, seja uma nação ou uma família, ao reconhecermos e aceitarmos a existência do outro enquanto membro deste grupo, mesmo que de maneira diversa à nossa; a partir desse denominador comum, a saber, que ambos somos membros deste grupo, por meio de um ato de fala – o reconhecimento – é que nos tornamos membros deste grupo. E, ao trabalharmos juntos pelo bem deste grupo é que esse reconhecimento se reafirma fazendo o grupo o que ele é e seus elementos quem são. Resumindo de maneira técnica, os critérios de identidade emergem holisticamente para o grupo e para os indivíduos de maneira dinâmica e irredutível.
Tal qual Biden, nós podemos estar fazendo uso da noção sem estarmos atentos a isso. A noção provavelmente foi muito influente no processo de criação da Liga das Nações, visto que um de seus idealizadores, o filósofo e diplomata – entre outros títulos – sul-africano Jan Smuts defende em sua filosofia um holismo metafísico que pode ser comparado a versão mais ampla possível de ubuntu[3] e em seu trabalho diplomático algo comparável a noção mais tradicional de ubuntu, tendo a humanidade inteira como o todo (hólos) relevante[4]. Alguém pode alegar que o holismo de Smuts não se trata da mesma coisa ou sequer tem relação com ubuntu, porque ele não faz referência a tal noção em sua obra, mas isso não é de grande importância. Se ele se inspirou em ubuntu para sua atividade filosófica e diplomática, ótimo; vemos a noção em ação na existência da ONU e nas tentativas de estabelecermos uma comunidade global.
Se não for o caso, sem problemas. Podemos ver claramente a noção em uso no processo de desmonte do Apartheid e democratização da África do sul como propôs Desmond Tutu em seu livro No future without forgiveness:
“A adoção desta Constituição apresenta uma fundação segura para o povo da África do sul transcender as divisões e querelas do passado que geraram hediondas violações de direitos humanos (...) e um legado de ódio, medo, culpa e vingança. Estes podem ser endereçados, agora, assumindo que há a necessidade de compreensão, mas não de vingança, uma necessidade por reparação, mas não por retaliação, uma necessidade por ubuntu, mas não por vitimização. Para que tal reconciliação e reconstrução ocorra, anistia deve ser garantida [...]
[...] no espírito de ubuntu, a preocupação central é a cura das feridas, a reparação das desigualdades, a restauração de relacionamentos quebrados, uma busca pela reabilitação de ambos, a vítima e o perpetrador, a quem deve ser dada a oportunidade de ser reintegrado na comunidade que ele lesou em sua ofensa.”[5]
E, só por esse exemplo de sucesso, os americanos já deveriam prestar mais atenção à noção. Afinal, é isso que eles mais precisam agora – Unite the states! Mas, enquanto brasileiros, nós deveríamos nos voltar a esta noção também. Pois nosso passado, mal resolvido em quase todas as suas fases de transformação – do fim da escravidão até o fim da era PT – estamos somando rasgos e mais rasgos no tecido social, mesmo tendo adotado políticas de reparações e anistias, assim como a África do Sul.
No entanto, parece haver uma diferença fundamental entre a anistia que tivemos no Brasil e a proposta por Tutu sob a luz da Ubuntu. Aqui, nós perdoamos juridicamente os perpetradores e nunca mais tocamos no assunto, evitamos investigar e falar no assunto e seguimos em frente. Apenas para ver essa bomba explodir mais tarde, 30 anos depois, encarnada em mágoa, ódio e desconfiança de todas as partes passando para as gerações seguintes que muitas vezes nem sabem como esses conflitos se deram. Este caminho, nós também já podemos ver para onde nos levará, em um país que ainda não se libertou de seu próprio apartheid. Com certeza, este não é um caminho que queremos seguir.
Portanto, precisaremos conversar.
Anistia jurídica não é perdão. E certamente não será útil em 2022, caso Bolsonaro não ganhe a eleição, pois nenhum crime de tal tipo foi cometido (ainda), nem pelo governo, nem por seus apoiadores. No entanto, comunidades, amizades, famílias inteiras encontram-se dilaceradas pelo antagonismo gerado por visões de mundo diametralmente opostas e conflitantes; e isso não há anistia jurídica que resolva, pois, a noção sequer é
aplicável nesses casos. O que precisaremos é de anistia real, perdão. Precisamos de algo que o entendimento e adoção de ubuntu nos possibilitaria: a compreensão de que essa relação de oposição diametral, só é possível porque há um outro que está inserido aqui também, mas que não é a única relação que se mantém entre nós.
O ponto que proponho com este texto é que nós – Estados Unidos e Brasil (e Bolívia, e Chile, e Peru...) – olhemos para a África do Sul e aprendamos o quanto antes o que é ubuntu e nos espelhemos no exemplo deles, um caso muito mais sério, mais violento e mais hediondo de divisão e esgarçamento do tecido social e sigamos os mesmos passos. Caso contrário, não haverá futuro para nós enquanto nações, pois eu sou brasileiro como somos, porque você é brasileiro como somos.
______________________________
*Leonardo G. S. Videira, Doutorando em Filosofia - Unicamp
Referências:
[2] GADE, C. B. N. “Whar is Ubuntu? Different Interpretations among South Africans of African Descent”. South African Journal of Philosophy, 31(3). 2012. pp. 485-503
[1] LOUW, D. J. “Ubuntu: an African assessment of the religious other” In: PAIDEIA: Philosophy in Africa. http://www.bu.edu/wcp/MainAfri.htm. 1998.
[4] MARSHALL, P. “Smuts and the preamble to the UN charter”. The Round Table: TheCommonwealth Journal of International Affairs, 90:358. 2001. pp. 55-65.
[3] SMUTS, J. Holism and Evolution. New York: Macmillan, 1926.
[5] TUTU, D. No Future Without Forgiveness. New York: Doubleday, 1999.