Coluna Anpof - Homenagem "RECORDANDO O VALÉRIO: Um retrato fragmentário" Prof. Dr. Álvaro L. M. Valls

23/09/2020 • Coluna ANPOF

Álvaro L. M. Valls (UNISINOS/CNPq; ex-UFRGS)

 

1. Ao analisar minuciosamente, em sua obra monumental, a Filosofia no Brasil (UNESP, 2017), o professor Ivan Domingues, da UFMG, após 400 páginas, chega à seguinte observação:

Em todo campo intelectual e respeitante ao seu conjunto, prevalece no Brasil, à diferença dos Estados Unidos, a indiferença a e a pouca disposição de celebrar as obras e os vultos, que se vão, e não proporcionando a quem lhe consagra toda uma vida, diferentemente das artes, a menor esperança de ter seu feito lembrado, e menos ainda depois de morto (DOMINGUES, p. 403. Grifos ALMV.)

2. É verdade que, ao se referir ao período dos 50 anos mais recentes, Ivan quer atentar ao “conjunto da obra”, dado que para a nossa filosofia mais atual, tal como para a literatura, não seriam os autores o que interessa, “e muito menos autores sem obras e mestres sem discípulos, embora a realidade por toda parte esteja cheia deles” (id., p. 431). Ora, quem conheceu o Valério Rohden já sabe que esta última frase não se aplicaria a ele, autor de grandes obras e mestre dedicado, que formou bons e produtivos discípulos, entre outros: Udo Mösburger, que o ajudou a traduzir a Crítica da Razão Pura, e Delamar Volpato Dutra, que se doutorou sob sua orientação e se encarregou de escrever sobre ele e sua obra, há dez anos, quando Valério faleceu no dia 19 de setembro de 2010 (bastando uma rápida consulta ao Google para ler seu belo artigo e obter uma ideia da grandeza e da importância do professor Valério).

3. Delamar concentrou-se, objetiva e academicamente, no que Valério produziu: traduções de Kant, interpretações originais, artigos e também em suas realizações institucionais, mas aí talvez caberia acrescentar alguma coisa, sem deixar de louvar o que Delamar escreveu na ocasião. Pois encontramos, à p. 398 do livro de Ivan Domingues, uma outra observação, que estimula, provoca e desafia, quando este autor, professor em Minas Gerais, se refere aos “heróis-fundadores”:

Haveria muito que dizer, não certamente das obras, que não possuíam, mas de seus feitos, enriquecendo, quem se dispusesse a resgatar-lhes a memória, o relato de uma vida cinzenta e cheia de desafios mediante a inclusão do anedotário que cerca suas vidas e a generosidade com que se entregaram à missão de fundar e criar. A uma tal tarefa de restituição, sem dúvida importante, poderia dedicar-se um estudante de doutorado com gosto cultivado (...) A maioria dos estudos consagrados ao assunto ainda é muito tímida e provinciana (...) imperando os papers...

4. Meu doutorado, que deve ao Valério mais do que a nenhum outro (a não ser que eu mencione o Orientador Michael Theunissen, o qual porém também me foi indicado pelo Valério), foi concluído em Heidelberg no final dos anos 70. É justo, então, que me restrinja aqui apenas a um paper, quiçá não totalmente provinciano, mas de qualquer modo num estilo que enriqueça o anedotário (não apenas cômico, – pois que este também é conhecido em parte). Um anedotário, sobre um sujeito famoso pela sua seriedade e competência profissional, ligado à família, e com muitos amigos mais ou menos famosos, mas também um colega que sabia ser informal e afetivo. Mas por que eu, para escrever este paper, – agora que recordamos dez anos de sua morte? Bem, um ponto me encoraja à tarefa: o fato de eu o ter conhecido e acompanhado de perto por umas quatro décadas. Para falar de “fundadores” como Armando Câmara ou mesmo Ernani Maria Fiori, haveria pessoas mais qualificadas. Mas, sobre o Valério, recordo muitas informações que podem servir de sugestões para futuros pesquisadores. Ou, pelo menos, sigo o que dizia Kierkegaard: lembrar uma pessoa falecida é uma obra de amor, e valiosa por ser gratuita, não podendo contar com recompensas. Uma vez acordado que Valério foi um scholar dos mais produtivos, com resultados de repercussão local, nacional e até internacional, não deixa de haver sentido em tentar resgatar um pouco do “anedotário” da vida deste amigo e colega, para enriquecer o relato de “uma vida cinzenta e cheia de desafios”, entregue a uma “missão de fundar e criar”, sempre aguerrida, e sempre caracterizada por uma imensa “generosidade”.

