É só neoliberalismo?

André Figueiredo Brandão

Prof. (SEC/BA) e Doutorando pela UFBA

19/03/2021 • Coluna ANPOF

Se há algo que não pode ser dito sobre “Parece revolução, mas é só neoliberalismo”[i] é que a sua publicação passou despercebida pelos circuitos universitários. O texto de “Benamê Kamu Almudras” pôde minimamente reaquecer certos debates acadêmicos, acerca da própria vida universitária, seus atritos internos e a sua função social, algo que me parece extremamente importante neste cenário de construção de saídas para os impasses trazidos pela pandemia e pelas constantes ameaças e ataques do Governo Bolsonaro. No nosso campo, diversas respostas foram esboçadas, na tentativa de confrontar as principais debilidades deste texto, entre as quais, aquela proposta por nosso colega Érico Andrade[ii], que adquiriu maior notoriedade. Meu propósito nesta coluna é tentar pensar em uma alternativa a estes dois textos, visando o diálogo possível e necessário entre professores e alunos.

Uma das principais dificuldades de “Almudras” foi, a meu ver, corretamente questionada por Érico. O modo como seu texto trata conceitualmente o suposto neoliberalismo como uma forma cultural promove uma cisão indevida entre o que pode ser chamado de vida espiritual de uma dada comunidade e a sua constituição como uma totalidade. É ponto pacífico que um tecido social se conforma enquanto um complexo de complexos, no qual cada esfera possui a sua autonomia relativa. Contudo, o corte abrupto de um destes campos pode servir a análises de fundo moralista, que estendem o seu juízo crítico apenas sobre as dimensões desta forma cultural manifesta por professores e alunos, sem que o seu exame seja acompanhado pelo conjunto de determinantes que lhes são exteriores e que os afetam decisivamente, de modo que uma perspectiva que se resume a esta manifestação, apartada de tais fatores constituintes, deforma a sua apreciação.

Refiro-me a um suposto neoliberalismo na medida em que não me sinto seguro quanto à utilização desta categoria como instrumental explicativo das circunstâncias atuais. O termo viveu a sua consolidação sob certas condições, como a terceira revolução industrial; sua reestruturação produtiva subsequente; a introdução de certas tecnologias em seus formatos mais iniciais, como computadores e celulares; além do avanço da mundialização e financeirização da economia capitalista. Após a crise de 2008, o avizinhamento de uma quarta revolução industrial; bem como o avanço de novas relações de trabalho precarizantes, que vem sendo chamadas de uberização; o desenvolvimento das redes sociais e dos smartphones; além do papel dos algoritmos na regência da dinâmica virtual de nossa cotidianidade são alguns dos aspectos do tempo presente que me fazem crer que talvez fosse mais correta a ideia segundo a qual nós estamos vivendo um novo patamar do neoliberalismo, uma transição para outro momento da experiência capitalista ou mesmo a chegada desta nova configuração, de difícil definição para mim.

Acredito que isto não seja mero detalhe, uma vez que o uso do termo neoliberalismo normalmente é acompanhado por um conjunto categorial que: ou perdeu atualidade; ou vem assumindo novas facetas; ou está sendo acompanhado por novas propostas concorrentes. Um exemplo crucial deste raciocínio é o termo guarda-chuva conhecido como pós-modernismo, uma ideia de lógica cultural, geralmente mal definida, utilizada para reunir as mais distintas expressões teórico-culturais. Se olharmos bem a atual quadra histórica, ou a lógica dita pós-moderna vem manifestando importantes mutações, ou tem sido acompanhada de outras lógicas sociais, ou sequer possui mais a validade analítica de outrora. A minha impressão é que cada vez mais vemos a consagração de novos circuitos sociais, como o corolário do desenvolvimento qualitativamente distinto daquilo que se chamou neoliberal, ou mesmo da sua descontinuidade enquanto experiência histórica.

Estas novas circunstâncias, que concorrem, modificam, ou mesmo superam a estruturação de corte neoliberal e “pós-moderna”, não significam, segundo meu ponto de vista, um progresso. Na verdade, o que posso perceber é que vivemos as novas consequências do avanço de uma composição social que produz o que Mark Fisher chamou de ontologia dos negócios, ou o que Laval e Dardot entenderam como uma gestão mercantil de si[iii]. Este fenômeno decorre do profundo esgotamento das possibilidades materiais do atual momento da ordem capitalista, que ao mesmo tempo é acompanhado de uma maior demanda em seu ritmo produtivo, de forma a impor o máximo desempenho individual possível, para conseguir atender a tal aceleração, ao mesmo tempo que também cresce o sucateamento das próprias condições de existência dos sujeitos. Assim, a compreensão destes novos laços sociais é fundamental para entender quais as suas repercussões nas agências dos docentes e discentes criticados por Érico e por “Almudras”.

