Especial Anpof 8M - Filósofa e viajante: a liberdade para Mary Wollstonecraft
Sarah Bonfim
Doutoranda em Filosofia (Unicamp)
11/03/2024 • Coluna ANPOF
GT Mulheres na História da Filosofia
Na língua inglesa existem duas palavras para se referir à liberdade: freedom e liberty. De maneira muito geral, liberty se refere à uma ideia mais abstrata de liberdade, em geral, pautanda em questões metafísicas. Já freedom, tem um sentido mais material, tangível. Mesmo o português sendo uma língua complicada, fico feliz de termos uma só palavra: liberdade. Aliás, esse é o meu tema de pesquisa, o conceito de liberdade na obra de Mary Wollstonecraft (1759-1797), uma filósofa inglesa que viveu na segunda metade do século XVIII e acompanhou de perto as expectativas (e os horrores) decorrentes da Revolução Francesa. O objetivo da minha pesquisa de doutorado é compreender de que maneira a educação e os direitos asseguram essa liberdade que Wollstonecraft tanto deseja. Primeiro, eu me limitei à questão das mulheres. Agora, estou interessada em um conceito mais amplo de liberdade, em que não apenas as mulheres, mas os homens também estejam incluídos.
À medida que minha pesquisa avança, tenho cada vez mais a impressão de que Wollstonecraft advoga por uma liberdade (freedom) que seja social, política, econômica e psicológica. Para quem já leu a Reivindicação dos Direitos dos Homens (1790) e a Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792) os três primeiros tipos de liberdade ficam mais nítidos, pois nessas obras Wollstonecraft questiona o status quo e, principalmente, pleiteia que meninas e meninos sejam educados juntos. Quanto à liberdade psicológica - ou emocional - fica mais evidente em suas primeiras publicações, de cunho educacional (Pensamentos sobre a educação das meninas e Histórias originais sobre a vida real) em que o propósito da educação ali projetada é ensinar que as meninas pensem por si mesmas e se guiem pela própria faculdade de razão. No entanto, pude perceber que essa questão da liberdade psicológica pode estar em outras obras de maneira bem mais sutil. E é sobre isso que pretendo falar neste texto.
Estou na Universidade de Cambridge, realizando meu sanduíche. É incrível, mas também é frio e solitário. Os sentimentos são sempre ambíguos: é maravilhoso estar em prédios com mais de quinhentos anos de existência, ter acesso a bibliotecas física e digitais enormes. Mas também é solitário e perturbador ser a única brasileira (ou sul-americana) na sala, em discussões sobre racismo e colonialismo. É cansativo e tem horas que eu só queria poder subir na mesa e gritar, mas os protocolos praticados aqui me impedem. Porém, uma coisa eu não posso negar: esses mesmos protocolos me lembram a importância de celebrar os meus esforços para chegar até aqui e de ser reconhecida por isso. Emocionei-me ao vestir a beca de mestra, uma veste usada em ocasiões especiais, como jantares formais e celebrações na capela. Essa emoção reflete uma reflexão recorrente: embora Cambridge exista desde muito antes Wollstonecraft nascer, mulheres só puderam estudar aqui em torno da década de 1980. Wollstonecraft, portanto, não teria a liberdade de usar essa mesma beca hoje eu uso.
Voltando à questão da liberdade psicológica. Estando em uma situação de estrangeirismo, comecei a ler as Cartas Durante uma Curta Residência na Escandinávia, um copilado de cartas em que Wollstonecraft escreve para Gilbert Imlay, pai de sua primeira filha. Nessas cartas, vemos uma Wollstonecraft viajante, acompanhada de sua filha Fanny de poucos meses de vida e Marguerite, a babá da criança. Juntas, elas enfrentam o mar revolto, línguas desconhecidas, comidas esquisitas e pessoas que podem ser receptivas ou não. O que mais me chama a atenção nessa obra é a coragem de Wollstonecraft em viajar - sem qualquer comunicação instantânea ou avaliações de viagem - junto de uma criança pequena. Eu, vivendo em pleno século XXI, viajando sozinha, me sinto vulnerável e ansiosa pelo que pode acontecer pelo caminho.
Outro dia, estava indo à Londres e peguei o trem. No banco à minha frente, sentou uma garotinha em torno de seus cinco anos. Ela estava com a sua mãe e ambas conversaram o caminho todo. Em algum momento, me juntei à conversa delas. A menininha perguntou discretamente à mãe dela se eu viajava sozinha. E eu respondi que sim. A mãe dela, então olhou pra ela e diz que eu viajava sozinha porque eu era uma garota muito corajosa. Nossa conversa fluiu sobre minha estadia aqui e sobre os conhecimentos da garotinha em figuras históricas. Contei a a história da Wollstonecraft e a garotinha me disse que gostava de saber sobre a vida de mulheres pois ela pode perceber que mulheres podem ser cientistas e pensadoras. Aquilo me tocou de uma maneira intensa e me levou a refletir sobre freedom, essa liberdade tangível e material. Na pesquisa, me pego pensando em um plano tão abstrato, utópico, que por vezes esqueço de que existem outros modos de alcançar a liberdade: poder caminhar sozinha na rua a qualquer hora sem sofrer qualquer tipo de violência; escolher a própria profissão; mas também a liberdade de poder viajar sozinha, assumindo os riscos e as delícias de enfrentar o estrangeiro - assim como fez Wollstonecraft no século XVIII.
Por fim, pensei em como as variadas obras de Wollstonecraft (cartas, ficções, panfletos, resenhas, etc.) abordam essa liberdade psicológica como pano de fundo. Especialmente no caso das viagens, Wollstonecraft nos demonstra que é preciso ter coragem de enfrentar os pressupostos sociais (você, uma mulher casada, viajando sozinha?!), por um objetivo de alargar nossa imaginação e potência reflexiva, a fim de produzir materiais que se tornarão argumentos filosóficos. Wollstonecraft nos incita a viver e a observar, a ter coragem e a ocupar o mundo. Claro, que existem obstáculos materiais que por vezes impedem que as mulheres simplesmente saiam por aí. Reconheço o meu privilégio de pegar as malas e viajar. Mas o que estou sugerindo é que Wollstonecraft propõe uma ética de vida, alinhada não só a teoria, mas também ao modo de ser e estar no mundo. Enfrentar e questionar: por que uma mulher não poderia fazer algo sozinha? Mulheres podem ser boas cientistas e pensadoras, garotinha do trem. Mas também podem ser viajantes e desbravadoras, como foi a nossa Wollstonecraft.