É isto uma aula?

Alexandre Filordi

Professor do Departamento de Educação da UFLA e do PPGE da Unifesp

13/04/2021 • Coluna ANPOF

Salta aos olhos que o título do texto é um paralelismo com É isto um homem? de Primo Levi. O relato de sua experiência em Auschwitz evidencia o tratamento supérfluo à condição humana quando: a) as arbitrariedades do terror se normalizam, sem poder de escolha dos indivíduos, levando-os à dissolução das experiências dos limites éticos conhecidos e praticados; b) emerge-se daí uma “obra de embrutecimento” da própria condição humana: “a lei do Campo mandava: come teu pão e, se puderes, o do vizinho”; c) normaliza-se a regra do imediatismo sob o peso da urgência – apenas manter-se vivo, pois o futuro foi abolido. Sob tais condições desoladoras, tem-se personagens, figuras sombrias, ásperas fantasmagorias da sombra outrora de um homem. Em É isto um homem? descortina-se o trânsito de uma humanidade sufocada, cuja vitalidade é facilmente sucumbida e mortificada.

Guardadas as devidas proporções, gostaria de conceber esse cenário como espelho da situação das aulas em contexto pandêmico. O que passamos a fazer é uma aula? Ademais, vejo implicações que se triangulam entre: a) oportunismo da doutrina de choque neoliberal com respectivo servilismo docente: arbitrariedades; b) cancelamento da dialogia na relação ensino-aprendizagem: embrutecimento da aula; c) normalização de procedimentos didáticos urgentes que funcionarão como plataforma laboratorial para se justificar cisão entre teoria e prática, a precarização das condições de trabalho acadêmico e justificativas políticas de ataques à universidade pública: égide do imediatismo.

Oportunismo de choque

Depois de mais um ano de pandemia, é de se supor que uma descontinuidade histórica se processou na sociedade global. Estamos longe de mapear impactos em curso e seus sentidos. Uma coisa é fato, contudo. A pandemia tem sido politizada, sobretudo no Brasil, para se oportunizar profundas mudanças nas políticas públicas de educação que, em condições “normais”, seriam impossíveis.

Como explica Naomi Klein em A doutrina do choque, neoliberalismo e capitalismo de catástrofe são faces da mesma moeda. Ao sermos atingidos por cataclismos, guerras, golpes de Estado, desordens profundas, calamidades ou pandemias, produz-se uma situação de choque. Por gerar descontinuidades violentas, os efeitos do choque abrangem dificuldades de se produzir respostas precisas e coerentes ao próprio acontecimento que produziu o choque. A percepção social, o entendimento e as normas de convivência se encontram impotentes para suplantar as consequências advindas abruta e inesperadamente.

No neoliberalismo, a doutrina do choque é uma aplicação otimizada de interesses no kayrós do que o choque suscita na sociedade. É o tempo mais precioso para se implementar reformas de “choque” econômico, severamente indigestas; encaminhar-se redução de direitos sociais; produzir-se manobras em profundidade administrativa; manejar grupos sociais de seus vínculos territoriais etc. De Pinochet à privatização das praias paradisíacas do Sri Lanka depois do tsunami de 2004; das calamidades advindas com Katrina à voucherização das escolas de New Orleans; da queda das Torres Gêmeas ao Patriot Act, até a tomada das riquezas do Iraque, encontraremos a doutrina do choque sendo aplicada.

Quando repentinamente, sem o mínimo preparo prévio e completamente desorbitados, professoras e professores, ainda que murmurando contestações, passaram a se adequar à demanda das aulas on-line, algo em profundidade se processou. No princípio, e em meio ao choque, cogitavam-se trânsito passageiro e provisório na situação. Entretanto, os labirintos da pandemia se transformaram em paredes com telas reduzidas a uma paisagem cotidiana. O que era, todavia, jogo caótico adaptativo transformou-se, aos poucos, numa espécie de normalização de didáticas matrix. As aulas se pixelizaram; o saber se livecizou; narciso mergulhou nos lagos dos megabytes e encontrou habitação confortável em likes, seguidores, links e e-flyers; as relações didáticas se googlezaram, zoomificaram-se e, apesar dos gritos e sussurros nas alcovas pretensamente críticas, estar na imagem passou a ser imperativo existencial.

O problema é que nesse ínterim a CAPES quase aprovou cursos de Pós-Graduação estritamente em EaD – o que está longe de ser assunto encerrado; as ações das empresas de educação explodiram na Bolsa de Valor; as bancas de defesas de mestrado e de doutorado, já destituídas há muito tempo de recursos para serem compostas presencialmente, conformaram-se ao império algorítmico da opção virtual; o governo de extrema-direita encaminhou projeto de homeschooling, alegando facilidades de um sistema que já funciona como segunda pele; os cortes no investimento público destinado à pesquisa se aprofundaram; e além das demandas ordinárias, educadores tiveram de aplicar seus recursos em computadores mais eficientes, câmeras, contratar melhor conexão de internet, além de se verem reduzidos à vassalagem de plataformas educacionais das empresas globais predatórias.