Podemos observar, de Paulo Renato a Abraham Weintraub, um aumento quase contínuo da exigência de produtividade e do sucateamento do trabalho na universidade. É por meio de tais circunstâncias que surge o senso produtivista que induz o professor universitário a esgotar a si mesmo, os seus pares e os seus alunos, muitas vezes olhando indistintamente para as condições reais de produção do alunado. É um erro moralista, contudo, deflacionar as razões destes desvios docentes e positivá-los de modo a apontar o professor universitário como uma elite social e financeira. Lukács argumenta que a ordem mercantil naturaliza a ideia da socialização como destruição, de modo que agruras sociais passam a ser encaradas como condição ordinária[iv]. Assim, qualquer um que não seja plenamente atingido por elas facilmente pode ser visto num patamar de privilégio. A maior perversidade desta lógica perpassa justamente pela naturalização das maiores misérias sofridas por quem está no andar de baixo da divisão social. No Brasil, país de capitalismo dependente, o nosso modelo econômico impõe uma superexploração de sua força de trabalho, para garantir a acumulação privada de uma minoria ínfima, de maneira que a renda individual de mais de 100 milhões de brasileiros é de apenas 413 reais por mês[v]. Isto não significa que seja razoável dividir os trabalhadores brasileiros de forma a alçar a categoria docente universitária, por suas condições atuais, ao posto de elite, como se tivesse algum grau de deliberação sobre a miséria nacional e usufruísse dos dividendos do sacrifício da maioria da população.

A compreensão dos limites deste tipo de perspectiva torna-se mais fácil quando a comparação passa a ser entre professores universitários e da educação básica. A minha condição enquanto aluno de pós-graduação e professor da rede básica me dá a oportunidade de participar de discussões que afirmam não só o não-antagonismo entre as duas categorias como também o caráter imperativo da sua unidade no tempo presente. Há a necessidade de uma atuação conjunta contra a destruição da educação pública representada pela PEC emergencial e pela reforma administrativa; em defesa da filosofia como disciplina no ensino médio; pela formação continuada dos professores da rede; por uma sintonia maior entre as licenciaturas, as questões mais candentes da sociedade brasileira e as tarefas concretas da formação dos futuros professores; e tantas outras convergências. Além de tais bandeiras, este tipo de divisionismo é negado, ao fim das contas, pelo simples fato de que é da educação básica que surgem os próximos alunos das licenciaturas, e são delas que saem os futuros professores da educação básica.

A caricatura discente feita por “Almudras”, por sua vez, também cai no mesmo desvio moralista. Muitas vezes os alunos sofrem com a repetida incompreensão docente de que problemas que vão desde o transporte, a compra de livros até a própria permanência no curso impactam no “desempenho” exigido de maneira unívoca a todos os discentes. Não há como ignorar o cenário de destruição dos horizontes de vida, a falta de mediação entre espaço pré-universitário e espaço universitário, sem falar no complexo de determinações violentas que um conjunto cada vez maior de estudantes está exposto a todo momento. Uma circulação de vida que sistematicamente constrange uma individualidade com toda sorte de brutalidades pode facilmente servir de base para uma forma de agência que poderia ser entendida como uma espécie de ludismo espiritual, já diria Lukács[vi], que confunde os professores, o espaço universitário em abstrato, ou até mesmo os conjuntos temáticos e teóricos já postos com a razão última de sua não-realização, de modo que todos eles devessem ser demolidos, da mesma maneira que as máquinas fabris foram responsabilizadas pelo desemprego na Inglaterra no século XIX.

Na contramão desta tendência, é preciso afirmar o não-antagonismo de fundo entre docentes e discentes[vii]. Não há como sustentar qualquer ganho efetivo de qualquer um destes polos que venha da pilhagem do outro, como em outras relações do nosso atual arranjo social. É através de uma construção democrática que nós podemos fazer com que o espaço acadêmico avance, sem formar nem um cenário ludista nem uma torre de marfim. Assim, podemos enfrentar tanto os universalismos de viés abstrato, as injustiças epistêmico-sociais, bem como a negação por princípio do que já está em circulação. Um convívio universitário que não seja pautado pela retroalimentação existente entre culpa e ressentimento é o ponto de partida para uma alternativa comunitária que ponha a universidade em favor daquilo que é a sua maior vocação: a defesa, contra todo obscurantismo e castração, do conhecimento e de todo o patrimônio cultural humano, em toda a sua riqueza e pluralidade.

 


[i] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/parece-revolucao-mas-e-so-neoliberalismo/

[ii] https://piaui.folha.uol.com.br/parece-democratica-mas-e-autoritaria/

[iii] FISHER, M. Capitalist realism. Winchester (UK): Zero Book, 2009, p. 17.; DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 34.

[iv] LUKÁCS, G. Aristokratische und demokratische Weltanschauung. In: Schriften zur Ideologie und Politik. Berlin: Luchterhand, 1967, p. 411.

[v] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/30/economia/1572454880_959970.html; MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. (Org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 147-154.

[vi] LUKÁCS, G. O sistema de conselhos é inevitável. In: Essenciais são os livros não escritos. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 176.

[vii] O não-antagonismo docente x discente, sob meu ponto de vista, não significa a dissolução das duas posições, tornando-as indistinguíveis, na medida em que correspondem a atividades distintas e secantes em um processo educativo.