Especial 8M - Mulheres na História da Filosofia: abordagens sobre as Leis 14.164/2021 e 14.986/2024

Beatrís da Silva Seus

Doutoranda em Filosofia na UFPel

Raíssa Teixeira Almeida de Souza

Mestre em Filosofia pela UFF

19/03/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com GT Filosofia e Gênero

A educação é a chave para a transformação da realidade, é apenas através dela que se pode ter uma mudança significativa na vida das pessoas e na cultura de um país. O Brasil, um dos países mais violentos do mundo em relação às mulheres, demonstra que leis punitivas contra violência doméstica e feminicídio não são suficientes para combater o machismo arraigado na cultura, que se arrasta desde os tempos da colônia, por isso, neste texto trazemos duas leis que enxergam a Educação como lugar de mudança real de paradigma.

As Leis 14.164/2021 e 14.986/2024, ao modificarem a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), incorporam perspectivas de gênero ao currículo da educação básica, promovendo uma abordagem filosófica aprofundada sobre as mulheres e também promovem semanas de conscientização durante o mês de março, mês Internacional da luta das mulheres. A Lei 14.164/2021 institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, voltada à prevenção da violência, e propicia reflexões sobre ética, estruturas de dominação e equidade, em diálogo com ideias de pensadoras como Hannah Arendt. Já a Lei 14.986/2024 estabelece a Semana de Valorização de Mulheres que Fizeram História, enfatizando o legado feminino e incentivando análises sobre reconhecimento e justiça epistemológica, em consonância com contribuições de autoras como Simone de Beauvoir, configurando a filosofia como um meio essencial para a crítica e transformação das desigualdades de gênero.

Apesar de constituírem avanços normativos ao introduzir questões de gênero no âmbito da educação básica pública no Brasil, as Leis encontram barreiras significativas para sua concretização, restringindo-se, em grande parte, ao plano teórico. Nas instituições públicas de ensino, caracterizadas por limitações estruturais como escassez de recursos, formação docente inadequada e currículos excessivamente densos, a realização efetiva das mudanças curriculares e da concretização das Semanas de Conscientização revela-se uma tarefa complexa.

A falta de políticas públicas robustas, incluindo treinamento especializado para educadores e disponibilização de recursos pedagógicos apropriados, compromete o potencial do ensino de filosofia como ferramenta de análise crítica, reduzindo-o frequentemente a práticas formais ou abordagens superficiais, distantes do objetivo transformador inicialmente proposto. Ademais, o contexto sociocultural de muitas comunidades atendidas por essas escolas, onde persiste a naturalização da violência de gênero e profundas desigualdades estruturais, acentua o hiato entre as intenções legislativas e sua viabilidade prática. Dessa forma, embora as leis apontem para uma educação emancipatória, a carência de investimentos, planejamento estratégico e priorização política as confina a aspirações teóricas, insuficientes para impactar de maneira substancial a rotina escolar ou o desenvolvimento filosófico dos estudantes  da rede pública.

Para contornar as dificuldades de aplicação das Leis 14.164/2021 e 14.986/2024 no âmbito do ensino de filosofia na educação básica pública brasileira, é essencial estabelecer uma política sólida de desenvolvimento profissional para os docentes, voltada às demandas específicas dessas normas. A capacitação permanente, continuada dos professores deve contemplar atividades formativas, como seminários práticos, que incorporem de maneira transversal os temas de gênero — como a prevenção da violência contra mulheres e a celebração das realizações femininas — ao planejamento pedagógico. Essa iniciativa poderia ser implementada por meio de cooperações entre órgãos educacionais e universidades, que disponibilizariam programas de atualização e recursos didáticos personalizados, incluindo seleções de textos de filósofas como Martha Nussbaum ou Angela Davis, vinculando as metas dos conteúdos curriculares e das Semanas de Conscientização a reflexões profundas sobre ética e conhecimento. Tal abordagem potencializaria a habilidade dos educadores em conduzir diálogos críticos, transformando as diretrizes legais em experiências educacionais impactantes que incentivem os estudantes a repensar as disparidades sociais, pois como afirma a Deputada Tereza Nelma no inteiro teor do projeto de Lei, é preciso uma virada epistemológica e de cosmogonia nos conteúdos apresentados nas escolas.[1]

Paralelamente, a concretização dessas leis exige a provisão de recursos materiais e organizacionais direcionados às escolas públicas, assegurando que as Semanas de Conscientização evoluam de eventos protocolares para arenas de investigação filosófica integradas ao dia a dia escolar. O lançamento de chamadas públicas para custear projetos interdisciplinares, unindo filosofia, ciências sociais e manifestações culturais, viabilizaria a realização de ações como colóquios, leituras comentadas e performances que abordem as narrativas femininas e os dilemas da violência de gênero. Esses projetos poderiam ser supervisionados por grupos locais, garantindo sua adequação e alcance. Assim, combinando uma preparação docente aprofundada com apoio estrutural, as leis deixariam de ser meras intenções teóricas para se afirmarem como mecanismos reais de renovação, posicionando o ensino de filosofia como um campo crucial para o desenvolvimento de uma visão crítica sobre as dinâmicas de gênero na realidade brasileira.

Para que isso aconteça é fundamental que haja a conscientização e a sensibilização das secretarias de educação estaduais e municipais, assim como a formação continuada das equipes gestoras e das e dos professores das redes. Outra ação fundamental é a interdisciplinaridade nas Semanas de Conscientização, assim como no ensino das disciplinas. Importante frisar que não haverá alteração dos conteúdos dados em sala de aula, mas a necessária ênfase da participação e protagonismo das mulheres nos temas já abordados no currículo, evidenciar a participação feminina é chamar atenção para a naturalização do espaço público e da construção de conhecimento como masculinos, compreendendo que as mulheres foram e são fundamentais para o desenvolvimento da humanidade.

A inclusão de perspectivas e experiências femininas nos currículos de filosofia permite que os estudantes reconheçam a contribuição das mulheres tanto para a evolução histórica da disciplina quanto para os debates filosóficos contemporâneos, ampliando sua compreensão sobre o pensamento humano. Essa abordagem não só enriquece o repertório intelectual dos estudantes , mas também incentiva uma reflexão mais ampla e inclusiva sobre temas éticos, políticos e existenciais, dando visibilidade a vozes que, por muito tempo, foram marginalizadas. Dessa forma, o ensino da filosofia se torna mais representativo e alinhado à complexidade das ideias ao longo da história.

Essa proposta pedagógica tem um impacto significativo no ambiente educacional, promovendo a empatia e o diálogo entre diferentes pontos de vista. Ao conhecerem as ideias de mulheres que superaram desafios sociais e históricos para se expressar, os estudantes desenvolvem uma maior sensibilidade para as desigualdades e um compromisso mais sólido com a construção de uma sociedade mais justa. Dessa maneira, a filosofia, ao buscar compreender a existência e orientar a ação humana, se fortalece ao incorporar a diversidade como parte essencial de seu desenvolvimento intelectual.


Notas

[1] BRASIL, Câmara dos Deputados, Relatório da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher sobre o Projeto de Lei N. 557-A, de 05 de março de 2020. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1866325&filename=Ultimo%20Despacho%20-%20PL%20557/2020. Acesso em: 12 mar. 2025.