Coluna Anpof - Especial Mês da Consciência Negra "Oyèrónké Oyewùmí: tecituras filosóficas comprometidas com a decolonialidade"
08/12/2020 • Coluna ANPOF
As tecelãs em um contínuo movimento de vai e vem produzidos por seus pés que sobem e descem sobre os pedais do tear, possuem o poder de (des)fazer, fiar e construir os mais diversos tipos de tecido. Invoco essa imagem no intuito de convidá-la(lo) a ler esse texto com outros ouvidos e a (des)enrolar e (inter)ligar os fios que tecem a filosofia.
Entre as palavras e as coisas que aprendi e venho aprendendo na filosofia é buscar pensá-la a partir de problemas. Desse modo, o meu mergulho no rio da filosofia africana surgiu do reconhecimento de três problemas na filosofia: Primeiro, a necessidade de contemplarmos as discussões da(s) filosofia(s) africana(s); segundo, há uma invisibilidade das pensadoras negras como produtoras de pensamento filosófico; e terceiro, que podemos (e devemos) estabelecer diálogos com autorias europeias e norte-americanas, mas esses não serão os únicos fios que acomodarão as miçangas das nossas guias textuais.
Em busca de assentar outros sentidos na produção do saber, e no intuito de fiar uma filosofia sob a companhia das pensadoras negras, deparei-me com discussões movidas por pensadoras africanas que oferecem um estudo sobre as experiências filosóficas no continente africano, principalmente no que diz respeito à decolonização da epistemologia e ontologia; reflexões sobre os modos (coloniais) como a gente vem lidando com os estudos africanos; os discursos ocidentais de gênero; e as questões interseccionais de raça, gênero e classe.
Atualmente, umas das referências[1] fundamentais da filosofia africana contemporânea que vem buscando trazer as experiências africanas na construção e composição dos conhecimentos, e tecer uma crítica oxunista decolonial à universalidade da categoria de gênero, é a epistemóloga nigeriana de origem iorubá Oyèrónké Oyewùmí, princesa do ààfin Sóún (o palácio) de Ògbomòsò?, uma unidade política Oyó-Iorubá com importante significado histórico.
Oyewùmí, por meio da análise da língua, da apresentação de dados históricos e testemunhos de pessoas iorubanas que vivenciaram o período pré-colonial, diagnostica, nos seus trabalhos, que antes da colonização britânica o gênero não estava presente na iorubalândia. Ou seja, a sociedade Oyó-Iorubá não era organizada em termos de gênero, mas de senioridade.
Senioridade é a (dis)posição das pessoas com base em suas idades cronológicas, porém relativas, pois se manifesta continuamente em relação com alguém, sendo um princípio situacional, dinâmico e fluído que nos possibilita pensar e conceber papeis sociais que não são diferenciados por gênero. A pessoa mais velha independentemente do seu sexo anatômico assume a posição de poder em/com relação à pessoa mais nova, cuja posição variará em função da faixa etária com quem se relaciona, já que não somos de forma permanente pessoas mais novas, considerando o aspecto fluído e transitório das relações etárias.
Nitidamente, os órgãos sexuais das pessoas existem, mas não atuam no interior da sociedade Oyó-Iorubá como um instrumento de diferenciação, e sim de distinção anatômica. Tanto que Oy?wùmí vai criar os conceitos de anafêmea e anamacho para se referir à anatomia sexual do corpo, sem evocar oposições binárias. O fato de uma pessoa possuir pênis não a coloca automaticamente em lugares de regalias, status e posições de poder. Pênis e vaginas não definem privilégios hierárquicos e lugares de subordinação.
Um dos exemplos que nos permite tocar o que a autora enuncia são as categorias iorubás obìnrin e okùnrin, que ao serem consideradas respectivamente como “mulher” e “homem”, apresentam equívocos de tradução praticados pelas pessoas que pesquisam o pensamento iorubá desde a ótica do Ocidente. Entretanto, obìnrin e okùnrin, não são categorias que se opõem, e tampouco que se hierarquizam de modo fixo nas relações que estabelecem. Dessa forma, uma possível tradução para essas categorias poderia ser fêmea anatômica e macho anatômico, como modos de diferenciá-las fisiologicamente, sem, contudo, estabelecer em si mesmas classificações sociais primárias e secundárias.
Vale ressaltar que Oyewùmí, ao nos apresentar que as hierarquias de Oyó antes da colonização não eram baseadas em gênero, não está fiando um tecido iorubano idílico, mas destacando que os conflitos e as relações de poder entre as pessoas se (des)enrolavam e se (inter)ligavam sob outras cosmopercepções[2], e que apesar dos processos coloniais e da contínua colonialidade da vida, o lugar da senioridade existe e resiste.
De modo algum isso pode ser lido e compreendido como o fato de a autora estar jogando o bebê fora junto com a água do banho. Oyewùmí, não descarta o gênero como um conceito legítimo e importante para se refletir as relações patriarcais, mas nos chama a atenção que é uma categoria derivada do Ocidente, cujas noções de família, casamento, maternidade, linhagem e parentesco carregam o peso ocidentocêntrico[3], e devem ser constantemente analisados ou colocados em seus contextos ocidentais quando aplicados em sociedades africanas.
A colonização, ao inserir categorias de gênero e consequentemente ler e interpretar a Iorubalândia através das lentes ocidentais, colocou o corpo generificado como fundo comum para a (de)limitação de papeis sociais, posições e hierarquias, relegando às “mulheres”[4] africanas existências secundárias, que insinuam na própria carne uma base bio-lógica. Isto é, o determinismo biológico como um elemento essencial na constituição e permanência do segundo sexo.
A incorporação de formas generificadas de pensar e organizar a sociedade modificou profundamente todas as instituições iorubás e criou novas instituições, mais substancialmente o Estado, com todo seu aparato de poder, superioridade masculina e desigual distribuição de recursos. É com esta desigualdade perpetrada pelos processos modernos/coloniais e levada à cabo pela colonialidade que a autora nos conclama a se comprometer e lidar.
Um dos traços marcantes da modernidade seria a colonialidade, um padrão de poder colonial que se mantém a pleno vapor utilizando a racialização e generificação como moedas de troca que asseguram a subalternidade de determinadas pessoas e a exclusão de seus conhecimentos a fim de mantê-las dominadas e exploradas. Dessa forma, para Oy?wùmí, raça e gênero são categorias coloniais cúmplices dos padrões de poder/saber coloniais.
Sendo assim, aprendemos com as potentes reflexões filosóficas e políticas presentes nos trabalhos de Oyewùmí que é importante tanto pensarmos em que medida as categorias de raça e gênero são ferramentas coloniais utilizadas em proveito do Ocidente como meios de hierarquizar, dominar e explorar pessoas, quanto que fiar tecituras filosóficas comprometidas com a decolonialidade também consiste em problematizar os conhecimentos estabelecidos e questionar quem o está constantemente produzindo e quais são os seus efeitos práticos e discursivos nas sociedades não hegemônicas.
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Aline Matos da Rocha é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília
[1] Juntamente com as pensadoras Ifi Amadiume e Nkiru Nzegwu.
[2] Conceito criado por Oyewùmí como um contraponto à noção de cosmovisão.
[3] Conceito criado por Oyewùmí como uma proposta ao propalado eurocêntrico, tencionando, assim, ir além da Europa e incluir os Estados Unidos da América.
[4] Coloco-a entre aspas por ser uma categoria sob suspeita.
* Texto publicado em 02/12/2020 no Le Monde Diplomatique em parceria com a Coluna Anpof