5. Valério foi, decerto, um “provinciano” (no bom sentido?), que nasceu no interior de Santa Catarina e que permaneceu e trabalhou na “Província de São Pedro do Rio Grande do Sul”, mas ao mesmo tempo foi “cosmopolita”, no melhor sentido kantiano. Para os seus amigos e colegas (em geral conhecidos pelo nome de família), tais como Stein, Cirne Lima e De Boni, Loparic ou Giannotti, Valério não era o Rohden, mas sim “o Valério”, ou seja, um indivíduo próximo e incomparável. Valério nunca foi alguém que cultivasse, esnobe, o “pathos da distância”, como um falso aristocrata, ou arrivista. Tampouco era um pequeno burguês. Era, antes, “um lenhador, que se levanta toda manhã para serrar a lenha”, como na imagem dos filósofos germânicos. Era próximo para ajudar, mas distante por estar sempre com a cabeça cheia de ideias, teóricas e prático-institucionais; distante no sentido de pensar sempre no futuro, nas coisas que havia para fazer, e que, portanto, kantianamente falando, “deviam” ser feitas. Valério era um homem do “dever”, que tinha até alguma dificuldade na busca de qualquer “prazer” (exceto, talvez, o da leitura). Anotava tudo com sua caneta Bic, sua letra grande e angulosa, e quando se pronunciava em público, se conseguisse ler (e enquanto as folhas de anotações estivessem em ordem), suas palavras eram fortes, vigorosas, cortantes e impositivas.

6. Conheci o Valério no início da década de 1970. Eu já vinha estudando alemão, no Instituto Goethe da rua Augusta, em SP, e Doutor Flores, em PA. Era uma afinidade, entre um estudioso de origem germânica e um portoalegrense de raízes luso-catalãs. Ambos tivemos uma formação católica, mas ele estava mais próximo do luteranismo desde o seu casamento com Vera Lindemann. (Quando foi convidado para lecionar “Filosofia de verdade” na faculdade da IECLB de São Leopoldo, passou para mim a honrosa e gratificante missão.) Não tínhamos aversão a pessoas religiosas, mesmo reconhecendo que o lugar dos professores cassados na UFRGS havia sido preenchido improvisadamente com gente da PUC, sem uma formação mais brilhante. O Chefe do Departamento, na época do concurso de 1973, era Annúncio João Caldana, boa pessoa, um padre bonachão que não gostava de brigas. Um moderado, entre os grupos rivais de Hugo Paz e Dagmar Pedroso. Conseguiu que destinassem uma vaga para a Filosofia no concurso aberto da UFRGS. Valério opinou que os meus resultados foram os melhores, mas não posso excluir que, tendo estudado com os jesuítas em São Paulo, tenha sido encarado como um “tertius”, neutro, nas disputas internas dos grupos. Nenhum dos grupos rivais se impôs, eu entrei, e Valério e eu nos aproximamos naturalmente. Depois foram ingressando, com o tempo, F. Trindade, M. Ozomar, Maria Regina Taufer e, se a memória não me falha, Maria Lúcia Sieskovski. Nenhum de nós tinha estatura para recompor o antigo Departamento, anterior às cassações, do tempo dos Britto Velho, Ernani Fiori, Gerd Bornheim, Ernildo Stein e João Carlos Brum Torres. Mais tarde veio Luiz de Boni, com um nível superior em termos de pesquisa (do pensamento medieval) e produtividade. O Departamento era deficitário, na qualidade, e só Dagmar Pedroso demonstrava maior competência, na sua área de Lógica, mas era um professor de mais de um emprego, que faltava muito às aulas. A mais inteligente do Departamento (jovem e brilhante), em 1973, era Rejane Xavier Carrion, que todos admirávamos, e em primeiro lugar o Valério, o qual, mesmo assim, certa vez tratou de admoestá-la, em seu jeito durão: como ela apreciava o positivismo (pesquisando R. Carnap) e dominava o francês, Valério declarou que devia aprender comigo a “pronunciar corretamente o nome de Ludwig Wittgenstein”...

