Especial Anpof 8M: Pode o projeto de resgate redefinir a filosofia?

Natalia Mendes

Pesquisadora de Pós-Doutorado do Programa Pós-Doutorado (PPGLM/UFRJ) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (UFMA)

18/03/2024 • Coluna ANPOF

GT Mulheres na História da Filosofia

A filosofia escrita pelas mulheres filósofas foi deliberadamente removida da historiografia da filosofia.[1] A experiência das mulheres dentro dessa história é uma experiência de exílio. O expatrio involuntário da nossa história intelectual é parte de um longo processo de desautorização que culminou no século alemão[2] sempre reduzido às figuras que orbitam ao redor de Hegel[3]. Este degredo leva-nos à experiência de despertencimento e desenraizamento: como herdeiras de uma história sub-repticiamente não contada, desprovida de qualquer continuidade, tradição historiográfica, patrimônio interpretativo e memória coletiva tornamo-nos, como nossas filósofas ancestrais, donas de uma história perdida, espectadoras mudas da história escrita pelos filósofos – como na poderosa comparação de Ruth Hagengruber[4] que ilustra como mulheres privadas de suas histórias podem ser comparadas às pessoas que perderam suas memórias porque são incapazes de constituir identidade pessoal.

Essa proscrição assumiu diferentes formas de exclusão ao longo das épocas seguidas de diferentes formas de contravenção. O nosso exercício filosófico surgiu da iconoclastia dos bustos de gesso que o cânone construído em condições de desigualdade de gênero esculpiu. Nesse espaço anulado e não autorizado, sob o selo do exoterismo impermitido, do autodidatismo desautorizado, da literatura marginal, da escrita doméstica e epistolográfica, filósofas de diferentes períodos e tradições seguiram comunicando filosofia no silêncio dos rincões da história por meio de cartas, ensaios, traduções críticas, panfletos, romances, introduções, prefácios, diários, poesias, autobiografias e tratados. O nosso atual esforço historiográfico de reescrever essa história tem nos mostrado, contudo, que certa concepção oitocentista de filosofia – que, segundo Eileen O’Neill[5], resulta em grande medida do projeto de purificação da filosofia provocada pelo neokantismo – levou à supressão da escrita heterogênea das filósofas. O fio invisível que conecta os filósofos canônicos a uma narrativa supostamente histórico-causal sempre justificada pelo escrutínio dos marcadores texto-contexto, método-objeto e tema-problema agora é revelado. Esse fio é o gênero.

A história da filosofia prova-se uma história generificada.  As fontes valiosas que hoje dispomos revelam, contudo, que a história intelectual das mulheres filósofas remonta às origens da própria história da filosofia. As filósofas como Anne Conway, Émilie du Châtelet e Margaret Cavendish foram exiladas do cânone não porque suas obras não são suficientemente filosóficas ou porque não atendem aos critérios formais e ad hoc do que é tradicionalmente considerado filosófico: elas passaram imperceptíveis à formação supostamente autoconsciente do cânone por conta da condição social do seu sexo. Essas filósofas se envolveram precisamente com o mesmo tipo de empreendimento e atividade filosófica que os filósofos homens historicamente se envolveram. Elas produziram filosofia do mesmo tipo que os filósofos e no mesmo sentido que os filósofos produziram. A atividade filosófica como desempenhada pelas filósofas ao longo das épocas é, contudo, tão diversa quanto a atividade filosófica como desempenhada pelos filósofos. Elas contribuíam para a narrativa histórico-causal canônica e, ao mesmo tempo, algumas filósofas constituíram um corpus teórico independente que oferece uma alternativa à história tradicional da filosofia[6] ao recorrerem à experimentação textual como prática filosófica, à forma como objeto, ao método como conteúdo.

O reconhecimento de que a filosofia produzida por mulheres filósofas pode ser própria e distinta, diversa e heterogênea não deve nos levar, contudo, à afirmação de que existiu ou existe algo como uma filosofia masculina e uma filosofia feminina ou um modo de filosofar feminino e um modo de filosofar masculino. O projeto de recuperação não consiste na proposição de uma espécie de cânone paralelo que convoque a essencialismos. A divisão entre uma filosofia exotérica ou esotérica, informal ou formal, ensaística ou acadêmica, doméstica ou pública, epistolográfica ou sistemática (que explicita a atividade filosófica também de diversos filósofos) abarca suficientemente a experiência de exílio das filósofas. Elas devem ser reconhecidas não como místicas, literatas, escritoras ou pensadoras, mas como filósofas em seus próprios termos.

