Carta-resposta a Luís Fernando Crespo
Gisele Secco
Profa. UFSM
17/05/2023 • Coluna ANPOF
A gente não se conhece. Me chamo Gisele, sou professora do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, no momento usufruindo de uma licença não remunerada e vivendo fora do Brasil. Acabo de ler sua manifestação na coluna Anpof de 11 de maio de 2023 e resolvi escrever no estilo démodé de interação filosófica que aprecio tanto, a carta. Em Humano demasiado humano o Nietzsche afirma que o diálogo, assim como a troca epistolar, é a “conversa perfeita”, pois nessas interações “tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de acompanhamento, em estrita referência àquele com quem fala.” A gente não se conhece, e é por isso que inicio esta carta justificando a resolução de escrever uma carta, que apesar de pública é endereçada a você (ou vice-versa?). A gente não se conhece, e isso me desafia a encontrar a cor e o tom adequados a este desconhecimento, mas sem desrespeitar o sentimento de obrigação que de imediato se me acometeu, de reagir ao teu escrito.
É que, desde o lugar de onde eu leio as tuas considerações (ah: não leve a mal a alternância de tratamento, entre “você” e “tu”; não é desrespeito, mas coisa de gaúcha), elas me soam estranhas, de diferentes maneiras. Vou, então, tentar te contar as razões de meu estranhamento, te fazer algumas perguntas e me colocar à disposição para seguirmos a conversa – se ela for sobre critérios de organização curricular no contexto da educação escolar e, em especial, sobre os papéis da filosofia e da matemática neste contexto.
Esse condicional se relaciona com meu primeiro estranhamento, porque você começa anunciando seu lugar, ao lado da filosofia e das demais disciplinas preteridas “em número de aulas, seja na importância dada dentro do conjunto.” Do conjunto do currículo escolar, é de se presumir. Tua leitora, então, infere que o tema do texto é a questão da distribuição/hierarquização das disciplinas nos currículos, o que fica evidente quando anuncias o teu segundo ponto, que eu não entendi. Explico: acabaste de nos informar que o tema do texto é de natureza curricular, mas de imediato nos dizes que uma das disciplinas do currículo, a matemática, é tão importante quanto as demais porque do contrário estarias reproduzindo algo da ordem social mais ampla, ou seja, relações entre opressores e oprimidos. Estás sugerindo, portanto, uma analogia entre componentes curriculares e indivíduos (ou grupos de indivíduos) em interações sociais “em geral” – analogia que se faz explícita no teu terceiro ponto, pelo qual localizas a matemática num espaço curricular de opressão, como opressora. Mas eu falho em ver a plausibilidade da analogia, porque você não explicita em que sentido uma disciplina (ou componente curricular) pode ser opressora do mesmo modo que pessoas ou instituições. Parece que você está pressupondo o mesmo que a Andrea Nye quando, em seu livro de 1990, ela inaugura uma tradição de críticas feministas à lógica, quer dizer, que a um gênero de conhecimento – que se manifesta como know-how ou habilidade na vida comum, mas se cristaliza como campo teórico no ambiente acadêmico, como é o caso de lógica e matemática – podemos atribuir as mesmas qualidades que atribuímos a pessoas, instituições, sociedades. O meu primeiro estranhamento, em resumo, é: esta analogia precisa ser detalhada, sob pena de confusão entre tipos ou modalidades de conhecimento, suas interações, e as dinâmicas sociais nas quais estes saberes são transmitidos, ensinados e aprendidos.
Uma disciplina formal, simbólica, como o são a lógica e a matemática, não é e nem pode ser opressora ou liberal em e por simesma, seja em sua dimensão teórica ou prática. Por “prático” quero dizer, por exemplo, saber calcular a porcentagem dos juros que pagamos quando deixamos atrasar um boleto ou saber inferir de “todo político é corrupto” e “Maria do Rosário é uma política” que “Maria do Rosário é corrupta” – mesmo que ela não o seja de fato). E por “teórico” o saber enunciar os algoritmos usados para calcular porcentagens ou o saber que se um indivíduo faz parte de um grupo do qual se predica uma qualidade, podemos dizer dele que possui esta qualidade, independentemente de qual seja a qualidade ou de quem seja o indivíduo. Essa independência é o que a gente, quando ensina lógica, chama de caráter formal das inferências, e este caráter é o que permite que ambas, lógica e matemática, tenham uma aplicabilidade quase universal. Assim, disciplinas formais não são entidades dotadas de intencionalidade ou ideologia, como são pessoas, grupos, instituições. Nem à lógica (como queria a Nye) nem à matemática, como você parece querer, faz sentido atribuir características demasiado humanas. O alvo a ser acertado não é a disciplina, mas seus praticantes.