7. Valério, Rejane e eu, com as bênçãos de Caldana, tratamos de atualizar o currículo da Filosofia do Departamento, e assumimos muitas aulas da Introdução à Filosofia que eram oferecidas para vários cursos, no chamado “Ciclo básico” de então. Valério programava eventos, para que a Filosofia fosse recuperando um pouco de sua transparência anterior. Gradualmente, e em especial nos tempos do diplomático diretor Kurt Scharf, fomos ocupando o salão do Instituto Goethe, que se mudou para a Avenida Independência, de modo que seu prédio moderno foi por décadas uma verdadeira vitrine da Filosofia, pois nosso curso fora transferido para a aridez do Campus do Vale, e para os horários diurnos. Quem quisesse fazer Filosofia na UFRGS precisava afastar-se mais de doze quilômetros do centro de Porto Alegre, rumo ao Campus (ou “matus”) do Vale, situado para além da Agronomia e da Veterinária. Não por acaso a Filosofia e as Ciências Humanas (e Letras, Química, Física e Biologia) foram jogadas para aquele Campus. Era, ao menos em parte, uma tentativa ideológica de afastar os “agitadores” do centro da cidade. Contudo, a proximidade do Valério com os alemães, com o Goethe, o DAAD, e a Associação dos Ex-Bolsistas da Alemanha, abria-nos os salões do Instituto Goethe para a noite inteligente da Capital.

8. Valério foi um resistente, defensor combativo da existência e dos direitos da Filosofia. Sempre tentei entender o seu papel específico no DeFil na virada dos anos 60 para os 70, e creio poder contribuir com algo neste ponto. Com um fato anedótico, para começar: o Diretor do IFCH, ainda no campus da Reitoria (entre esta e o famoso Bar do Antônio) era na época o professor de História Luiz Carlos Rothmann. Nossas famílias se conheciam, e também era seu amigo o professor Fernando Gay da Fonseca (o primeiro a me oferecer emprego, como seu Assistente na PUC, em 1971) e talvez isso lhe tenha sugerido perguntar-me se era verdade o que diziam, “que o Valério era comunista”. Respondi, obviamente, que não, pois ele era “um kantiano”, que, é claro, conhecia muito bem a filosofia alemã e estudara bastante o Idealismo. A conversa não foi mais adiante, até porque o Diretor não se interessava tanto por Filosofia ou pela política (naquele tempo, só com letra minúscula). Rothmann sabia que meu irmão caçula fora preso e torturado no DOPS em 1971, mas isso não o afetava. Tampouco perguntaria quais as possíveis relações de J. Habermas, cujo Conhecimento e Interesse entusiasmava o Valério, com o comunismo, que nós sabíamos não ser a mesma coisa que Marxismo ou Teoria Crítica da Sociedade.

9. Valério, portanto, já era docente da UFRGS no início dos anos 70, sem ter sido cassado nos anos 60. Por que não? Ora, nascido em 1937, Valério era jovem e pouco conhecido, e estudava na Europa (Itália e Alemanha), quando das cassações e expurgos que atingiram Fiori, Bornheim, os Britto Velho, Cirne-Lima, Stein e João Carlos. Suponho que não encontraram motivo para tirar o Valério da docência. Mas é claro que ele considerava odiosa esta política, pois a mediocridade na filosofia o revoltava. Na Europa convivera com grandes pensadores, e sua esposa Vera até dizia que ela poderia dar verdadeiras palestras sobre os filósofos europeus, se quisesse, só baseada nas experiências pessoais do casal. Aqui, ele permaneceu ligado aos alemães, era um ex-bolsista, em Heidelberg estudara sob a orientação do grande D. Henrich, e lia tudo o que havia de bom entre os bons pensadores das várias correntes, tradicionais e mais modernas, como as da escola de Constança. Gradativamente, foi convidando visitantes de lá, para palestras, cursos e congressos. Assim, o Congresso Internacional de Kant de que ele foi um dos principais organizadores, não caiu das nuvens, improvisado, mas foi preparado por décadas. A tese sobre Kant, foi terminada e defendida no Brasil, como livre-docência, se a memória não me falha.

