Coluna Anpof - Especial Mês da Consciência Negra "A galinha d'Angola interroga a coruja de minerva"

30/11/2020 • Coluna ANPOF

Luís Ferrara (1)

Hoje o terreiro tá cheio! É melhor colocar mais água no feijão e dar uma boa refogada na galinha.... Põe bastante alho, que o tempero tem que ficar bom. O pessoal do samba já tá chegando, a cerveja tá no ponto, acende a vela e derrama a cachaça pro santo que eu não quero briga e não quero ninguém com fome! Porque hoje eu só paro amanhã.

Não é estranho aos nossos ouvidos presenciar cenas acima no dia de um bom sábado ou domingo de sol, com o encontro de várias pessoas que se reúnem para festejar; algumas entram com fios de conta, outras com o pingente de um crucifixo, alguém dá aquele gole da bebida pro santo. De repente, alguém pede um cigarro, muda de feição, em seguida os sentidos se alteram e pronto... A festa está só no começo.

Em meio a essas tantas e tantas pessoas, haverá, em certa ocasião, algum profissional da Filosofia, alguém que já tenha lido Nietzsche ou Hegel e até mesmo algum certo doutor da razão. Assim como haverá quem nunca ouviu falar de Kant, tampouco vai se importar com as discussões calorosas sobre os dados imanentes da memória de Bergson, mas... é justamente ali, no auge do samba, no saborear da feijoada e no gole da cerveja gelada que interrogações são postas em confronto.

Há em certo ponto – digo, há de forma evidente – um ethos cultural presente na Filosofia – tal como a conhecemos – que nega as experiências de saberes e de conhecimentos que são produzidas fora dos cânones da já tão fixada e sonhada intelectualidade de herança moderna. Ela, cheia de tabus, se aprisiona dentro de si, não possibilitando perceber outras formas de entendimentos de mundo. Além disso, busca separações, investe nas dicotomias, reproduz conceitos de subalternização e adsorve em um template de Humanismo dado ao fim.

Nesse ar de interrogações surge um confronto desproporcional. Uma nuança provocadora e malandra sobre o papel da Filosofia frente as manifestações negras culturais brasileiras. Qual teria sido o motivo de a Filosofia ter se distanciado dos problemas estruturais brasileiros provocados pelo racismo, eximindo-se de fazer reflexões profundas sobre as concepções estéticas que trazem a cultura afro-brasileira?

Em algum lugar, repousou a Filosofia sobre a sua legitimidade única do status Ocidental, com “única” origem, com única reta de “evolução” do pensamento. Ora, se as artes, de modo geral, as religiões, a linguagem e as diversas formas culturais da humanidade existentes no mundo não advogam para si um único local de produção, por que então teria a Filosofia um único território de nacionalidade? Um único modo de se produzir filosofia?

Logo, é Ela, a Filosofia Ocidental, que em suas entrelinhas busca a quebra dos paradigmas. No entanto, diante das indagações de outras formas de pensar, de outras maneiras-mundo de entender a vida, a morte, a política, sente-se ultrajada e enxurrada de tabus, principalmente quando são ecoadas as ideias das Filosofias Africanas, das Filosofias afro-brasileiras, das Filosofias ameríndias e afro-ameríndias, das Filosofias do modo de existir dos Terreiros.

A herança da Filosofia Ocidental continua com a sua imagem de gabinete, amontoada em pilhas de papeis, olhado para quadros de romantismo alemão e refletindo acerca de um único ideal de humanidade. Esse é o ideal que excluiu e foi responsável pelo extermínio de outras formas e ideias sobre o humano. Por isso, pensemos: ainda é possível filosofar somente dentro dos gabinetes? Resume-se a Filosofia ao Ocidentalismo dos textos canônicos?

De qualquer forma, a festa de samba continua... E vai trazendo muito mais gente para dentro do terreiro. E é nesse tom sincopado que a Galinha d’angola, símbolo tão importante para os Candomblés, começa seu ciscar preso ao chão; na terra, traça caminhos entre o fazer alimentar e o fazer existir e, nesse jogo, a Galinha d’angola vai chamando para a roda a Coruja de Minerva.

A Coruja surge como a metáfora filosófica proposta por Hegel em sua obra “Princípios da Filosofia do Direito” (1820). Nela, o filósofo diz: “a coruja de Minerva abre suas asas somente com o início do crepúsculo”. Esse pássaro de rapina, em alusão a deusa grega Atenas, como se refere a Tradição, vai ao longo do tempo transformando-se em um símbolo de mergulho profundo na Razão, no Tempo, na Memória e, principalmente, na ideia de História hegeliana.

Mas Hegel nunca foi ao samba...

