COLUNA ANPOF HOMENAGEM - SOBRE O PROFESSOR CARLOS ROBERTO V. CIRNE LIMA

14/07/2020 • Coluna ANPOF

Buenas, me espalho!
Nos pequenos dou de plancha, nos grandes dou de talho!”
(Capitão Rodrigo Cambará, O Tempo e o Vento.)

 

No início dos anos 80, o Prof. Valério Rohden, então Chefe do Departamento de Filosofia da UFRGS, viabilizou o retorno ao corpo docente dos cassados da ditadura. Voltaram Ernani Fiori, Ernildo Stein, João Carlos Brum Torres e Carlos Cirne Lima. Na cerimônia de recepção aos anistiados políticos, Cirne Lima falou por eles, contando como os bons departamentos haviam sido dizimados. Fiori comentou depois que, como sempre, Cirne Lima fora generoso, pois “dizimar” era um verbo fraco para o expurgo de tantos excelentes professores de nossas universidades, cassados nos anos 60 e 70. O próprio Cirne Lima gostava de contar histórias daqueles tempos obscuros, e de como alguns que não haviam sido cassados na primeira leva redigiram uma carta denunciando o erro que era cassar professores sem nenhuma razão justa. Um enviado do governo federal, na Reitoria, foi entrevistar então os signatários, solicitando com maneiras corteses que se retratassem, retirando as assinaturas. Ele, Cirne Lima, se negou, recusando o argumento de que “Revoluções não cometem erros”, e preveniu o entrevistador do perigo que seria solicitar tal coisa dos professores Brito Velho, que viriam a seguir. Resultou que os que se negaram a se desdizer foram cassados.

Assim era Cirne Lima, generoso, mas altivo, inteligente, mas amigo. Filho de uma família de destaque, de um pai que dirigira a Faculdade de Direito (quando o grande Lupicínio Rodrigues ainda era um simples bedel, na portaria...) e que já recuperara uma vez as finanças gaúchas (e só não governou o Estado por causa das vergonhosas manobras da ditadura em favor do Coronel Perachi), este filho do Dr. Ruy não empobreceu ao ser proibido discricionariamente de toda atividade de ensino em universidades; pelo contrário, estava preparado (desde os seus tempos de estudos em Innsbruck) para administrar grandes orçamentos, no Rio Grande do Sul, no Brasil ou no mundo.

Retornou, pois, ao ensino acadêmico de cabeça erguida, filosoficamente atualizada, e aceitou dar aulas para várias turmas enormes, com cerca de 60 alunos, a quem introduzia na Filosofia. Os cursos da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras haviam sido transferidos para o Campus do Vale, na aridez de uma clareira nos matos do bairro da Agronomia, e transformados em cursos diurnos (numa estratégia que pretendia enfraquecer o poder do pensamento crítico). Mas Cirne Lima lecionando três turmas de Introdução à Filosofia produziu um efeito encantador: os jovens dos anos 80 voltaram, após uma década morta, a buscar apaixonadamente estudar Filosofia. Com Stein, Brum Torres e De Boni, além de outros mais jovens, a UFRGS recuperou até colegas professores gaúchos que tinham previamente preferido a UNICAMP.

No início dos anos 80, Valério Rohden liderou a criação da Pós-Graduação em Filosofia (mestrado, depois doutorado) e em poucos anos o Prof. Fiori, aposentado, já podia confidenciar que este departamento era ainda mais forte do que o de antes de 64. Cirne Lima atuou consistentemente na Pós-Graduação, apresentando o pensamento original de língua alemã, os chamados idealistas, com Hegel e Schelling em primeiro plano, e dentro do contexto da longa história da Filosofia, pois conseguia ler em grego e latim, em alemão, inglês e francês. Platão e Espinosa não eram alemães, mas a eles retornava sempre, com sua capacidade especulativa. No Concurso Público para Professor Titular, Stein e ele preencheram as duas vagas abertas, compartilhando a liderança acadêmica com o conhecedor e tradutor de Kant, Valério Rohden.