10. Valério e Vera se tornaram grandes amigos nossos, e acompanharam de perto o nascimento de meus primeiros filhos. Os dois primeiros dele vieram mais tarde, quando ele se sentiu mais seguro profissionalmente. Eu frequentava o Instituto Goethe e continuava a estudar alemão, e quando entrei para a UFRGS em agosto de 1973 o Chefe Caldana me destinou a apagar um incêndio: Estética I, nos cursos do Instituto de Artes, da Rua Senhor dos Passos. Apoiando-me nas Chaves da Estética de Etienne Souriau, trabalhei com futuros artistas as estéticas de Kant, de Hegel e da chamada Escola de Frankfurt, que à época fazia sucesso com H. Marcuse (odiado pelos órgãos da censura). Nos tempos do “vestibular de cruzinhas” e de “estudos dirigidos”, ler tais textos clássicos era um desafio maravilhoso, e mais adiante até me solicitaram uma “Estética II”. Mas eu me candidatei à pós-graduação na Alemanha, na área da Estética. Adorno me pareceu o melhor tema, e ele era quase desconhecido no Brasil, afora um livro do J. G. Merquior (sem notas de rodapé e referências). Valério, ex-aluno de Dieter Henrich, me aconselhou Michael Theunissen para Orientador, e esta dívida lhe tenho, eternamente. Mais: ajudou-me a traduzir a carta a Theunissen e a preparar a papelada para conseguir a bolsa do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Nas décadas seguintes ele e eu atuamos muitas vezes nas entrevistas de futuros bolsistas (pelo DAAD e eu depois pela CAPES). Sua indicação de Theunissen foi perfeita, pois este professor, relativamente jovem, era um especialista em Hegel e Kierkegaard, escrevia sobre a Teoria Crítica de Frankfurt, e tratara longamente Adorno no seu Hegelbuch de 1970. Quando contei a Valério que, aprovado no Mestrado, trocaria Adorno por Kierkegaard como tema de doutorado, contou-me que já na Itália de Cornélio Fabro se maravilhara ao ler Temor e Tremor. A expressão que usou para descrever esse entusiasmo era, aliás, bem mais forte do que “estar maravilhado”.

11. Nos anos 70, a Pós-Graduação estava começando, no Brasil, na área da Filosofia e, afora São Paulo e Rio, a alternativa de busca de qualidade e solidez era o Exterior. Rejane estudara na França, eu tive a sorte de ir a Heidelberg, à universidade de Melanchton, Hegel, Weber, Lukács, Jaspers, Arendt, Gadamer e Habermas, além dos neo-kantianos do tempo de Windelband e Rickert. Na segunda metade dos anos 70 foi possível frequentar aulas de Gadamer, Henrich, Theunissen e Wiehl. Valério nos deu o prazer de ótimas visitas por lá, em suas pesquisas e em prospecções e contatos com possíveis visitantes para a UFRGS.

12. Defendido o meu doutorado, Valério me propôs sucedê-lo na Chefia do Departamento. Não era uma ação entre amigos, mas um projeto institucional: ele precisava assumir o Mestrado. No início dos anos 80, ele mexera céus e terra para conseguir o retorno dos professores cassados, e só não teve sucesso com Gerd Bornheim, que viu no Rio de Janeiro o campo ideal para seus estudos e trabalhos junto ao teatro, as artes e a filosofia. Um momento histórico foi a reunião de boas-vindas a Fiori, Cirne-Lima, Stein e Brum Torres, mas este retorno foi precedido por inúmeras reuniões de trabalho. (Não me refiro aos estudos de O Capital, de Marx, dos anos 70 ainda, no apartamento de Gabriel de Britto Velho, com alguns dos cassados, com Índio Vargas e outros.) Refiro-me à montagem de um ambicioso projeto de Mestrado em Filosofia, com fortes contribuições de Stein e do João Carlos, além das do Valério e das minhas. Inesquecível uma explosão de João Carlos Brum Torres, por emblemática: num sábado à tarde, na casa do Valério, no bairro Petrópolis, Valério reclamou que nem todos os participantes haviam realizado a contento as partes combinadas. “Caçapava” explodiu, com justiça: “Mas Valério, nós somos cassados, e estamos trabalhando na tua casa num sábado à tarde, de graça, para a UFRGS, e tu ainda reclamas!” Assim era o Valério: quando tinha seu objetivo, avançava meio aos trancos e barrancos, igual a um trator, catalisando esforços das melhores cabeças disponíveis. Não importava tanto que os cassados ainda não estivessem formal e financeiramente reintegrados; o que interessava era fazermos a montagem de um Programa de Pós-Graduação de excelência, à altura do nome da UFRGS.