Mas quem são os praticantes de matemática e filosofia nas escolas, senão os professores e professoras? “Ah”, tu poderias objetar, “mas eu não estou me referindo aos colegas que lecionam na escola, estou falando doe quem elabora documentos que determinam arranjos curriculares (a nível nacional, estadual etc..) e dos gestores e gestoras que, ao fim e ao cabo, tomas decisões baseados nas hierarquias disciplinares típicas do senso comum.” Ao que eu responderia: ótimo! Então vamos falar sobre quais aspectos das práticas desses atores evidenciam a ligação entre suas preferências ideológicas e suas ações no campo dos estudos e políticas curriculares. Tem um bocado de gente série que se dedica a trabalhar esses tópicos, e tem a realidade, sim, batendo à porta dos milhares de licenciados em filosofia e humanidades e dizendo “Não há vagas”. Mas a questão aqui é política, em vários sentidos, muitos deles implicados no seu texto sem nitidez sobre como se relacionam. Vou dar um exemplo:
Você afirma que “a nossa sociedade” valoriza sobremaneira a matemática, considerando a útil por causa do tipo de raciocínio que ela ensina. A qual tipo de raciocínio você se refere: dedutivo, por analogia, por indução, raciocínios por redução ao absurdo? Pergunto porque, tendo tido a alegria de, durante anos, formar professores de filosofia, biologia, química, língua portuguesa, física e matemática, tive a chance de ler e discutir com eles inúmeros documentos oficiais nos quais se detalham os diversos tipos de raciocínio implicados em cada uma delas, bem como de descobrir diversas maneiras de utilizar as mesmas ferramentas lógico-matemáticas nos diferentes contextos disciplinares, de acordo com as particularidades de cada uma delas e as potencialidades interdisciplinares que revelam. Mas ainda que o seu texto não especifique a natureza “deste tal raciocínio” exigido pela matemática, eu consigo concordar com a sua ideia de que modos matemáticos de raciocinar não são ensinados apenas pela matemática como componente curricular (do contrário, como poderíamos explicar a aplicabilidade desses modos de raciocínio às demais ciências, não é mesmo?). Agora, quanto à alegação de que “a filosofia poderia dar conta” desses raciocínios “se pensarmos a matemática como um ramo da lógica”, meus estranhamentos mudam de figura.
Porque agora você está condensando, em uma breve e incidental frase, milênios de discussão. Sem exagero: as relações entre lógica, matemática e filosofia são tão atávicas quanto complexas (e a meu ver fascinantes), tão historicamente emaranhadas e em tantos contextos distintos (desde a China antiga, passando pela Mesopotâmia, pela Índia e pela África, antes de chegar ao mediterrâneo onde essas disciplinas, tais como as conhecemos “nasceram”), que meus escrúpulos historiográficos não me permitem consentir com o seu pressuposto fregiano. A redutibilidade da matemática à lógica, você deve se lembrar, foi uma vez, por obra de Frege, o carro chefe dos programas de fundamentação da matemática, programas cujas consequências indiretas até têm a ver com um modelo de pedagogia matemática com razão bastante criticado, e que hoje em dia felizmente vai sendo remodelado em favor de um ensino menos atrelado à teoria dos conjuntos e mais afeito às práticas de cálculo, raciocínio e provas que incluem recursos tão distintos quanto representações visuais, tácteis e diagramáticas de toda sorte, ferramentas de programação etc.. Desculpa, Luís Fernando, eu me comovo com esses tópicos e acabo me desviando do ponto. Estou começando a perceber, conforme escrevo e releio o teu texto, que o meu ponto principal é mesmo o teu uso de analogias. Vamos ver.
