E eu não sou uma filósofa?

Jordânia Araújo

Professora de Filosofia (IFBA) e doutoranda em Filosofia (UFBA); Integrante do GT Filosofia e Gênero

20/03/2023 • Coluna ANPOF

A pergunta que nos assalta quando percorremos por caminhos teóricos na Filosofia é: onde estão as mulheres filósofas? De início, o próprio discurso no interior dessa área pode responder de maneira explícita que elas não existiram! Uma mentira, que traz um duplo problema. Primeiro, a ausência do reconhecimento do trabalho teórico das mulheres, gera, por conseguinte, uma falha, proposital, no que diz respeito ao campo epistemológico do conhecimento. Essa falha, que pode ser nomeada de epistemicídio, acarreta consequências negativas para a própria consolidação da Filosofia enquanto um campo diverso, aberto, crítico e especulativo. O segundo problema esbarra no ato de tornar as filósofas invisíveis, cuja ação pavimenta um solo fértil para a reprodução de violências contra a mulher e a perpetuação das relações de dominação misóginas e sexistas. Relembrando as palavras de Saffioti (2004) quando lança a pergunta sobre as reverberações do patriarcado na vida de mulheres e homens, ela responde que a dinâmica das relações sexistas são, para sermos justos, prejudiciais para todos, mas, sobretudo, para as mulheres. 

Ao descortinar as mulheres filósofas na história e as condições hostis em que conseguiram pensar, criar e produzir filosoficamente, nos deparamos com um fato, qual seja, elas romperam com os paradigmas sociais e as violências que foram impostas às suas vidas. Construíram, dessa forma, uma Filosofia clandestina. Essa tarefa foi permeada pela dificuldade das condições históricas e sociais em que se encontravam. Isso se deve a um conjunto de fatores que, lamentavelmente, ainda está vigente em nossos dias. As relações de desigualdade entre os gêneros que alicerçam a sociedade acabam atravessando a própria produção do conhecimento. 

Desta forma, a Filosofia não se constitui enquanto um saber neutro, isento e totalmente desgarrado das relações reais e concretas da vida. Pelo contrário, os recorrentes números que apontam a reduzida presença das mulheres na Filosofia apresentam um diagnóstico da própria mazela e condição social em que nos encontramos. Diante desse quadro, ainda assim, as mulheres construíram suas filosofias, mas suas vozes foram tornadas mudas, ocas, sem som algum na tradição canônica, existindo nos caminhos clandestinos do filosofar. 

Neste caso, a tentativa de anulação da voz feminina no arcabouço teórico da Filosofia, nos remete ao discurso célebre de Sojourner Truth, uma mulher negra que vivenciou a escravização. Essa declaração foi proferida como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851. Aqui, Sojourner questiona os papéis socialmente atribuídos às mulheres, na medida em que dá exemplos de superação desses padrões, interrogando astutamente se ela não seria uma mulher, mesmo realizando tarefas e atividades admitidas como masculinas. Na filosofia, podemos realizar a mesma reflexão: essas mulheres que desenvolveram filosofias, uma atividade também admitida exclusivamente para os homens, não seriam filósofas? Da mesma forma que Sojourner Truth interroga o lugar e o papel da mulher na sociedade, denunciando que ninguém jamais a ajudou a desempenhar determinadas funções ditas como próprias do domínio do homem, podemos e devemos fazê-la também no que diz respeito ao campo filosófico. 

As mulheres nesta distinta área do conhecimento, foram sistematicamente deixadas num canto da sala. O silêncio imposto, como diz bell hooks (2014), era delineado pelo único destino das mulheres forjado socialmente: serem reconhecidas apenas como mães, companheiras, secretárias, ajudantes, assistentes, etc, mas não com autonomia o bastante para serem vistas como filósofas, pensantes, criadoras de seus próprios mundos. E é a nossa tarefa, juntar nossas vozes solitárias, reposicionar o lugar da clandestinidade, centralizando as perspectivas filosóficas produzidas por mulheres e pensadas por elas para o mundo. 

Neste ínterim, reiteramos, as Aspásias, Diotimas, Hipárquias, Hipátias, Christines, Hildergadas, Arendts, Davis, Lélias, hooks, Suelis, somos muitas e tantas que seria impossível citar todas e esgotar as fontes. À vista disso, a partir do enriquecimento teórico e diverso dessas mulheres sobre o nosso trabalho e vivência, somado pelo permanente exercício diário na pesquisa filosófica, a pergunta que nos impõe constantemente é: E eu não sou uma filósofa?! 

Da mesma forma que Sojourner Truth lançou a pergunta em formato de denúncia referente ao lugar das mulheres em uma sociedade patriarcal e racista, podemos fazer esse mesmo movimento no interior da Filosofia. A problematização, o olhar crítico para a criação de novos conceitos ou sua reavaliação é tarefa imprescindível da Filosofia. Tomemos a palavra de Truth para conceber uma transformação conceitual no que diz respeito ao lugar das mulheres no campo filosófico: “a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem.”

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