13. Cassados, Cirne-Lima e Stein enriqueceram, usando para o seu bem os dotes excepcionais de que dispunham. Valério continuou em campo aberto, vivendo do salário de professor de 40 horas, conseguindo depois para alguns a Dedicação Exclusiva, algo importante nas áreas humanas. Fiori retornou, e deu muitas aulas na antiga sede, da Paulo Gama, inclusive sobre a dialética de Hegel, de quem lia em francês e italiano a Fenomenologia do Espírito. Modesto, gostava de contar de um professor de Filosofia que, esgotando seus argumentos, teria dito aos alunos que “jurava” ser aquilo verdade, e que podiam acreditar nele... Contava algumas histórias também para este seu motorista eventual (pois ele “não manejava”, como dizia, à maneira chilena) e aproveitava a garagem como escritório, com a porta forrada de cortiça. Contava como, cheio de filhos, tivera de recusar convites de pós-graduação com seus amigos da Itália. E um dia me garantiu que o Departamento que o Valério transformara já era muito melhor do que o de seu tempo, com vários figurões de proa.

14. Enquanto eu estava em Heidelberg e Fernando Trindade em Estrasburgo, Valério conseguiu melhorar o grupo, institucionalmente, que agora contava também com De Boni e Muriel Maia. Empurrando-me para a chefia do Departamento, Valério se liberou para inaugurar o Mestrado, que dirigiu, como depois participou da SEAF, da ANPOF, do CNPq e da CAPES, para nem falarmos da Sociedade Kant. Ele, Rejane e eu somos, certamente, dos primeiros pesquisadores bolsistas do CNPq em Filosofia no Rio Grande do Sul. Valério era um pioneiro, um desbravador que abria de facão em punho picadas nas selvas acadêmicas. Quem de nós, mortais comuns, perceberia, por exemplo, que os bons pesquisadores usavam o período das férias para montar seus projetos, conquistando assim todas as bolsas? Valério ia descobrindo os caminhos das pedras. Mudando rotinas, adaptando-nos aos melhores procedimentos acadêmicos, do ensino, da pesquisa e da extensão (para esta, o Instituto Goethe contribuía muito, ao mesmo tempo em que ia despertando novas vocações para os estudos da filosofia entre nós). E Valério não se grudava num cargo, sabia passar adiante. Acreditava que haveria outros colegas com capacidade e empenho para continuar a tarefa começada. Mas era certamente um homem “da longa marcha pelas instituições”. Forçava contra as amarras da burocracia, mas sabia usar os recursos que esta oferecia.

15. Dez anos após a montagem do Mestrado, ele nos empurrou à criação do Doutorado. Valério circulava pelo Brasil, pelas diferentes academias, respeitado pela seriedade de seu trabalho, mesmo quando alguns se divertiam (e ele mesmo sabia rir de si) com algumas trapalhadas. Era amigo das lideranças da Filosofia, convivia com Giannotti, Marilena, Porchat, os Loparic, José Henrique, Ivan e Margutti, Heck, Guido e Landim, Chateaubriand, Bento Prado, enfim com todos os que levavam a filosofia a sério e com competência. Era engraçado, às vezes, quando, num jantar, após horas de palestras e debates se concentrava no problema da colocação de um adjetivo alemão, e se este deveria ser traduzido antes ou depois do outro (tipo: cerveja branca alemã ou cerveja alemã branca, digamos, ou algo com maiores implicações, como “razão pura prática” ou, “razão prática pura”). É que Valério sabia tirar prazer também de coisas que para os outros seriam no máximo objeto de um dever. Que alegria a sua, quando falava dos anos em que o livro de Sêneca sobre os ofícios permanecera em cima da mesa de seu adorado Kant! Que alegria quando, nos anos 90, conseguiu publicar, no Brasil e em Portugal, a tradução conjunta da Crítica da Faculdade do Juízo, a quatro mãos com o português António Marques! Tradução conjunta, meio a meio, e adaptada ao linguajar dos dois países. Outro esforço pioneiro!