O voo rasante da Coruja de Minerva, nas ideias do pensamento hegeliano, excluiu o africano – e consequentemente o Ser-Negro da Diáspora africana – do que o próprio Hegel concebia como a “História Universal”, alegando que os negros eram incapazes de possuir um Espírito de compreensão absoluta. No crepúsculo visto por Hegel, a experiência-mundo do Ser-Negro é lançada às categorias de selvagem e de incivilizado; são seres ligados à brutalidade e à barbárie, restando-lhes a servidão a outro Espírito que fosse superior ao dos africanos, nesse caso, aos europeus. Essa seria uma das justificavas (Ontológicas) da escravidão que, por conseguinte, retirava o caráter humano dos povos africanos e do legado cultural dos povos da Diáspora.

Pouco importa se Hegel não foi ao samba, o que aqui soa como ironia chega a ser anacrônico..., todavia, tenho certeza de que o camarada dialético entenderia a sua exclusão do “Samba Universal”.

Não ascendendo voo no crepúsculo, a tão querida por Obatalá, a Galinha d’Angola, é colocada aqui – de maneira especulativa – como o símbolo de interrogação – diga-se de passagem, de provocação à Filosofia Ocidental, essa que, ao longo de sua estruturação, negou as agências de humanidade dos seres africanos. Talvez a anedota possa parecer fora de contexto, mas soa-se muito mais agradável imaginar que seja justamente uma galinha que deva aparecer na reunião de amigos no fundo de casa quando ouço o antigo Samba “Filosofia de Quintal”, interpretado pelo saudoso Mussum no CD “Because Forever” (1986).

A galinha vai ao Samba, vai no Terreiro, foge da gaiola no meio da feira; enche a panela, enche a barriga, reúne amizades, é brincadeira das crianças. Ela é bico que conversa com as pomba-gira... sem contar que o seu esposo – o Galo – é prometido por Sócrates à Asclépio, mas isso é outra História.

A Galinha d’Angola é apenas uma metáfora daquilo que é produzido pelo falar e pelo pensar dos saberes tradicionais e populares. Eles estão na memória e na agência da própria palavra saída da boca dos mais velhos e das mais velhas, da sapiência das mães de santo, das curandeiras, dos benzimentos que se guarda no quintal de casa, no interior dos quilombos, povoados, nos rituais dos terreiros. É Metáfora das experiências negras brasileiras que merecem ser lidas como Filosofia.

Nem tampouco me resumo aqui a buscar justificativas para a existências de outras Filosofias fora do cânone do ocidental, ou substituir uma pela outra. Trago a Galinha como uma provocadora da Razão Ocidental que despenou outros sentidos humanos interligados com a natureza. Se o giro de 360º da Coruja de Minerva se coloca a ver o Todo, esse Todo é visto por olhares bem seletivos. A Galinha d’Angola vai do chão a cabeça, da cabeça a panela, da panela ao corpo, do corpo ao santo. Ela atravessa os reinos do mundo animal, vegetal e mineral e transcende a realidade posta em linha reta pela Modernidade. Ainda, suas pintas brancas em penas negras questionam metáforas e símbolos já tão ovacionados pela tradição europeia; se faz necessário bicar, ciscar e, literalmente, pôr ideias. É necessário alimentar a comunidade e fazer a roda de samba girar. A Galinha está no estômago e no cérebro; traz alguma mensagem sobre ancestralidade, sobre a vida, sobre a morte e alimenta a realidade da resistência.

Mas, continue mexendo na panela para não perder o ponto, porque, chegando amanhã, eu também não vou parar...

É ali nos ciscar do terreiro, com pés sujos de terra que são repercutidas maneiras éticas da vida, e da vida em comunidade. Seja no Samba, seja na roda Capoeira, na roda de Tambor de Crioula, no toque das Caixeiras do Divino Espírito Santo, e em qualquer outro espaço – cosmopolítico – onde as relações são configuradas nas potencialidades das diversas origens africanas é que é possível habitar Filosofias; modos reflexivos que envolvam a natureza e os outros seres (entidades, caboclos…). Nesse sentido, o ciscar que faz a Galinha D’Angola inaugura a compreensão de um conceito próprio no nosso modo de reunir, de se ajuntar atravessado por uma linguagem ética de manter a festa. O ciscar é abrir condições das dimensões humanas, é ligar-se ao cotidiano.

As Filosofias afro-brasileiras, são modos de ciscar, produzidas a partir das maneiras negras de existir, são modos urgentes e emergentes para entender os problemas que o Racismo Estrutural causa em nossa sociedade. A Filosofia deve se afastar dos seus “mitos de origem” e de sua soberba eurocêntrica. Ela deve retirar os chinelos, pisar de pés descalços e perceber, no devir do ciscar da Galinha d’Angola, revelações que o voo da Coruja de Minerva não alcança.

 

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1- Doutorando em Bioética pela Universidade de Brasília (UnB) Autor do Livro: Ubuntu e a Metafisica Vodum: o pensar filosófico a toques de Tambor de Mina