Aula como cancelamento do diálogo e da presença

Desde o início do ciclo de quarentena, a Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior – ABMES, indissociável dos sistemas de ensino atrelados à mercantilização, cobrou do “Governo” Federal – noblesse oblige – regulamentação imediata do ensino remoto.

A primeira resposta veio com a Portaria MEC Nº 376. Esta somou-se às subsequentes, regularizando, assim, o ensino remoto. Desde então, normalizou-se a continuidade da aula sob a égide da tela e das plataformas de ensino remoto. Mas o móvel da alegação, para tanto, foi o fato de que a prestação de serviço (sic) não poderia cessar. Em uma ponta, a concepção do aluno como consumidor; na outra, os fornecedores do serviço: empresas cujo negócio é a educação.

O pathos trágico que se extraiu daí foi a incontornável adesão de todas as camadas de formação, sem exceção, ao ensino remoto. Querendo-se ou não, a estratégia do privatismo funcionou como o coro dessa tragédia. Prevaleceram-se: propósito comercial, lucro, mais a escusa de que a formação, pouco importando sob quais condições, deveria seguir a fórceps.

Mas educadores prestam serviço? Uma aula possui valor de corretagem mercantil? Sem pretensão definidora, penso que uma aula supõe presença humana, jamais prescindindo do diálogo constante; uma aula produz fluxos de afetos e de perceptos; uma aula precisa de estratégias didáticas heterotópicas, caso contrário se reduz a um rito monocórdico; uma aula, como disse Barthes, sustenta um discurso, não o impõe, o que demanda método não impositivo; uma aula é uma experiência de vida, se entendermos por experiência o mesmo que Blanchot: “o infinito questionar”, “o que não satisfaz”; a aula é território de transgressão e ousadia do pensamento, longe de ser a realização burocrática de um conteúdo de fetiche protocolar; a aula não responde ao currículo da gestão racionalizada e eficiente, a aula cria um currículo em ação no desejo de um devir-saber.

No formato em que se realizam, contudo, temos uma aula ou a execução de uma obra de embrutecimento? Atualmente, o que resta da aula na espacialidade claustrofóbica, envolta em táticas relacionais capazes de fazer inveja aos dispositivos disciplinares do século XIX? O que há de aula no homodidatismo prefigurado por ritmos impositivos, sobretudo o do silêncio abismal, e nos circuitos de quietude passiva?  Essas aulas não são espécies de uma mais-sofística? Muito menos que aprender algo funcional, valeria, doravante, a própria funcionalidade do meio em detrimento da qualidade de qualquer aprender. A quem convém? 

Efeitos do laboratório aula-pandêmica

Em 2 de abril de 2021, o jornal Folha de São Paulo noticiou que USP e UNICAMP preveem manter ensino a distância em parte dos cursos após a pandemia. As instituições alegam que disciplinas presenciais devem privilegiar atividades práticas. Para componentes teóricos, que serventia aulas presenciais teriam? Não seria a teoria um blábláblá que precisa apenas ser despejado na cabeça dos incautos? Ora, para isso, qualquer vale-tudo didático é recurso benfazejo. O mais perverso, contudo, é o que se assinala no não dito. Em meio a todos os cortes orçamentários para pesquisa e educação, justificados pela sanha neoliberal, a senha das aulas-pandêmicas anuncia o próximo ato: haverá uma política de priorização em detrimento do sucateamento de certas áreas. Reforçar a distinção entre teoria e prática tem essa serventia.

Ademais, a aula-pandêmica está a produzir uma subjetividade voluntariosa-empreendedora. Aqui, encontram-se a normalidade da regra do imediatismo sob o peso da urgência, o ofício do “se vire” e a aceitação das condições que se impõem, espécie de mumificação docente. O provisório e o emergencial pandêmicos, então, podem se converter definitivamente na “nova” educação híbrida, inclusive na ilusão de se “democratizar” a educação, porém, com os vinténs da precarização.

 Mobilizam-se, assim, condições subjetivas de adequação conveniente ao que o neoliberalismo continua a extrair e a produzir: educação reduzida a negócio entre prestadores de serviço enquanto são atacadas as condições qualitativas e gratuitas da educação pública.

Há uma arena perversa em franca construção. Dela também se resultará colocar a experiência da aula em tratamento de choque. Essas aulas embrutecidas que gravamos, nada nos garante que não serão, em tempo oportuno, usadas como arquivos repetitivos para se diminuir contratação e valorização docentes. Entraríamos na era das aulas nas nuvens. Ao mais, podemos pressentir a instalação de uma assimetria paranoica entre docentes julgados padecendo de artrite didático-pedagógica – os démodés – e os que se autoassumem como “inovadores”, adeptos do ensino remoto e da EaD.

Mas a essa altura, isso importa? Pensemos no embrutecimento, nas arbitrariedades, no imediatismo da sobrevivência em jogo na formação humana neoliberal e perguntem-nos: é isto uma aula?