Chaves e Platão: Paradoxo de ChurruMênon

17/12/2020 • Coluna ANPOF

Tiago de Oliveira Magalhães

Em um de seus manuscritos, Wittgenstein afirmou que é possível escrever um livro de filosofia composto inteiramente de piadas. Concordo. O trabalho do filósofo, que exige boa dose de distanciamento dos modos corriqueiros de pensar, frequentemente parece requerer certo apreço por irrelevâncias e absurdidades. Essa inclinação é compartilhada por loucos, crianças e humoristas, figuras que também conseguem se afastar com facilidade da lógica inerente ao mundo prático.

As minhas piadas favoritas de Chaves são justamente as que envolvem absurdos. A primeira contradição que me chamou a atenção, muito antes de eu começar a estudar lógica e filosofia analítica, está num esplêndido micro-diálogo entre Kiko e dona Florinda:

– Mamãe, posso entrar na piscina?
– Sim, Tesouro, mas não vá se molhar.

Quando criança, sacadas desse tipo me maravilhavam tanto que eu não conseguia vê- las apenas como divertimentos; elas pareciam revelar um mundo novo, repleto de possibilidades incríveis. Como a realidade concreta, com sua teimosia antipática, sempre me deixou um bocado desconfortável, acabei desenvolvendo grande propensão para o disparate.

Dessa forma, nada mais fácil que me identificar com as peculiaridades cognitivas do Chaves. Como ele, em alguns momentos, eu primeiro entendo sentidos bizarros das expressões e, só depois, o sentido mais usual, se é que venho a entender o sentido usual. Quando me pego fazendo isso, é quase irresistível repetir para mim mesmo: ‘ai, que buro, dá um zero pra ele!’.

Eu devia ter uns dez anos, quando, certa vez, meu tio Canuto – ou teria sido o tio Joãozinho? – me disse: ‘E então, jovem, o que é que há?’. Gosto de pensar que esse foi o pontapé inicial das minhas especulações metafísicas. Bem, é óbvio que estou enfeitando o passado. Claro que não tentei articular nenhuma tese ontológica naquele momento. Mas a fala me intrigou, porque realmente me pareceu uma pergunta estranha, sobre o que existe de modo geral, e não como simples saudação. Ao menos é assim que eu lembro. Algum implicante poderia alegar que, àquela época, eu já ouvira inúmeras vezes o famoso bordão do Pernalonga, mas isso não me faz abrir mão desse belo registro. Afinal, eu posso ter sempre entendido a frase toda – quequeavelinho – como uma espécie de interjeição longa usada pelo coelho, um gavagai qualquer que ele falava e eu nunca me dei ao trabalho de traduzir.

Estes dias, descobri que outra memória, de cuja fidedignidade nunca suspeitei, foi substancialmente recauchutada pela minha imaginação. E uma memória importante, a respeito de alguns dos personagens mais interessantes de Chaves: os misteriosos churruminos. A cena em que esse termo é introduzido, uma interação entre Chaves e Chiquinha, é uma das minhas favoritas e eu sempre a citei, para várias pessoas, dizendo que ela contém estas falas:
– Que é isso? Tá louco?
– Shhh... Estou caçando churruminos.
– Caçando o quê?
– Churruminos.
– E o que é isso?

– Não sei. Ainda não peguei nenhum.

Depois de citar as falas, eu sempre dizia, com a maior empolgação, que esse gracejo põe em evidência um problema filosófico fundamental. O alvo de nosso riso, o fato de que a tal busca pelos churruminos não faz o menor sentido, nos diz algo importante sobre o buscar. Eis aí algo que interessa a filósofos de diferentes tradições. Heidegger, por exemplo, bem que poderia ter usado essa ilustrativa pilhéria como artifício expositivo em Ser e Tempo, o que contribuiria para tornar sua leitura mais divertida, digo, para tornar sua leitura ao menos um pouco divertida. Poderia aparecer como uma pequena digressão mais ou menos nesta altura:

Enquanto busca, o questionar necessita de uma orientação prévia do que se busca. Para isso, o sentido de ser já nos deve estar, de alguma maneira, à disposição. Já sealudiu que sempre nos movemos numa compreensão de ser. É dela que brota a questão explícita do sentido de ser e a tendência para o seu conceito (§2).

