Coluna Anpof - Especial Mês da Consciência Negra "Bubo Scandiacus: Representação Racial nos Programas de Pós-graduação em Filosofia"
12/11/2020 • Coluna ANPOF
Fernando de Sá Moreira (UFF)
Que a coruja é conhecida como o animal da filosofia, todos sabemos. Porém, não me consta que a tradição tenha alguma vez escolhido uma espécie particular de coruja como seu símbolo. Em qualquer lugar ou tempo, a princípio, toda coruja poderia representar a filosofia, pouco importa o tamanho, habitat, cor dos olhos, hábitos alimentares, padrões de voo, tonalidade das penas etc.
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Por outro lado, quando se trata do ser humano, não se pode falar o mesmo. Não faltam exemplos históricos de tentativas de delimitar um certo modelo de homem que seria mais apto ao exercício filosófico. Esse modelo geralmente se refere a certas características morais, intelectuais ou comportamentais, que um amante da sabedoria deveria portar consigo. Independentemente de concordar ou não com as características identificadas pelo cânone, cabe observar que, social ou teoricamente, a aptidão ao filosofar também foi, em certos momentos, identificada com corpos específicos, descritos em termos raciais, de gênero etc. Em outras palavras, os indivíduos deixariam entrever – por exemplo, ao mero vislumbre da cor de sua pele – se seriam capazes de fazer filosofia.
Não é novidade para ninguém que, dentro da lógica do racismo moderno, especialmente em suas formulações desde o século XVIII, alimentou-se certa imagem de que indivíduos identificados como “brancos”, “arianos” ou “caucasianos” seriam aqueles aptos a filosofar “de verdade”. Enquanto isso, os demais grupos seriam capazes, quando muito, de expressar certos arremedos de filosofia, certos insights de “pensamento”.
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Considerando a ordem dos estrigiformes, existem mais de 200 espécies de corujas no mundo. Com exceção da Antártida, elas podem ser encontradas nativamente em todos os continentes.
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O Brasil foi um país edificado por meio de uma organização de exploração hierárquica e racialmente determinada. Causas e efeitos disso podem ser encontradas, por exemplo, na constituição do ensino superior brasileiro, historicamente marcado pela exclusão racial. Na verdade, apenas muito recentemente teve início um efetivo processo de mudança desse cenário; uma mudança cercada de limitações, antagonismos e incertezas.
Há alguns anos tenho procurado entender como raça e racismo afetam a comunidade filosófica brasileira, e como são por ela afetados. Essas investigações me levaram naturalmente a um labirinto de questionamentos. Uma pergunta central nesse emaranhado é: como cada grupo racial está representado nos programas de pós-graduação da área de filosofia no Brasil?
Pois bem, as informações públicas mais recentes, disponíveis no Relatório Síntese de Área do Enade 2017 e nos microdados da Coleta Capes 2018, nos permitem chegar ao seguinte gráfico:
O gráfico é um dos resultados de uma pesquisa ainda em andamento sobre o tema, inspirada em grande medida pelos trabalhos de Carolina Araújo sobre mulheres na filosofia. Cabe alertar que os números de cada grupo de cor/raça correspondem ao seu percentual entre aqueles que possuíam
declaração de pertencimento racial. Por outro lado, os números relativos aos não declarados ou sem informação mostram sua representação diante do total de estudantes recenseados.
Não é o caso de entrar em maiores considerações técnicas aqui. Pretendo fazê-lo em outra oportunidade. O que mais interessa notar agora é que o gráfico nos fornece uma fotografia da representação racial de nossos programas de pós-graduação. Infelizmente, como qualquer fotografia, por si só, ele não permite perceber com clareza tendências e movimentos. Mesmo assim, penso que fornece oportunidades de estranhamento, que podem servir como motores ao pensar e agir filosóficos.
É curioso notar que, entre concluintes dos cursos de graduação em filosofia, encontramos uma distribuição étnico-racial aproximada à distribuição da população brasileira. Há ainda, sem dúvida, alguma vantagem do grupo autodeclarado “branco”, já que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, 43,1% dos brasileiros se declaravam brancos em 2018, contra 50% dos formandos em filosofia no mesmo ano. Mas, ainda assim, os números parecem ser razoavelmente equilibrados.
Porém, quando se trata de considerar a pós-graduação, a situação muda radicalmente. Todos os grupos não brancos passam a ser muito sub-representados. E mais, quanto mais alta é a titulação em questão, menos diversos racialmente se apresentam os cursos de pós-graduação. Mestrados profissionais ainda mantêm um pouco de equilíbrio entre brancos e negros, não obstante, com clara super-representação masculina e branca. Nos doutorados, mesmo mulheres brancas, que estão em forte desvantagem em relação aos homens brancos, são 64% mais numerosas do que a soma de todos as pessoas amarelas, indígenas e negras (homens e mulheres).
