Espaços da liberdade republicana: homenagem a Sérgio Cardoso

Antônio Carlos dos Santos (UFS)

28/11/2019 • Coluna ANPOF

Veio a lume no final do ano passado o livro “Espaços da liberdade: homenagem a Sergio Cardoso”, organizado por Telma de Souza Birchal e Maria Cristina Theobaldo, publicado pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 432 páginas, 2018. 

O livro, na esteira do que vem sendo feito nos últimos anos no Brasil, é uma Festschrift em reconhecimento a Sérgio Cardoso, Professor da USP. O termo pode ser traduzido como "livro de homenagem" ou, mais apropriadamente, "livro de celebração" em tributo a um(a) pesquisador(a) de destaque. Este gênero, surgido na Alemanha, de onde vem o termo, espalhou-se rapidamente pela Europa e Estados Unidos e chegou ao Brasil no final dos anos 90, no Rio Grande do Sul, em honra a Ernildo Stein. Depois, passou pelo Rio de Janeiro com obras dedicadas a Guido de Almeida e Raul Landim. Logo depois chegou ao Ceará, em preito a Manfredo Araújo de Oliveira; na sequência, em Minas Gerais, em deferência a José Henrique Santos; em São Paulo, em louvor a Scalett Marton e Maria das Graças de Souza, dentre outros. O fato é que o crescimento do tipo de obra denota certa maturidade intelectual e adensamento das atividades filosóficas no Brasil a tal ponto de não mais referenciarmos os pais fundadores de nossos departamentos, mas os mestres, ainda em vida (1).

Num momento em que as ciências humanas e, de modo particular, a filosofia, estão sendo diretamente atacadas pelo próprio ministro da educação, a justa homenagem ao Professor, por conseguinte, é prestada também à filosofia e, de maneira especial, aos temas nos quais o referido Professor atua. Neste sentido, trata-se de uma coletânea de textos que lhe foi oferecida por um conjunto de colegas e amigos, de vários pontos do país, com a simples intenção de homenageá-lo, em sinal de reconhecimento daquilo que Sérgio Cardoso vem fazendo pela filosofia no Brasil, de modo particular, pelos estudos do republicanismo e do Renascimento. Da leitura da obra extraímos duas breves conclusões: a primeira, que ela procura fazer jus a um trabalho de pesquisa, formação e divulgação científica ao longo de 40 anos de vida docente do Professor na Universidade de São Paulo; a segunda, que apresenta ao leitor uma renovação geracional de pesquisadores que vem contribuindo para alargar o cânone filosófico da área.

A obra em tela é composta por duas partes, com nove textos em cada uma delas. Em todos eles, seja na primeira, seja na segunda, há o reflexo dos diversos temas de interesse do homenageado. À primeira parte é dedicada ao tema das investigações sobre filosofia política, que são plasmadas no republicanismo, e à segunda, é destinada à produção dos estudos sobre Montaigne e o Renascimento, que tomam várias direções, mas sem perder o seu foco principal. Assim, a publicação segue a mesma trajetória acadêmica e trilhas abertas pelo homenageado. Ao longo dela, a tessitura da obra é feita, portanto, pela produção filosófica do Professor, que é provocada pelos comentários de colegas, amigos, orientados, num espaço de liberdade, de troca e de diálogos francos, resultando daí, numa excelente contribuição à filosofia brasileira.

O portal da primeira parte da obra, filosofia política e republicanismo, é feito pela Professora Marilena Chaui, que foi a orientadora do homenageado no Programa de Pós-graduação na USP em 1972, onde cinco anos mais tarde Sérgio Cardoso viria a fazer parte do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. A presença de Chaui na abertura dos textos não é apenas simbólica do ponto de vista da formação do homenageado, mas sobretudo é representativo pela marca dos estudos da filosofia política para a produção intelectual de Sérgio Cardoso. Isso fica claro no texto da Professora Marilena: embora ela não discuta diretamente sobre os temas que trabalha Sérgio Cardoso, mas a marca dos conceitos políticos perpassa pelas preocupações do homenageado.