O caso é que o apagamento das obras das filósofas tornou a história da filosofia menos filosófica. Uma historiografia da filosofia pautada na exclusão por gênero é, para dizer o mínimo, uma historiografia da filosofia ruim. A recuperação dessa história perdida, em contrapartida, pode iluminar o nosso exercício filosófico e transformar a nossa relação com a história da filosofia. O contato com fontes pouco exploradas tem nos colocado diante de novas formas de pensar e de fazer filosofia. O nosso desafio é metafilosófico na medida em que não poderemos questionar o conteúdo da história da filosofia sem provocar o que reconhecemos como constituindo a sua natureza: a filosofia não passará inalterada às consequências do projeto de recuperação.

O conceito de filosofia é, ele próprio, historicamente flutuante e instável, uma definição indefinida, um conceito autogerido. Essa essência instável coloca-nos diante de novos desafios a cada período histórico. Para recorrer a uma fonte ainda polêmica no Brasil, devido em grande medida a um espantalho, Martial Guéroult fez uma constatação metafilosófica valiosa: “os objetivos e os métodos da historiografia da filosofia variam cada vez que a filosofia concebe para si uma essência diferente”.[7] A filosofia está concebendo para si uma nova essência. O projeto de recuperação é parte desse automovimento. O esforço autocrítico de Mary Ellen Waithe quando, já na década de 1987, na ocasião da publicação de seu momumental A History of Women Philosophers, questionou a sua própria lista de filósofas a partir do uso do critério ad hoc que dispunha naquele momento: "poderíamos chegar a uma compreensão diferente da natureza da filosofia em si como resultado do conhecimento do pensamento das mulheres?" (Waithe 1987, xviii). A resposta, três décadas depois do impacto inicial da sua obra, é sim.

O trabalho de recuperação também tornará o nosso exercício histórico mais preciso. Um historiador da filosofia precisa capturar os movimentos internos e implícitos da história em seus aclives e declives, ápices e depressões, continuidades e rupturas reconhecendo que para compreendermos as obras monumentais das figuras canônicas, precisamos reconstruir o papel desempenhado por figuras consideradas historicamente menores e reconhecermos que uma obra filosófica de grande expressão histórica representa apenas um ponto de virada construído conjuntamente ao longo de um complexo processo histórico. Como nos lembra Richard Rorty: os picos da história da filosofia devem ser lidos a partir das suas respectivas depressões.[8]

Há uma diversidade de posições acerca da exclusão das mulheres do cânone da história da filosofia[9] e, talvez, existam tantas posições quantos filósofos e filósofas estejam empenhados com a história das mulheres na filosofia. A razão disso é que – embora sempre lançados ao mesmo lado da discussão – não possuímos necessariamente a mesma concepção do que consiste a atividade filosófica e do que ela pode se tornar.

As filósofas envolvidas com o projeto de recuperação geralmente reconhecem, contudo, que o cânone possui um valor filosófico porque serve como parâmetro, expressão e medida daquilo que é considerado propriamente filosófico e um valor histórico na medida em que apresenta uma narrativa mais ou menos organizada e linear dos problemas, temas, querelas, métodos, obras e autores que compõem todo o globus intellectualis filosófico.

O que o projeto de recuperação denuncia é que o cânone clássico, supostamente autoconsciente limita a história da filosofia muito mais do que a justifica e a expande. O cânone representa um recorte da história da filosofia. Ele expressa o que queremos preservar da nossa história intelectual. A revisão é, portanto, inerente à própria ideia de cânone. O caráter revisionista, interno ao conceito de cânone, convoca-nos à atualização contínua: Quais critérios filosóficos serviram para a formação do cânone que dispomos? O que foi preservado? O que foi negligenciado? Por quê? Qual história da filosofia o cânone filosófico nos conta? Qual história ele pode nos contar?