O conhecimento, então, é a meta de uma investigação, mas também, de certa forma, deve estar no seu ponto de partida. Esse é o cerne do que atualmente recebe o nome de Paradoxo de Mênon, devido a esta passagem de um diálogo de Platão:

E de que modo, Sócrates, te arranjarás para procurar o que não sabes absolutamente o que seja? Das coisas que desconheces, qual é a que te propões procurar? E se porventura vieres a encontrá-la, como poderás saber que é ela, se nunca a conheceste?
– Compreendo, Mênon, o que queres dizer. Mas, será que avalias, de fato, quanto é provocativa tua proposição de que o homem não pode procurar nem o que sabe nem o que não sabe? Não pode procurar o que sabe, pelo simples fato de já o conhecer; não precisará portanto, esforçar-se para procurá-lo; nem o que ignora, pois não saberá mesmo o que terá de procurar (Mênon, 80d-81a. Trad. Carlos Alberto Nunes).

Sócrates considera provocativa a fala de seu interlocutor porque ela sugere que a aquisição de conhecimento ou é desnecessária ou é impossível. Ora, se assim fosse, a forma de vida de Sócrates perderia o sentido, pois ela consiste essencialmente em buscar a sabedoria. Seria, então, a atividade filosófica tão vã como a caça aos churruminos?

Platão lida com esse desafio apelando à sua célebre teoria da reminiscência, em que propõe que, realmente, a alma humana não adquire conhecimento. Quando alguém parece aprender algo, está, na verdade, relembrando algo que sabia antes de nascer. Nossas almas, antes de serem aprisionadas em seus respectivos corpos, contemplavam diretamente a realidade última, o mundo eterno das Formas. Durante a estada no mundo material, a alma perde esse acesso privilegiado ao verdadeiro conhecimento, sendo capaz de recuperá-lo apenas parcialmente e depois de muito esforço.

Segundo Platão, os seres materiais são apenas uma imperfeita imitação (mímesis) daquilo que existe no mundo das Formas. E, naturalmente, o trabalho do filósofo deve se orientar pelos originais, não pelas cópias. Os objetos concretos, acessados pela percepção, não prestam o auxílio de que necessita a alma que anseia pelo conhecimento. Esse é um papel que cabe somente a outras almas, que podem criar, por meio do diálogo, as condições que propiciam a reminiscência. Durante os diálogos, conteúdos não podem ser exportados de uma alma para outra. Por isso que Sócrates chama sua atuação de maiêutica, por ela ser similar ao trabalho da parteira, que apenas ajuda a trazer à tona algo que está no interior do outro.

E aqui retorno aos churruminos e à afinidade entre humor e filosofia. Iniciei a breve e precária apresentação do pensamento de Platão que vai acima com a enunciação de certo problema, o Paradoxo de Mênon, problema este que aparece, condensado, naquele trecho do diálogo sobre os churruminos. Por seu poder de apresentar conteúdos relevantes de forma sintética e saliente, piadas desse tipo são capazes de facilitar a identificação de relações conceituais fundamentais para a atividade filosófica. Esse potencial é ainda mais evidente no âmbito do compartilhamento de pensamentos filosóficos, onde uma piada – uma piada excepcional, claro –, usada com habilidade, pode tornar-se uma espécie de deflagrador de insights alheios, um mecanismo de intervenção maiêutica instantânea.

Pois bem, toda a cadeia de pensamento que vai acima, aparentemente, está baseada numa falha de minha memória. Eu tinha plena segurança de que a cena que introduz os churruminos era tal como relatei. Mas vi novamente o episódio e eis que, na verdade, o diálogo entre Chaves e Chiquinha é este:
– Que é isso? Tá louco?
– Shhh... Estou caçando churruminos.
– Caçando o quê?
– Churruminos.
– E o que é isso?
– Os churruminos são uns bichinhos assim pequenininhos, pequenininhos, que só existem na minha imaginação.

A revelação fez-me pensar que minhas reminiscências estão mais para mímesis fajutas que para revelações de realidades eternas. Mas a surpresa não foi de todo má, pois essa segunda versão do diálogo também contém considerável potencial filosófico. Ela me fez lembrar o Argumento da Linguagem Privada do tal Wittgenstein, que citei na abertura, lembrança que dá um bom mote para outro texto.

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*Tiago Magalhães, Psicólogo, mestre e doutor em filosofia (UFC) e professor da Faculdade Ari de Sá