Entre os parágrafos três e quatro tu argumentas por meio de uma comparação entre filosofia e matemática, em especial seus “conteúdos”. É verdade que você não usa essa palavra, mas sugere que se trata disso quando fala do treinamento dos estudantes na prática de “resolução de matrizes determinantes” e compara esse aprendizado (que você mesmo reconhece necessitar de muito exercício) com um correspondente filosófico, qual seja, “todo o idealismo alemão”. Novamente, falho em ver o que há de relevante entre os dois casos como para manter a analogia de pé: primeiro porque entre aprender a resolver matrizes e receber uma explicação de todo o idealismo alemão não parece haver correspondência alguma. Num caso, o matemático, estamos falando de um saber-fazer, uma habilidade que se aprende por meio da repetida manipulação de símbolos de acordo com regras de transformação e substituição dos mesmos. No outro, o filosófico, estamos falando de um saber-que, um conhecimento “histórico” que você parece sugerir que só é bem apreendido quando o estudante o entende “por dentro”. Pois, novamente: a não ser que você explicite em que sentido as habilidades exigidas para fazer história da filosofia alemã são similares às habilidades demandadas para a resolução de matrizes, a analogia falha e, com ela, a força de teus argumentos em defesa da filosofia no currículo escolar.
Nota bene: eu mesma aposto na existência de conexões incrivelmente potentes a serem feitas entre as didáticas da história, da filosofia e da matemática, e opino que elas são obliteradas justamente pelo tipo de argumento que você apresenta. Tudo se passa, de acordo com sua mensagem, como se fosse legítimo discutir questões de chão de escola, como a distribuição de carga horária por disciplina, com base em considerações sobre o valor destas disciplinas para a sociedade, mas sem que se nos sejam oferecidos elementos relevantes, vindos da realidade, como por exemplo, os solavancos da aprovação da BNCC, a imposição autoritária da reforma do ensino médio e os efeitos disso nos estados, municípios e escolas. Mas mais do que isso, as lentes (heideggerianas, talvez) com as quais você sugere compreender a matemática como disciplina escolar me parecem ser inadequadas para compreender o que seja a matemática como campo do conhecimento. E esta distinção, entre as disciplinas escolares e os campos de saber e pesquisa acadêmica que lhes correspondem, é o marco zero de qualquer bom debate sobre como organizar os currículos escolares. Nova nota bene: mesmo que eu não me sinta confortável em entrar no mérito da perspectiva de Heidegger sobre as ciências formais, preciso te dizer que a ideia de que “O objeto matemático não toca o ser humano em sua humanidade” é extremamente contenciosa, e a meu ver só serve para engrossar o caldo discursivo cuja consequência nefasta acaba sendo a eliminação da matemática dos currículos de escolas públicas, enquanto nos das privadas os alunos não só aprendem matemática como programação – essa coisa tão perigosa de aprender que, no nosso dia a-dia, vive guardada dentro das licenças de sofware proprietário, pelas quais a maioria de nós paga sem sentir. Há perigos e perigos.
Quando você enfim nos conta o que significa “compreender ideias por dentro”, então, fica muito evidente pra mim que, ao contrário do que você talvez desejasse, as analogias entre práticas matemáticas e filosóficas que você oferece servem pra contestar o que você quer provar. Senão, vejamos. Você diz: “Compreender as ideias ‘por dentro’ implica tentar enxergar aquilo que os pensadores enxergaram e que os motivou à reflexão.” Em que mundo isso não é exatamente o que se passa nas boas aulas de matemática, nas quais se trata de fazer os estudantes verem o mesmo que os matemáticos viram quando tentaram resolver um problema (tipo aquele da duplicação do quadrado que Sócrates propõe a Mênon, lembra?)? E deixar que os alunos experimentem soluções, e fracassem, e tentem novamente, coletiva e colaborativamente, até chegar a uma solução? Qual seria a diferença essencial entre esse proceder didático-pedagógico e o proceder socrático, dialógico, que a todos nos inspira como modelo de professor?
Bem, a conversa já está muito longa e eu preciso terminar. Hoje vou encontrar uns amigos, um grupo de matemáticos, filósofos e computeiros com quem temos um seminário de história e filosofia da lógica e da matemática. Lá, quando um desavisado começa com essa estória do que é a base do quê, ou sobre a suposta inutilidade da fórmula de Bhaskara para as crianças na escola, a gente filosófica respira e pergunta: base lógica, sociológica, histórica ou pedagógica? E seguimos pensando em como articular nossos saberes de modo que uns às outras se entendam, cada um na sua, mas com muitas coisas em comum.
A gente não se conhece, mas espero que possamos seguir conversando. Cordiais saudações,
Gisele
Claremont, 12 de maio de 2023.
P.S.: Você poderia explicar a escolha do título do seu texto? Não vi referência nem à “falácia”, nem vi discussão sobre a dificuldade da matemática...