A história que pretendemos recontar nos convoca, portanto, a aprofundarmos a nossa reflexão historiográfica, a retornarmos às discussões metafilosóficas clássicas enquanto recuperamos o trabalho de filósofos e filósofas de menor expressão histórica, exploramos novas questões cujo valor filosófico permanece desconhecido, revisamos os métodos de acesso à história da filosofia, repensamos as metodologias que utilizamos no seu ensino ao mesmo tempo que resgatamos o valor filosófico da história da filosofia e recuperamos o legado intelectual das mulheres filósofas. Este é o momento de reconhecermos, portanto, que a investigação sobre o apagamento das filósofas do cânone – e, por consequência, do currículo – leva-nos a reconsiderarmos a natureza da filosofia e o estatuto filosófico da sua história.

O resgate das obras das filósofas não apenas convoca a uma reescrita da história, como também altera o conteúdo dessa história, oferece uma correção da natureza da filosofia e uma transformação do nosso exercício filosófico.


O presente texto é parte de uma discussão a ser desenvolvida no projeto O debate apropriacionismo-contextualismo e o resgate do cânone perdido do século XIX através do Programa Pós-Doutorado Nota 10 (PDR-10) (2024-2028) da FAPERJ no PPGLM/UFRJ sob a supervisão da professora Nastassja Pugliese (UFRJ) cujo objetivo é investigar o caso do apagamento das filósofas Agnes Marie Constanze von Hartmann (1844-1877) e Olga Plümacher (1839-1895) da historiografia oitocentista.


Notas

[1] O que se comprova nos esforços seletivos das famosas narrativas de Bertrand Russell, Frederick Copleston, Danilo Marcondes, Sofia Vanni Rovighi, Giovanni Reale, Frederick Beiser, Karl Löwith, Leo Freuler, Herbert Schnädelbach, Kuno Ficher e Wilhelm Windelband – que também não alcança sua completude nos esforços generosos de Mary Ellen Waithe.

[2] EBBERSMEYER, Sabrina. From a ‘Memorable Place’ to ‘Drops in the Ocean’: On the Marginalization of Women Philosophers in German Historiography of Philosophy. British Journal for the History of Philosophy, v. 28, n. 3, p. 442–462, 2019.

[3] Um exemplo é que os chamados velhos hegelianos ou hegelianos de direita, ainda em 1870, compreendiam todas as filosofias aparecidas desde Hegel como mero desenvolvimento posterior do seu sistema (Löwith, 2014, p.63).

[4] HAGENGRUBER, Ruth. The Stolen History: Retrieving the History of Woman Philosophers and its Methodological Implications. In: THORGEIRSDOTTIR, Sigridur; HAGENGRUBER, Ruth (Orgs.). Methodological Reflections on Women’s Contribution and Influence in the History of Philosophy. Switzerland: Springer Nature, 2020.

[5]  Conferir: O'NEILL, Eileen. Disappearing Ink: Early Modern Women Philosophers and Their Fate in History. In: Philosophy in a Feminist Voice. Princeton University Press, p. 17–62, 1997.

[6] Eu não concedo, contudo, que haja uma função realmente filosófica ou reparadora em colocá-las completamente à parte da história da filosofia tradicional – embora compreenda o papel fundamental que compêndios de histórias alternativas possam desempenhar na reescrita dessa história.

[7] Gueroult, Martial. “The History of Philosophy as a Philosophical Problem”. The Monist, v. 53, n. 4. Philosophy of the History of Philosophy, p. 563-587, 1969.

[8] RORTY, Richard. The historiography of philosophy: four genres. In.: Richard Rorty, J. B. Schneewind; Quentin Skinner (Orgs.) Philosophy in History, Cambridge University Press, 1984.

[9] Um exemplo dessa diversidade está na tentativa de classificação tipológica apresentada por Sarah Tyson (2014) em seu From the Exclusion of Women to the Transformation of Philosophy no qual ela identifica quatro formas ou modelos de reinvindicação da história do pensamento das mulheres na filosofia: (i) o modelo de emancipação; (ii) o modelo história alternativa; (iii) o modelo corretivo; e (iv) o modelo transformador. Eu acredito que precisamos empreender o esforço de oferecer uma análise tipológica mais aprofundada do caso brasileiro.