Bioprimitivismo: desenhando os contornos de uma filosofia anticivilizacional

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

26/03/2023 • Coluna ANPOF

Segundo a narrativa oficial, tanto a democracia quanto a filosofia—que seriam parceiras íntimas—foram inventadas na Grécia. A narrativa me convenceu nos meus tempos de estudante, mas não me convence mais. Além de distorcer completamente a história, isto é, além de não corresponder ao que efetivamente sabemos sobre a Grécia, ela também é cheia de inconsistências internas. A palavra “democracia” remete à ideia de governo do povo pelo povo, de autogovernança. No entanto, nem todo mundo podia participar da (suposta) democracia grega. As pessoas estavam divididas e escalonadas entre as que tinham o direito de decidir os rumos da cidade e as que não tinham. 

Então a engenhosidade da Grécia não consistiu em inventar a democracia e sim em gerar a impressão de que sua oligarquia era uma democracia. Mas a autogovernança não apenas não surgiu na Grécia. Ela também não pode ter surgido na Grécia. Afinal, os humanos já estavam tomando decisões de forma coletiva e igualitária desde que apareceram pela primeira vez no coração da África. O máximo que podemos dizer, portanto, é que a democracia começou a morrer na Grécia. Se a Grécia inventou algo, não foi a democracia e sim a hipocrisia. Esse é seu verdadeiro legado. Não é preciso ser um gênio para perceber que o mundo ocidental contemporâneo não é exatamente democrático.

A democracia—a necessidade de se fazer uma votação—é um recurso que só faz sentido usar quando o diálogo já não é mais suficiente para se chegar a um consenso. Os humanos certamente não precisavam de votação—de democracia formal—vinte, cinquenta, cem ou duzentos mil anos atrás. Democracia formal? Não. Se vinte das trintas pessoas do grupo queriam ir para a esquerda e dez para a direita, provavelmente todo mundo seguia pela esquerda, sem necessidade de votação (e sem que nenhuma votação, mesmo que acontecesse, tivesse força para se impor, porque não havia diferenças drásticas de controle de recursos e de força). A votação é fútil quando o diálogo tem lugar e é inútil quando não há desigualdade de forças para permitir a imposição da vontade de uns sobre os outros. O que os povos caçadores e coletores inventaram foi algo muito mais sofisticado do que a democracia. É possível que a democracia tenha surgido quando as coisas já não estavam indo bem.

A filosofia também não surgiu nem pode ter surgido na Grécia. No máximo, a filosofia sobreviveu à Grécia. Pois a filosofia é completamente avessa à ideia de imposição pela força; ela não se harmoniza bem com nenhuma forma de hierarquia. Ela é visceralmente de esquerda. A filosofia só pode verdadeiramente florescer em um ambiente de igualdade radical. Quando você não precisa justificar o que diz, quando você pode impor sua vontade apesar de não ter a razão a seu favor, ou seja, quando você tem uma “democracia” ao estilo grego, a argumentação não tem razão de ser. Ela se reduz a uma atividade puramente pro forma. 

Assim como a autogovernança, a filosofia, portanto, surgiu no coração da África. E ela começou a morrer com a invenção da hierarquia e com a corrosão do igualitarismo próprio dos povos caçadores e coletores. A autogovernança e a primazia da razão sobre a força são exigências da nossa natureza animal. Elas estão incrustadas em nossa carne por causa da nossa história evolutiva. Repudiamos instintivamente tanto a heteronomia quanto a retórica vazia. Não é por acaso que a autonomia e a palavra são levadas a sério pelos povos caçadores e coletores e pelos povos indígenas agriculturores do mundo inteiro. Não se pode dizer o mesmo sobre a tecnocivilização.

