Especial 8M - Ecofeminismo: um aceno filosófico à crise climática
Anelise De Carli
Pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS
17/03/2025 • Coluna ANPOF
Os feminismos são múltiplos, carregam perspectivas diversas e, por vezes, até conflitantes. No entanto, há um ponto de convergência que une essas correntes: a crítica ao patriarcado. Mais do que um regime ideológico de dominação masculina sobre as mulheres, o patriarcado pode ser entendido, como sugere Silvia Federici, como um sistema socioepistêmico de exploração que naturaliza hierarquias e sustenta relações de poder assimétricas, operando em conjunto, na modernidade, com o capitalismo e o colonialismo. Se a crise climática está enraizada nessas estruturas históricas de exploração, não seria o patriarcado, assim como o capitalismo, um “inimigo comum” dos movimentos feministas e ambientais?
Nancy Fraser já apontou para a necessidade de mantermos fortes os vínculos que interligam as atuais crises políticas, econômicas e ecológicas; porque, caso contrário, não conseguiremos ter um cenário complexo o suficiente para entender nenhuma delas. Ao lado disso, o conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw, nos ajuda a compreender como diferentes eixos de opressão – gênero, raça, classe, território – estão imbricados. Movimentos políticos de mulheres negras, indígenas e camponesas, que lideram resistências contra políticas ambientais predatórias, denunciam há muitas décadas, como a exploração econômica e a violência de gênero são dimensões inseparáveis de um mesmo problema estrutural. Essas lutas revelam que os impactos da degradação ambiental recaem com maior peso sobre aquelas que historicamente já foram marginalizados, as camadas da população humana chamadas “minorias políticas”.
No já clássico volume Ecofeminismo, Maria Mies e Vandana Shiva argumentam que a expansão capitalista encontrou no patriarcado um aliado fundamental, reproduzindo hierarquias que vinculam a subordinação das mulheres à degradação dos ecossistemas. A análise filosófica e histórica demonstra como a lógica extrativista, que reduz o conceito de natureza a um recurso inerte a ser apropriado, reflete estruturas coloniais que também operaram e ainda operam sobre corpos feminizados e racializados, principalmente no Sul Global. Ao longo da história, essa articulação entre patriarcado e capitalismo tem se manifestado desde a apropriação dos saberes tradicionais de comunidades indígenas até a intensificação da exploração do trabalho feminino em cadeias produtivas predatórias, sem contar a ausência de valorização social do trabalho do cuidado - tipicamente feminino.
A noção de cuidado, discutida por María Puig de la Bellacasa, também reflete essa relação entre meio ambiente e estruturas de opressão. Para a autora, o cuidado não é apenas uma ação, mas uma forma de pensamento e engajamento ético com o mundo. Refletir sobre a crise climática sob essa ótica implica reconhecer que as formas como nos relacionamos com os ecossistemas refletem relações políticas e afetivas historicamente condicionadas.
Aqui cabe retomar a crítica ecofeminista feita por Karen Warren a respeito do lugar que o feminismo ocupa nas discussões sobre Ética. Para ela, persiste, mesmo nas mais bem intencionadas discussões ambientais, certo dualismo bastante problemático que isola a discussão sobre os princípios éticos de um lado e a sobre as práticas situadas do cuidado de outro. Para ela, é preciso encontrar uma formulação ética ampla o suficiente que contemple não humanos nesse nosso mundo populoso (para usar a formulação de Donna Haraway) e que, assim, seja capaz de tingir de moralidade também a nossa relação com os ecossistemas.
Greta Gaard argumenta que o discurso dominante sobre mudanças climáticas permanece ancorado em uma abordagem tecnocientífica pretensamente neutra, ignorando dimensões fundamentais como justiça ambiental, de gênero e interespécie. A ênfase em soluções puramente técnicas e científicas, sem questionar as bases ideológicas e econômicas que sustentam a crise climática, atua somente na ponta do problema, lidando com os efeitos e não com as causas, assim perpetuando estruturas de dominação e exploração. Para Gaard, uma abordagem ecofeminista é essencial para desvelar a relação entre consumo excessivo e marginalização das comunidades mais afetadas pelas mudanças climáticas.
A crítica às epistemologias modernas são, então, um desdobramento urgente desse debate - papel que pode ser desempenhado com desenvoltura pela comunidade filosófica, amparando tomadas de decisão nos três setores da economia, incluindo na formulação de políticas públicas. Se a crise climática é também uma crise de conhecimento e de percepção, pode-se questionar se os modelos tradicionais de pensamento são capazes de oferecer respostas às contradições que eles mesmos engendraram.
Como Donna Haraway sugere, “nothing comes without its world”. É necessário manter a atenção sobre a interdependência entre os seres e os ecossistemas. Diante das ameaças impostas pela crise climática, as articulações entre movimentos feministas, indígenas e ambientais e pensamento crítico tornam-se fundamentais para vislumbrar alternativas ao modelo de desenvolvimento vigente. Mais do que encontrar respostas definitivas e unívocas, trata-se de lidar com esse mundo plural, onde muitos modos de ser e viver devem ter o direito de continuar existindo. Aliando-se a uma pluralidade ontológica, ao mesmo tempo situado e comprometida com valores éticos básicos, o trabalho do pensamento pode nos permitir imaginar outras formas de habitar o mundo.