Especial Anpof 8M: Sororidade e consciência feminista
Roberta Pschichholz
Mestranda em Filosofia (UFSM)
21/03/2024 • Coluna ANPOF
GT Mulheres na História da Filosofia
Eu só estou aqui, escrevendo pela primeira vez para um espaço destinado à comunidade filosófica, porque uma mulher acreditou no meu potencial. Antes de me sentir minimamente qualificada para ocupar esta coluna, foi minha orientadora, a professora doutora Mitieli Seixas da Silva, imbuída da missão de oportunizar maior equidade de gênero na Filosofia, quem confiou nesta que vos escreve. A partir destas colocações, espero não ter desanimado a leitura, mas, sim, conquistado sua atenção para lançar de pronto um questionamento: você já leu, ouviu ou assistiu a algum homem admitir se sentir incapaz, pouco qualificado ou inseguro diante de alguma tarefa que lhe cabe? Pois são muitas as razões pelas quais as mulheres se descredibilizam – ou melhor, são sistematicamente descredibilizadas. Não pretendo me ater a elas, mas sim ao que pode contribuir para nos demover dessa posição de cidadão de segunda classe, do lugar do outro, como diz Beauvoir. E aposto minhas fichas no conceito de sororidade, o objeto de estudo que me trouxe à Filosofia – sou bacharel em Jornalismo, então, de novo, peço perdão pela eventual superficialidade de certas colocações.
Aproveitando a qualificada audiência que terá acesso a este conteúdo, proponho uma reflexão coletiva sobre o valor social e o papel da sororidade para as mulheres. A pressuposição básica que orienta meu projeto de dissertação é que o conceito de sororidade funciona como uma das ferramentas de construção de identidade (Alcoff, 2021) nas diversas manifestações do pensamento feminista. E meu objetivo central é analisar as limitações teórico-práticas do conceito de sororidade para construir essa identidade, em especial na sua intersecção com marcadores raciais. Seria factível buscar uma unidade para essa identidade, em meio a tantas diferenças que as exigências interseccionais – isto é, a necessidade de introduzir raça, classe, gênero, sexo, faixa etária, entre outros recortes, na análise de dinâmicas sociais – colocam em movimento? E ainda, diante de um contexto classicista neoliberal vigente, que celebra a meritocracia, o individualismo, o empoderamento e o autocentramento, faz sentido falarmos em identidade de grupo e pertencimento? Para quem? E como construir sororidade nestes contextos à primeira vista tão díspares?
Antes de propor respostas para estes questionamentos, permitam-me fazer mais um relato particular. Em meu núcleo familiar, sempre houve uma espécie de tensão entre as mulheres. A convivência – longe da camaradagem e da parceria estabelecida pela ala masculina – era permeada por rusgas que notadamente enfraqueciam o grupo. A maturidade e a Filosofia me ajudaram a perceber a relação entre as diversas opressões a que cada uma de nós fomos submetidas, com a dificuldade para criarmos laços de afeto e apoio suficientemente fortes e aprofundados para permitir que tivéssemos uma convivência saudável, capaz de resgatar nossa autoestima e nos tirar desse subterrâneo inóspito que é o lugar do oprimido. Muitas de nós vivíamos em um contexto em que não havia espaço de fala. Nossas opiniões simplesmente não importavam e sequer eram ouvidas. Escutávamos, impassíveis, aos “cala a boca”, “fica quieta”, “ninguém pediu a sua opinião”, engolidos junto com o choro, desaguado no silêncio do quarto. De tudo isso ficou a revolta e a percepção equivocada de que a culpa era das mulheres mais velhas, que da minha perspectiva de adolescente rebelde, permitiam que esse comportamento misógino se perpetuasse.
São essas as cicatrizes da violência psicológica que eu carrego. E sei que cada uma de nós sobrevive a seus contextos de opressão, intensificados pela cor da pele, pela situação social, pela orientação sexual, por alguma deficiência, pela localidade em que vive, entre outras peculiaridades. Como defende Sueli Carneiro[1], a perspectiva feminista na qual procuro ancorar minhas reflexões tem o gênero como uma variável teórica, que não pode ser separada de outros eixos de opressão, porque se o feminismo tem como missão essencial libertar as mulheres, precisa enfrentar todas as formas de opressão e colocar-se como um movimento essencialmente anti-racista.