Naquela década a Filosofia da UFRGS gozou do prestígio de um dos melhores cursos do país. Quando se aposentaram, vários deles continuaram atuando, agora na PUCRS. Com Stein e De Boni, mais Hans-Georg Flickinger (de Kassel), fizeram do curso de Jayme Paviani uma das potências da área. Cirne Lima orientou ali, entre outros, Thadeu Weber e Eduardo Luft. Nas várias universidades, o grupo que contava com Cirne Lima conseguiu trazer ao Brasil muitos dos mais importantes filósofos da atualidade, como J. Habermas e K.-O. Apel, E. Tugendhat e outros. Após uma década bastante produtiva na PUC, Cirne Lima retornou afinal a um seu ninho antigo: a UNISINOS, fundada oficialmente em 1969, mas que provinha dos cursos de formação acadêmica dos jesuítas de São Leopoldo, onde Cirne Lima já lecionara em meados dos anos 50.

Com o grande companheirismo, a profunda amizade e o forte apoio do atual Reitor, Pe. Dr. Marcelo Aquino SJ, o trabalho de Cirne Lima floresceu mais uma vez. Suas pesquisas na área da Lógica e da Ontologia se expandiram, aprofundou seus estudos de Hegel e Platão, elaborou até uma formalização da Lógica do filósofo de Stuttgart, deu inúmeras palestras, publicou artigos e penetrou no mundo da cultura digital. Com a ajuda de sua esposa, a artista plástica e também escritora Maria Tomaselli, iniciou a produção de cursos de Filosofia, especialmente sobre Dialética, em vídeos e ebooks. Suas palestras continuaram brilhantes: numa homenagem ao Pe. Henrique C. L. Vaz, um dos maiores filósofos brasileiros, Cirne Lima compareceu com um caderno com umas 20 ou 30 laudas digitadas, mas encantou a seleta plateia por uma hora, sem virar a primeira página de seu texto.

Dialética para Principiantes, por exemplo, é o título de um livro da maturidade que mostra dois aspectos complementares de sua obra: é apoio aos estudiosos que se esforçam por começar, por um lado, mas foi também traduzido ao inglês e ao alemão, produzindo talvez aí um efeito curioso: quem sabe quantos leitores alemães, já bem maduros, se perguntarão, ao ver este livro publicado pela Wissenschaftliche Bibliothek, se este Carlos Cirne Lima teria algum parentesco com o autor do tão citado Der Personale Glaube (A Fé Pessoal, publicado 60 anos antes), escrito por aquele aluno brasileiro do teólogo Karl Rahner e antigo colega de Joseph Ratzinger e E. Coreth.

Foi ele o grande propulsionador da Pós-Graduação em Filosofia na UNISINOS de São Leopoldo, enquanto, ao mesmo tempo, defendia junto ao Reitor uma sólida vinda desta Universidade para a Capital. Reconhecido institucionalmente como Professor Emérito da UNISINOS, Carlos Cirne Lima recolheu-se ao seu apartamento em Porto Alegre, para cuidar de sua saúde e de seus muitos amigos, a quem recebeu, ainda inúmeras vezes, com Maria (seu amor de mais de seis décadas), calorosamente, interessado sempre nos assuntos acadêmicos e filosóficos, lúcido até o final, um crítico que não se prendia a ressentimentos, mas que buscava saídas para a Filosofia e para o Brasil, entusiasmado com as ideias que o acompanharam ao longo de seus quase 90 anos.

Sempre distante do marxismo, embora interessado na justiça social, e distante de toda forma de clericalismo, sem deixar de se reconhecer religioso, nos últimos anos era possível ouvi-lo frequentemente falar da presença de Deus no mundo, um Deus imanente que dispensa o dualismo. Assuntos cuja discussão teórica levaria demasiado longe, mas que fundamentavam uma prática amistosa, generosa, de uma ética que não era a dos submissos e ressentidos, pois que traduzia a alegria de existir e de poder contribuir com a humanidade em perspectiva cosmopolita. Uma vida brilhante.

 

CIRNE LIMA
Em tudo o que ele fez, foi sempre tão brilhante,
Que a mocidade ofuscava ao seu redor.
Quando o cassaram, foi um grande comerciante,
Mas sua paixão estava em ser um professor.
Perdão: são duas paixões, pois foi também amante,
Não só da juventude: Teve a sua flor,
Que trouxe lá dos Alpes. Soube, num instante,
Que os dois dividiriam décadas de amor.
Perdemos para sempre o grande pensador
Que abria avenidas para o pensamento,
Amando o universo – e os amigos seus.
Não importando o Nome, abraça agora Deus,
Sorrindo das fraquezas de nosso momento.
Um grande samurai, da vida um vencedor!


Julho de 2020