Quanto ao número de docentes negras(os), indígenas ou amarelas(os) nos programas, não há qualquer informação oficial. A Coleta Capes só registra o campo “cor/raça” desde 2017 e, todavia, não o registra para docentes. Sinceramente, não há qualquer expectativa de que seja uma situação melhor do que a apresentada entre os membros do corpo discente. Muito pelo contrário, tendo em vista que os dados do INEP de 2018 revelavam que, naquele momento, apenas 16% dos professores(as) universitários(as) eram negros(as), em nada me surpreenderia se esse número mal chegasse a 10% nos programas de nossa área.
Decerto, esses percentuais não parecem divergir significativamente das inúmeras experiências descritas por estudantes negros e negras em seus trabalhos. Mas, infelizmente, é preciso notar que esses dados possuem uma inconsistência fundamental. O número de estudantes sem dados registrados de cor/raça é terrivelmente alto em mestrados e doutorados acadêmicos: mais de 50%. As razões dessa inconsistência precisam ser identificadas.
Vale ressaltar, entretanto, que ela não parece ser fruto de um desejo ativo do corpo discente de não declarar seus pertencimentos. Digo isso porque levantamentos semelhantes raramente possuem um índice tão alto de não declaração e ausência de informação. O próprio levantamento de concluintes de graduação é um exemplo disso. Tudo leva a crer que se trata, antes, de outro caso: aparentemente muitos programas não estão solicitando que os discentes se declarem, ou não estão registrando esses dados no evento da Coleta. Como resultado, a falta de dados precisos dificulta não apenas a identificação de um problema, mas também a adoção de medidas efetivas para sua correção e reparação.
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Bubo scandiacus é o nome científico de uma espécie de coruja também conhecida como coruja-das-neves, coruja-do-ártico ou coruja-polar. Como seu nome indica, seu habitat é o hemisfério norte, em especial as gélidas regiões mais setentrionais.
Dizem que ela nasce na primavera. Quando pequena, sua plumagem é escura, confundindo-se com ambiente ao redor. Ela cresce e desenvolve suas penas enquanto o inverno se aproxima. Em indivíduos jovens, seus olhos amarelos dão um toque final a seu visual marcado pelo contraste entre penas brancas e pretas.
Dizem que é possível estimar a idade de uma bubo scandiacus apenas observando-a, pois, quanto mais velha for essa coruja, menos penas pretas comporão seu corpo.
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A introdução do livro O ensino de filosofia e a lei 10.639 de Renato Noguera começa com uma epígrafe muito provocativa de Charles W. Mills: “Filosofia é a mais branca dentre todos as áreas no campo das Humanidades”. Não penso que essa seja uma lei universal. Porém, cabe-nos tomar essa provocação e colocá-la à prova em um contexto concreto.
Tive já a oportunidade de fazer duas investidas nessa frente: mapeando os Estudos Filosóficos Negros nos programas da área e refletindo sobre como o racismo acadêmico pode influenciar a dinâmica desses programas. Neste momento, interessa-me olhar para a proposição de Mills, buscando observar a crua presença física de corpos negros, indígenas e mesmo asiáticos nos bancos universitários da pós- graduação em filosofia. O que encontraremos, se compararmos essas informações com as de outras áreas?
Lamentavelmente, a tabela a seguir, ordenada da maior para a menor concentração de estudantes de cor/raça “branca”, evidencia que a proposição de Mills pode ser perfeitamente aplicada ao contexto brasileiro. Na verdade, a filosofia não é apenas a mais branca área de todo o campo das humanidades (em verde), mas também uma das mais brancas de todas as áreas de pós-graduação stricto sensu no Brasil, muito acima da média nacional (em laranja).
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O Brasil é a morada de, ao menos, 22 espécies de corujas, com as mais variadas cores, hábitos e – talvez possamos dizer – sabedorias. Aqui é possível encontrar coruja-buraqueira, jacurutu-da-caatinga, caburé-miudinho, suindara, murucututu-de-barriga-amarela, corujinha-de-roraima, caburé-acanelado.
O meio ambiente, incluindo algumas espécies de coruja, encontra-se sob grave ameaça na atual conjuntura de nosso país. Cabe-nos defendê-lo.
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Também a filosofia encontra-se sob forte ataque. Cabe-nos defendê-la. Para isso, é preciso consciência de muitas coisas, inclusive de quem somos e para quem a defendemos. É preciso consciência, inclusive de quais indivíduos compõem ou não compõem o corpo da comunidade filosófica nacional. É preciso consciência, inclusive consciência negra.
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Strix huhula é, aos meus olhos, uma das mais fascinantes corujas sul-americanas.