Na sequência, os capítulos desta parte seguem uma ordem histórica, dedicados aos autores da Antiguidade greco-romana: “Ensaio sobre a Prudência em Aristóteles”, de Silvana Ramos, e “Políbio, Cícero e a Constituição dos Romanos”, de Flávia Benevenuto. Em seguida, são apresentados três textos sobre Maquiavel: o primeiro, de José Luiz Ames, “Concepção de povo em Maquiavel: uma tentativa de aproximação”; o segundo, de Helton Adverse, “Lei e liberdade em Maquiavel”; o terceiro, de José Antônio Martins, “Notas sobre os conflitos políticos nas Histórias Florentinas”. Os últimos três capítulos desta parte são destinados à discussão da liberdade republicana numa leitura mais contemporânea: o primeiro, de Alberto de Barros, com o texto “A liberdade republicana negativa de Skinner”; o segundo, de Newton Bignotto, “Solidão e comunidade: a busca do bem comum nas sociedades contemporâneas”; e a terceira e última, de Heloísa Murgel Starling, com o texto “Onde só vento semeava outrora: a república e o sertão”.

A segunda parte está organizada em função dos temas do Renascimento e de aspectos do pensamento de Montaigne. O primeiro deles é “O resgate da Ars rhetorica na pregação cristã de Erasmo”, de Fabrina Magalhães Pinto; o segundo, “Ainda o ceticismo de Montaigne”, de Luiz Eva; o terceiro, “A recepção filosófica dos Ensaios de Montaigne na França no final do século XVII: o caso Huet”, de José Raimundo Maia Neto; o quarto, “Alcibíades, Castiglione e Montaigne”, de Celso Martins Azar Filho; o quinto, “De Montaigne a Shakespeare e Cervantes”, de Carlos Antônio Leite Brandão; o sexto, “Montaigne e os outros”, de Maria Célia V. França; o sétimo, “Estratégias oblíquas na crítica da glória nos Essais em diálogo com o De Officiis”, de Sergio Xavier Gomes de Araújo; o oitavo, “Aproximações de um estudo sobe a imaginação em Montaigne”, de Eduino José de Macedo Orione; o nono e último, “Soberano remédio para ler Os ensaios e lidar com as paixões (uma leitura do capítulo ‘da diversão’)”, de Andre Scoralick e Edson Querubini.

Há nas duas partes inteireza e sintonia, seja entre os próprios textos, seja nas temáticas trabalhadas pelo homenageado, conforme já foi dito, de tal modo que o leitor vai costurando o fio condutor que as liga, a produção acadêmica do Professor Sérgio Cardoso. Detentor de uma generosidade pessoal ímpar, capaz de conciliar rigor acadêmico e clareza filosófica, por um lado, notabilizou-se pela sofisticação e elegância estilística, raramente encontradas na academia em tempos esnobes como os nossos, por outro. Sua produção acadêmica não ignora o que tem sido produzido na Europa ou nos EUA, mas decidiu extrair aspectos interpretativos próprios sobre a Renascença ou Montaigne e, com isso, elevou o debate sobre essa área de atuação no Brasil O que se percebe no livro é que ele é amado por todos, para lembrarmos do título do capítulo XVII de O Príncipe, de Maquiavel. Os textos, então, suscitam e testemunham o reconhecimento de toda uma geração por ele formada e que tem atuado para consolidar cada vez mais o campo de atuação.

Para concluir, o livro torna-se leitura valiosa e obrigatória para as novas gerações de pesquisadores em filosofia da área; e, não menos importante, é um convite à reflexão sobre o papel de nossos mestres que, em meio a tantas dificuldades, possibilitaram espaços de liberdade republicanas nos quais a interlocução entre diferentes tradições filosóficas foram condições necessárias para fazer avançar a filosofia no Brasil.

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DOMINGUES, I. PINTO, Paulo Roberto M. DUARTE, R. (Orgs). Ética, política e cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 7.