16. Traduzir é uma obra de amor, e de persistência, um trabalho abnegado, em especial em se tratando de textos de filosofia, e no Brasil. Por mais que digam que traduzir não passa de importação, obra de país periférico, como não sentir orgulho de ter feito parte de um Departamento que traduzia, com verdadeira seriedade e muita competência, Kant e Heidegger, os medievais e Kierkegaard, a partir dos idiomas originais? Porto Alegre e o Rio Grande tiveram um precedente exemplar, na antiga Editora Globo, em que Érico Veríssimo, Mário Quintana e outros nomes da literatura brasileira verteram para o nosso idioma obras famosas ou populares da literatura de outros países. Mas isso era do francês, do inglês, do italiano, do espanhol... e não era filosofia, com um jargão técnico rigoroso, e que precisava ser, na versão final, um bom português! Pioneiro, desbravador, e em parte “navio quebra-gelo”, este era o Valério. Qual iniciativa, realmente importante para a necessária recuperação da filosofia, ocorreu nessas décadas em que o Valério não estivesse metido? Ora, dirão alguns: José Américo Pessanha, com a Abril Cultural, lançou o surpreendente sucesso que foi a coleção d’Os Pensadores. Certo, e aí encontramos até textos de Hegel, do Padre Vaz, inestimáveis, ou um Nietzsche selecionado por Lebrun e traduzido por Rubens R. Torres Filho, coisa preciosa. Outros volumes reaproveitaram traduções já existentes, mas não foi assim com o volume sobre Kant. Melhor: os volumes! Pois após uma seleção de valor, veio também a Crítica da Razão Pura completa, com notas. Valério não deixava por menos.

17. Sem Valério e seus contatos em São Paulo e em Brasília, o Departamento que chefiamos não teria conseguido reagir às ameaças de esvaziamento, quando vários de nossos melhores começaram a ser sondados para outras universidades; mas nossa reação foi eficiente, transformando “a gauchada da Unicamp” em “campineiros da UFRGS”. João Carlos, já quase desgarrado, retornou, terminando brilhantemente seu doutorado com F. Weffort; afastando-se das assessorias do PMDB, provocou a vinda do Nelson Boeira. Balthazar Barbosa, criadas as condições graças às agências e à experiência de Denis com a política de pós-graduação, aceitou retornar, atraindo depois o Guerzoni, que nem era gaúcho, mas que este sempre considerou um gênio. Valério apoiava tudo o que significasse reforçar a Filosofia. Marcos Lutz Müller só não veio por razões familiares, mas planos e maneiras para trazê-lo havia.

