Democracia e Discussão: uma leitura weiliana

Luís Manuel Aires Ventura Bernardo

Professor Associado da NOVA FCSH. Coordenador do Doutoramento em Filosofia e do Mestrado em Ensino de Filosofia

14/09/2022 • Coluna ANPOF

Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof

Na prática e na teoria, a democracia atravessa uma verdadeira crise, que não parece prestes a ser ultrapassada. Os grandes conceitos fundadores, do povo à vontade geral, tornaram-se polémicos. A contradição entre o uso recorrente do termo como mitologema e a sucessiva fragilização da vida democrática, em muitos casos, reduzida ao mínimo eleitoral é notória. Esta inconsistência conduz a uma incompreensão generalizada dos processos de democratização, deixando os indivíduos vulneráveis às recorrências antidemocráticas. Este breve ensaio assenta no pressuposto de que o debate em torno das condições de possibilidade do conceito de democracia, tal como se encontra na filosofia de Eric Weil, aqui sujeito a um prisma específico, fomenta algum esclarecimento e suscita percursos inferenciais relevantes. 

Nos anos de 1950 e 1951, num período de rescaldo da violência extrema da 2.ª Guerra Mundial, Weil publica sucessivamente dois artigos sobre a questão da democracia: «Limites da democracia»; «A democracia num mundo de tensões» (Weil, E., Escritos sobre Educação e Democracia, Palmas-To, EDUFT, 2021). Nesses textos, uma mesma linha definitória, correlacionando democracia e discussão, acaba por prevalecer:    

«pode-se dizer que existe democracia quando todos os membros da comunidade tiverem a possibilidade de participar, com base na igualdade, da discussão dos assuntos públicos […]. Para colocá-lo com mais cautela, pode-se dizer que só existe democracia quando essas condições são cumpridas» (EED, p. 196).

A aparente clareza da definição, significando, desde logo, a necessidade de estender ao conjunto dos cidadãos a mesma prática dos profissionais da política contemporânea, os quais, quando orientados para a procura de soluções pacíficas, sujeitam a diversidade dos interesses à lógica da discussão, abre, contudo, um campo de problemática sobre o que cabe entender por discussão para que possa funcionar como condição suficiente de democraticidade. Este beneficia de ser traçado a partir das perspetivas possibilitadas pela sua obra capital, Lógica da filosofia, também publicada em 1950 (São Paulo, É Realizações, 2012). 

A pertença da discussão aos filosofemas estruturadores da Lógica da filosofia assenta no princípio de que não se trata de uma competência linguística genérica, mas de uma atitude específica, isto é, de uma forma de vida. Por ter atingido um padrão de coerência prático e teórico, assume, igualmente, o estatuto de categoria. Por categoria, cabe entender tanto um centro de discursividade, que permite identificar um certo typus, como um esquema de produtividade de discursos concretos, consequentes com essa matriz. O que resulta é um modus operandi discursivo e existencial com uma lógica própria, distinta da de outras categorias/atitudes com as quais concorre e interfere. Essas interferências correspondem a retomadas, isto é, aos modos como cada categoria/atitude pode vir a integrar a racionalidade de outras, produzindo uma série de variantes que correspondem ao concreto da história. Nesse processo, não ocorre uma alienação total da matriz retomada, mas uma reconfiguração do seu estatuto. 

 Dessa feita, a caracterização da democracia na sua relação essencial com a discussão vincula-a a uma certa contextura, cuja intencionalidade deverá manter-se na diversidade de processos de retomada. Porquanto fixa um padrão, destinado a atravessar as diferentes versões de democracia, constitui simultaneamente uma fonte de coesão e um princípio de inventividade.

Para Weil, a atitude/categoria da discussão surgiu historicamente na Grécia antiga, como resultado de uma escolha dos cidadãos que questionam a soberania do senhor absoluto e a unicidade da tradição, de «um salto […], não uma passagem possibilitada por uma mediação» (LF, p. 179). Contrapõem-lhes o exercício das potencialidades performativas da linguagem, cuja racionalidade se afigura conciliadora de pontos de vista conflituantes e produtora de uma coincidência entre o contentamento dos indivíduos e a prossecução do bem comum. No seu acme, a discussão é desejada, o que significa que os participantes estão empenhados no seu desenvolvimento, encontrando o sentido no ato mesmo de discutir. Toda a coesão da figura assenta, por isso, em pressupostos antropológicos. Por sua vez, as interações linguísticas estão suportadas pela garantia da propriedade e do Estado. O indivíduo pode dedicar-se à discussão porque não tem de procurar a satisfação das necessidades materiais e sabe que há uma forma institucional concomitante, a democracia. 

