Especial 8M - 8 de março para quem?

Simone Borges dos Santos

Doutoranda em Filosofia na UFBA

18/03/2025 • Coluna ANPOF

Em colaboração com GT Raça, Gênero e Classe da Anpof

Neste mês de março, em que o mundo comemora o Dia Internacional da Mulher, muitas coisas vêm à minha cabeça. Num estado de auto reflexão e ensimesmamento, questiono-me se devo comemorar, chorar, ou revoltar-me nesta data. Gostaria de falar sobre tantas coisas. São tantas camadas que me consomem como mulher, como negra, como acadêmica. Camadas que perpassam o gênero, a raça, a classe, a autoestima. Assuntos que poderia falar de maneira isolada, mas que não se isolam em si mesmos e me consomem como um todo. Sem a intenção de transformar um particular em universal, porém compreendendo que mulheres negras vivenciam maneiras semelhantes de existir no mundo, afirmo que minhas subjetividades e experiências convergem, em alguma medida, com experiências de minhas irmãs de cor.

Cumprindo o terço final do meu doutorado sanduíche em Paris, através da janela do meu quarto, em um fim de tarde quase primaveril, vejo o céu completamente azul e uma árvore pelada com folhas novas brotando, anunciando que finalmente a primavera está chegando. Ouvindo Billie Holiday, cantora de jazz, de voz incrível, com uma vida cheia de altos e baixos, que ganhou fama, foi presa, se reergueu e, aos 44 anos, – pobre e vítima de cirrose hepática – morreu algemada a uma cama de hospital, acusada de uso de entorpecentes.

Penso quão solitária foi a vida de Billie Holiday. Uma solidão em meio à multidão, em que pessoas se relacionavam com ela para tirar proveito de sua fama, de seu dinheiro, de sua falta de escolarização e de sua dependência química. Holiday foi uma mulher revolucionária, de espírito livre, assim como a maioria das cantoras de blues e jazz da primeira metade do século 20. De talento indiscutível, Billie Holiday precisou mostrar, várias vezes, ao mundo quão talentosa era.

Imagino a solidão de Billie Holiday e de tantas outras mulheres. Não apenas (e não menos importante) a solidão afetiva sexual, mas a solidão do existir, de não conseguir contar com outras pessoas, porque as nossas irmãs também estão nos corres da vida, na tentativa de buscar sobrevivência. Penso na solidão acadêmica, a necessidade e a importância de escrever um texto, um artigo, uma dissertação, uma tese. Para que tudo isso se realize, necessitamos do ócio criativo.

O cotidiano da vida, no entanto, nos obriga a cuidar de filhas e filhos, de mãe e pai, de casa, de trabalho. E cuidamos, e cuidamos, e cuidamos... Mas, quando somos cuidadas? Não nos sobra tempo para esse tal “fazer nada”. Às vezes, nem mesmo tempo para chorar. Choramos enquanto corrigimos avaliações, enquanto lavamos louça, enquanto cortamos cebola, enquanto o xampu cai nos olhos. Porque a vida segue e fomos forjadas em uma engrenagem onde devemos dar conta de tudo, mesmo não tendo o reconhecimento de que somos boas o suficiente. Parece uma busca inalcançável. Uma eterna corrida atrás da própria sombra.

No que concerne às parcerias afetivas sexuais, Ana Cláudia Lemos Pacheco (2013), em Mulher negra: afetividade e solidão, analisa como a mulher negra e mestiça está fora do mercado afetivo e como a erotização e fetichização de corpos negros são naturalizadas. Pacheco mostra como, à medida que a cor da pele escurece, o afeto é negado. De maneira em geral, são mulheres que não conseguem (não tem permissão para) experienciar a plenitude de um amor. Pacheco analisa por meio da interseccionalidade raça, gênero, orientação sexual, classe, escolaridade, concluindo que mulheres trans, negras, pobres, com baixa instrução estão mais predispostas às experiências incontínuas de afeto do que suas pares cis, brancas, universitárias de classe média ou alta. Aprendemos, desde a colonização, que corpos negros não são dignos de amor e afeto.

Dessa forma, tento imaginar o que significativamente o dia 8 de março representa para nós, mulheres negras. Problematizo o mês de março da mesma forma que problematizo o mês de novembro (mês da Consciência Negra). Não pela importância das datas, mas a forma como esses períodos são conduzidos pela sociedade. A sensação que tenho é que a população lembra da existência de mulheres e negros apenas nos referidos meses. Como mulher negra me sinto duplamente insultada. Não sou mulher apenas em março e tão pouco negra apenas em novembro. Exijo minha humanidade reconhecida nos 365 dias do ano.

Algo pelo qual Sojourner Truth, em 1851, já reivindicava, quando questionou “E eu não sou uma mulher?”. Por ser negra, por ter músculos, por trabalhar tão duro quanto um homem poderia, por ninguém se compadecer de sua dor pelo excesso de trabalho ou quando seus filhos foram vendidos como mercadorias. Se nem como humana Truth era considerada, jamais seria vista como uma mulher. Não apenas Sojourner Truth, mas qualquer mulher negra. Então, a questão que se coloca nesse momento é sobre quem pode comemorar o 8 de março.

 Enquanto mulheres brancas lutavam por direitos e salários equiparados aos dos homens, nossas ancestrais já sabiam desde muito cedo o significado de trabalhar fora de casa, cuidar de famílias que não eram as suas, sem ter direitos e sem remuneração. Elas precisavam lutar pela sobrevivência sua, de seus filhos e filhas. Foram, também, às ruas em marcha contra o linchamento dos seus pares do sexo masculino (companheiros, filhos, irmãos, sobrinhos etc.), porque sempre recaiu nas costas da mulher negra a responsabilidade de garantir a integridade da família.