Pode parecer que estou romantizando os povos caçadores e coletores e os povos indígenas. Afinal, o que eles têm de tão especial? Na verdade, acho que tudo. Nunca fui relativista. Existe um oceano de evidências de que os povos caçadores e coletores e os povos indígenas, com a exceção óbvia da tecnologia, são objetivamente superiores aos ocidentais em praticamente todas áreas da vida. A tecnocivilização dominante, que tem ignorado que o ser humano é um organismo que emerge da biosfera como um todo e que não pode se destacar completamente dela, que tem colocado substâncias artificiais nos alimentos, que tem levado os níveis de desigualdade ao extremo, que tem desrespeitado a autonomia das crianças e as forçado a se “comportarem”, está nos matando aos poucos. Ela está nos matando por dentro e por fora. Ela está nos matando psicologicamente, biologicamente e socialmente. Ela está destruindo a biosfera (da qual surgimos e da qual dependemos) e destruindo também nosso mundo interior (porque não fomos talhados para viver como robôs em uma distopia). A sociedade ocidental é um zoológico.

A desigualdade—talvez a característica mais saliente que distingue os povos caçadores e coletores dos povos tecnocivilizados—implica também em desigualdade de bem-estar psicológico. A injustiça sistemática que coloca uns acima e outros abaixo aumenta nossos níveis de cortisol, que, por sua vez, desgasta nossos órgãos internos e diminui nosso tempo de vida. O igualitarismo é uma exigência do nosso próprio aparelho neurológico, das nossas próprias estruturas afetivas e cognitivas, pois a desigualdade literalmente adoece. As pessoas das classes baixas não transferem apenas recursos econômicos para as pessoas das classes altas, elas também transferem saúde física e mental. Elas também transferem anos de vida, porque é graças ao trabalho delas (o trabalho que as mata) que as pessoas das classes altas sofrem menos estresse, padecem de menos doenças e vivem mais tempo. 

Em diferentes áreas os ecos da verdadeira natureza humana estão se fazendo ouvir. Não tem para onde correr. Temos, sim, uma natureza humana. Precisamos de ar limpo para viver, não conseguimos nos alimentar de plástico, os metais pesados destroem nosso sistema nervoso e as gorduras saturadas e hidrogenadas entopem nossas veias. Somos organismos com certas exigências sociopsicofisiológicas. A nossa maleabilidade não é infinita. Ela esbarra no fato de que temos uma natureza biológica. O que é a famosa “dieta paleolítica” senão um reconhecimento de que nosso corpo não foi feito para digerir plástico, tinta e anéis de benzeno? O que são as academias de ginástica senão um reconhecimento de que não fomos feitos para a vida sedentária e cinzenta das cidades? O que são as revolucionárias teorias pedagógicas que valorizam a autonomia e a explicação por meio da participação (ao invés da exposição verbal monológica) senão um reconhecimento de que não somos soldados nem máquinas e sim animais pensantes? O que são os movimentos feminista, negro e operário senão o reconhecimento de que a igualdade é uma necessidade orgânica inegociável? As reações contra a tecnocivilização podem ser vistas por toda parte. Os imperativos do bioprimitivismo pulsam constantemente em nossos peitos.

Todas sociedades de hoje (em razão da colonização do mundo pelos ocidentais) são em certo sentido sociedades híbridas. Elas são sociedades regadas a valores ao mesmo tempo bioprimitivistas e tecnocivilizacionais. O problema, claro, é que o componente tecnocivilizacional tem atualmente mais força. Mas grande parte dos ideais de esquerda são práticas bioprimitivistas, isto é, são componentes rotineiros da vida dos povos caçadores e coletores. Eles comem alimentos orgânicos, eles não consomem carne industrializada, eles não são autoritários, eles não são sexistas, eles respeitam a vontade das crianças, eles vivem de forma sustentável, eles não são sedentários e eles não dão nem aceitam ordens de cima para baixo sem boas justificativas. Eles são radicalmente igualitários e levam a argumentação e a autonomia a sério. Não tem nenhum sentido vê-los como atrasados. Eles vivem exatamente da forma como especialistas de diferentes áreas dizem que deveríamos viver. Está na hora de levarmos o bioprimitivismo a sério. Os povos caçadores e coletores e os povos indígenas agricultores têm mais a nos ensinar sobre como viver no planeta do que imaginamos.

 

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