Na medida em que substitui os argumentos convencionais, usados para justificar a lei do mais forte, a discussão constitui a forma nuclear da política, ou seja, de uma maneira de conviver e gerir a comunidade que se quer não violenta. Neste sentido, a democracia não constitui mais um regime, mas o tipo mesmo da política: «é a doutrina que fixa seu fim a todo governo» (EED, p 215). Determina tanto o que esta deve ser, uma questão de distribuição da soberania pela vinculação à linguagem, e o que não deve ser, uma cedência incondicional do poder a um indivíduo ou grupo, submetendo todo o regime a um questionamento sobre o diferencial entre a soberania partilhada e a confinada.

Porquanto só a linguagem constitui o ambiente propício a essa idealidade, em que o poder se encontra distribuído, na forma do direito de tomada da palavra, de externalização de perspetivas, convicções, interesses, o indivíduo exerce, prima facie, a soberania pela linguagem. Porém, essa instrumentalização revela-se outra forma de violência sem um entendimento de que esse poder advém da soberania da linguagem, da normatividade inerente às interações linguísticas em contradição. Abre-se, assim, a distinção entre o que é da esfera do político e o que permanece expressão do indivíduo. Por sua vez, desenha-se um arco, da formulação de enunciados, suscetíveis de interlocução, à construção de discursos justificativos. Ressalta, nesse vaivém, a infinitude processual da discussão, patenteando que o homem que discute «é apenas razão caminhante» (LF, p. 197). Dessa feita, clarifica-se que não basta falar para participar na discussão. Esta requer uma aprendizagem específica do uso canónico de certos atos de fala, a par do que neles está implícito: a escolha da pacificação, da tolerância, da deliberação coletiva e do compromisso com o vínculo discursivo. 

Weil defende, como a maioria, uma democracia mista, representativa, no quadro de um Estado constitucional, pois, para ele, contemporaneamente, a discussão não é mais a categoria/atitude central, mas a ação que a retoma. Esta assume a forma de um programa para «encontrar um fim para a realidade» (LF, p. 561). Face aos dois extremos do totalitarismo (categoria/atitude da obra), e do individualismo (categoria/atitude do finito), a ação visa reconciliar o indivíduo, a comunidade, a sociedade e o Estado, conjugando eficácia e justiça, num mundo diversificado espácio-temporalmente, enriquecido culturalmente, conflituante nos valores e desígnios. A gestão governativa depende, por isso, em grande parte de um tipo de objetividade técnico-científica, que condiciona a discussão. A retomada da discussão pela ação corresponde à escolha da via democrática, o que requer um mútuo afinamento: a ação deve assumir as principais características da matriz; esta deve ser subsumida na nova configuração.

Para os indivíduos que já encontram a satisfação por via do trabalho, ou que a ela aspiram, a apreensão do sentido da escolha dessa retomada para resolver problemas, que diferem significativamente daqueles da versão original, resulta dificultada. Nesta medida, a nossa época está inevitavelmente atravessada por uma tensão irresolúvel entre a dependência da tecnicidade governativa e o ideal da democracia, que supõe a continuidade e a qualidade dos processos e das instâncias de discussão. Essa crise estrutural não significa que a discussão seja o outro da ação. Pelo contrário, a forma pacifica da vida em comum favorece o progresso, a distribuição do poder vai ao encontro das expectativas legítimas dos indivíduos, a ação comunicativa promove a razoabilidade. 

Na verdade, só a democracia satisfaz todos os fins da ação, pois só nela se concebe a possibilidade de um sentido para todos, discutido por todos. Ainda que insuficiente para funcionar como centro do mundo atual, a discussão permanece o inalienável da política. Por isso, cesarismos, populismos, totalitarismos conjugam-se mal com este modelo. Neste sentido, a afirmação de Weil de que a democracia «está sempre por realizar» (EED, p. 226) estabelece uma condição paradoxal: haverá política enquanto a democracia não estiver realizada, mas só haverá política se a democracia estiver em realização. Esta dialética pressupõe dois processos: a criação de condições concretas para que uma cultura da democracia entre na agenda comum; a aprendizagem dos modos de discutir num contexto de máxima complexidade. 

É consabido o risco que pode resultar de uma fabricação manipuladora de conformismos, a pretexto de se favorecer a participação cidadã. Todavia, cabe ponderar até que ponto se pode negar a correlação apresentada sem fazer perigar a democracia e se a alternativa não passa por inventar processos diversificados de discussão, nomeadamente, no contexto das tecnologias de comunicação. Ainda que o funcionamento atual das redes sociais pareça não abonar a produtividade dessas variantes, revela dois aspetos ponderosos: o contentamento que os indivíduos encontram nas interações linguísticas; a erosão dramática que as patologias da comunicação exercem na discursividade e, por conseguinte, na democraticidade. O desafio estará porventura em reorientarmos o primeiro para a lógica da discussão e obstarmos sistematicamente à progressão do segundo. O diálogo com a perspetiva de Eric Weil poderá, ao que cremos, contribuir para o apercebimento de que a discussão da discussão continua a ser um dos maiores problemas da e para a democracia.