Ainda hoje, são essas mesmas mulheres que realizam os trabalhos domésticos em casas de famílias brancas, deixando suas crianças sob os cuidados de parentes, vizinhas ou de outras crianças mais velhas, para que possam trazer o sustento, alimento e alguma dignidade para dentro de seus lares. Também, são as mesmas mulheres que vão às delegacias, hospitais, IML’s em busca de notícias a respeito do desaparecimento dos homens de suas famílias. Mais uma vez pergunto, em que a data 8 de março beneficiou as mulheres negras? Se alguma conquista nos beneficiou foi por mérito de nossas ancestrais, que muitas vezes conquistaram sua liberdade com dinheiro do trabalho em tabuleiros de acarajé ou do trabalho como lavadeiras, e assim conseguiram comprar sua alforria.

As marchas das mulheres entre o final do século 19 e início do século 20  não colocaram a raça em suas pautas. Foi uma luta importante para que mulheres tivessem salários mais justos e, a partir daí, conquistassem mais direitos. Um embate que não se encerrou ali, que é diário e é constante. Entretanto, se pretendemos falar sobre feminismos, antes de qualquer discussão, a questão racial deve ser colocada sobre a mesa. É impossível falar sobre o fim de opressões, em seus diversos aspectos, sem utilizar a interseccionalidade como categoria de análise. Mulheres racializadas, pobres, sem instrução precisam ser incluídas nas discussões de maneira simples e direta, de forma que elas entendam do que se tratam os debates. Lélia Gonzalez (2020), apela para o uso da linguagem não acadêmica, inclusiva e acessível, que atenda desde a jovem universitária e chegue na trabalhadora rural que ainda não aprendeu a assinar seu nome.

É indiscutível a importância de Simone de Beauvoir (2016) para o movimento feminista. Sua análise a respeito do tornar-se mulher, do modo feminino de se comportar como uma criação do patriarcado para moldar nossos atos é extremamente necessária para nos entendermos enquanto sujeitas em uma sociedade misógina.

Hoje, porém, de pouco adianta, ou pouco nos revela, as questões abordadas pela filósofa existencialista. Enquanto Beauvoir constata que a mulher é o Outro, porque sua existência só é possível a partir da relação com o homem, ou em relação ao homem, a filósofa desconsidera completamente a mulher negra que sequer é considerada humana. Grada Kilomba (2019), em Memórias da plantação, chama atenção para essa relação. Kilomba refuta Beauvoir afirmando que a mulher negra ocupa uma outra categoria de indivíduo. Ela é o outro do Outro. Já que é a partir da existência da mulher branca que a negra busca se reconhecer nas similaridades do gênero. Não há, entretanto, segundo Grada Kilomba, solidariedade entre elas. A mulher negra estará sempre ocupando um lugar hierárquico inferior ao da mulher branca.

Nós, mulheres negras, lutamos para que a nossa cor não seja um defeito. Lutamos pelo direito de existir. Lutamos por vidas dignas. Lutamos para que não sejamos estupradas porque “temos a cor do pecado”. Lutamos contra o genocídio da nossa população.

A médica e escritora Andreia Beatriz (2023), em entrevista a Roger Cipó, no programa Todo Dia História Negra, fala de maneira precisa sobre o que é ser uma mulher negra em luta constante. Andreia Beatriz afirma que não está construindo uma luta para os outros. “Estou  construindo uma luta para mim. Eu quero que meu filho, minha sobrinha, meu sobrinho, meus netos, eu quero que eu e meu marido, que a gente possa sair e andar na rua sem a preocupação de que a gente precisa levar um documento.”

Apesar de Andreia falar que essa luta (dela) não seja para os outros, é uma luta de toda mulher negra. Não é para os outros, mas é nossa, porque, segundo a médica escritora, “somos nós, também, que estamos elaborando intelectualmente um processo de recondução para o povo negro”. Está em nossas mãos, enquanto feministas negras sacudir as raízes do patriarcado e do racismo, para reconfigurar um novo modelo de sociedade. Conforme diz Angela Davis (2017), em Mulheres, cultura e política, “erguemo-nos enquanto subimos”.

Andreia ainda diz, “a gente sai, como se fosse uma carta de alforria, com o RG na mão, para que a gente seja um pouco menos desrespeitada.” Só uma pessoa negra sabe o porquê da preocupação em lembrar-se de sempre sair de casa portando seu documento de identidade. Não sonhamos com o dia em que sejamos um pouco menos desrespeitadas. Ansiamos pelo dia em que sejamos completamente respeitadas.

Analisando a experiência vivida aqui na Europa, o Dia Internacional da Mulher é mais do que um dia de comemorações, é um dia de manifestações. Significa que a luta ainda não acabou. É um período em que percebo quão forte é a união feminina, ao ponto de abalar as estruturas francesas e fazer a polícia fortemente armada se mobilizar com medo do que somos capazes de fazer. O Estado neoliberal tenta, mas não vão conseguir nos deter. Mais do que nos dividir, devemos nos unir. Se o Estado se abala dessa forma é porque tem medo do que somos capazes. Se tem medo é porque somos forte. E não, como mulher negra, ainda não consigo comemorar, mas estamos prontas para a guerra. Ainda temos muito trabalho a fazer e um legado a deixar para as próximas gerações.


Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sergio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 

CIPÓ, Roger. Todo Dia História Negra: Andreia Beatriz, Ep. 01. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/CzHkZbSP-s8/?igsh=eDFjOW55cDAxajkx. Acesso em 08 mar. 2025.

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intenções e diálogos. Org. Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019

PACHECO, Ana Cláudia Lemos. Mulher negra: afetividade e solidão. Salvador: Edufba, 2013.

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