18. De Boni, apesar de suas origens italianas, estudara na Alemanha. Em parte, isto explica uma aliança que experimentamos, ele, Valério e eu, junto com o amigo e ex-bolsista DAAD Abílio Baeta Neves, depois Presidente da CAPES, numa campanha  problemática para a Reitoria da UFRGS. Segui Valério e De Boni no apoio ao então Pró-Reitor de Pesquisa Gerhard Jacob, um físico de ótimo formação em Heidelberg e Copenhague (com Darcy Dillenburg), que concorreu após o Reitor Francisco Ferraz (um ex-anchietano que com Hélgio Trindade dirigiu a UFRGS, com o ex-diretor do Anchieta, e meu ex-chefe por lá, no papel de Chefe de Gabinete: Luiz Osvaldo Leite). Valério, conosco, defendia uma universidade de altos padrões de pesquisa, e Gerhard era o homem que sabia tudo da política de pesquisa. Os estudantes preferiram o candidato da Faculdade de Educação, Alceu Ferrari, o qual até lhes teria prometido que poderiam escolher um Pró-Reitor de Pesquisa. Isso explica a preferência pela candidatura de nosso pesquisador germânico, ex-bolsista, ligado ao DAAD e a tudo o que havia de sério nas pesquisas internacionais. Sarney nomeou Gerhard, mais apoiado pelos docentes, mas que enfrentou forte oposição por parte do alunado, e que, quando foi presidir o CNPq, passou o cargo para o Vice Tuiskon Dick, outro homem da mesma formação, que se apoiava sempre em Abílio (com o mesmo perfil, embora brasileiríssimo). Por um ano chefiei o Gabinete do Gerhard, e então o Reitor quis que criássemos algo que seria mais importante: uma Assessoria de Assuntos Internacionais, que criamos e consolidamos, com missões alemãs (Heidelberg e outras...), francesas, canadenses, americanas, inglesas, etc. Nosso rumo era exatamente o que Valério preferia, embora nos anos 90 ele já não ocupasse mais tanto o centro de decisões, embora continuasse a dinamizar muitas boas iniciativas.

19. Crescendo rapidamente, nosso Departamento passou em poucos anos da fase pioneira para a fase madura, das rivalidades e queixas. Valério tentava manter-se ligado a todos os que quisessem trabalhar pelo crescimento da Filosofia, enquanto outros se aferravam às suas preferências e simpatias. Mesmo deixando o centro das decisões, continuou a trazer convidados estrangeiros, como Flickinger, Kesselring, Kienzle, Kambartel e outros. Quando não estava organizando congressos, decidindo e combatendo na prática institucional, estava lutando com os textos clássicos de Kant. Às vezes era derrotado, na política da Filosofia. Seu plano de impor a qualidade da pesquisa acima da luta política não convenceu a turma da SEAF, que optou pela turma de José de Anchieta e Olinto Pegoraro, privilegiando a política. Presidente da ANPOF, Valério não conseguiu fazer prevalecer a unidade no III Encontro Nacional, de Gramado. Ficou com Giannotti, Guido e Landim, Ricardo Terra, Denis e Marcos Müller, defendendo a alta qualidade da pesquisa (que eventualmente poderia significar verbas só para os melhores, ou talvez para os “autoproclamados melhores”), enquanto a maioria, composta por muitas universidades particulares ou suposto “baixo-clero” uniu-se ao mesmo Olinto de antes. Só que agora ganharam e não levaram, pois Pegoraro não teve acesso a verbas e apenas conseguiu passar a direção adiante num IV Encontro Nacional sediado numa instituição religiosa carioca. Também numa homenagem a ele, o XIII Encontro Nacional da ANPOF teve por sede Canela, RS, cidade irmã de Gramado, agora com a unidade amadurecida e manifestada em eleições unânimes.

20. Uma questão ainda não esclarecida: o aproveitamento do período da pós- aposentadoria. Pois Stein, Cirne-Lima e De Boni, ao se retirarem da Federal, foram acolhidos, com Flickinger, pela PUCRS, onde atuavam Jayme Paviani e Urbano Zilles. Eu mesmo e, um ano depois, Anna Carolina Regner recebemos amáveis convites da UNISINOS, de São Leopoldo, onde conseguimos realizar coisas que antes não eram possíveis. Já o Valério, com seu imenso cabedal, aposentado da UFRGS aos sessenta e poucos anos, deambulou pela ULBRA, onde nem havia curso de Filosofia, e por outros lugares, até se oferecer voluntariamente para atuar em Florianópolis. Esta vocação missionária, ele já a tinha, pois contribuiu mais do que qualquer outro sulista com a Filosofia do Nordeste. Em todo caso, o ambiente não seria tão confortável quanto merecia, mas bem mais sacrificado. Exigindo, portanto, uma imensa generosidade, que, como dissemos no início, caracterizava justamente este Valério que vimos atuar por décadas e décadas, transformando a Filosofia aqui do Sul numa instituição séria e respeitada em muitas outras paragens. Buscando sempre o interesse da Razão e a liberdade.