A mim parece essencial compreender, também, quais fatos históricos poderiam ter provocado essa cisão entre as mulheres. Afinal, como viramos inimigas umas das outras? Mas, antes, de quais mulheres estamos falando? Essa questão traz consigo uma visão bastante eurocêntrica das relações entre as mulheres, uma vez que, do ponto de vista do feminismo decolonial, a sororidade foi sempre questão de sobrevivência para mulheres do sul global. Já para outra parcela da população feminina, a sororidade abraçou frases como “girl power”, “se uma pode, todas podem”, num esforço de transformar realidades a partir do incentivo à conquista da liberdade e da autossuficiência a partir do empreendedorismo, seara que, para Serene Kahder (2018), pode, como efeito contrário, instigar a desconfiança como marcador de relações entre estas mulheres, fomentando a competitividade e desmantelando redes de apoio. Eis aí um efeito colateral do capitalismo neoliberal a ser debatido.
Quanto às possíveis origens das divergências nas relações femininas, encontrei em Silvia Federici uma explicação bastante contundente, ao apontar a consolidação do capitalismo como sistema econômico vigente, a partir do fim da Idade Média e início da Era Moderna (entre os séculos 15 e 17), como o estopim da caça às mulheres (naquele período, às “bruxas”) e a todo perigo que representavam ao Estado e à Igreja. Há toda uma redefinição ideológica das relações de gênero e uma política sexual que agigantou as diferenças entre homens e mulheres, as expulsou de posições de protagonismo (mestres cervejeiras, parteiras, curandeiras…) e as condicionou ao espaço privado, ao trabalho reprodutivo. É neste mesmo período que Federici identifica uma manobra linguística que responde à questão central deste texto, uma demonstração explícita de como a misoginia e a opressão de gênero operam das mais diversas maneiras para enfraquecer e esvaziar os coletivos femininos.
A história do termo “gossip” (“fofoca”, em tradução livre) remonta a dois séculos de ataques contra as mulheres. Em pleno nascimento da Inglaterra moderna, a expressão que usualmente aludia a uma “amiga próxima” – God [Deus] e sibb [aparentado], “gossip” significava, originalmente, “god parent” [padrinho ou madrinha] – se transformou em um termo que denota conversa fútil, maledicente, que semeia a discórdia. É o sentido construído e atribuído pelos homens até os dias atuais às rodas de conversa de mulheres, extremo oposto da solidariedade que a amizade feminina implica e produz, a tal da sororidade. Federici conclui que imputar um sentido depreciativo a uma palavra que indicava amizade entre as mulheres ajudou a destruir a sociabilidade feminina que prevaleceu na Idade Média, quando a maioria das atividades executadas pelas mulheres era de natureza coletiva. Notem a força da palavra e o quanto, ainda hoje, apesar dos esforços de pensadoras como bell hooks (2020) em ressignificá-la – bell propõe que tratemos a fofoca como nosso “lugar seguro”, um espaço de liberdades e confidências entre as mulheres – seguimos lidando com desconfortos e ameaças que vêm de homens que se sentem incomodados pela força coletiva feminina e também pelas críticas e maledicências que surgem no próprio grupo.
As tantas formas de opressão a que fomos sistematicamente submetidas pela insurgência patriarcal nos distanciou do que Lerner (2022) chama de “consciência feminista”. As tentativas de restabelecimentos dessa “identidade coletiva insurgente” (Evans, 1979) dependeram de fatores como a capacidade de um grupo de tamanho considerável de mulheres de viver fora do casamento com independência econômica; mudanças demográficas e médicas que permitiram a grupos maiores de mulheres renunciar à atividade reprodutiva ou limitar o número de filhos; acesso das mulheres à igualdade de educação e à possibilidade de criar “espaços para mulheres” (Lerner, 2022). Ainda nos faltam espaços sociais onde, enquanto grupo oprimido, tenhamos a oportunidade de descobrir nosso senso de valor, onde possamos nos libertar da “tirania do silêncio” (Lorde, 2019) e exercer uma política identitária coletiva (Kollontai, 2021) da qual todas nós, sejam quais forem os contextos sociais e raciais, carecemos. É sobre a construção de uma “sororidade política” (hooks, 1986), que dê conta de pautas comuns a todas nós, que estou empenhada em pesquisar e, de alguma maneira, viabilizar. Para que, de maioria minorizada, tenhamos de volta o protagonismo que nos foi tirado.
Bibliografia
ALCOFF, L.M. Identity. In ÁSTA; HALL, K Q. (eds.) The Oxford Handbook of Feminist Philosophy. Londres: Oxford University Press, 2021.
Beauvoir, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos / Simone de Beauvoir; tradução Sérgio Milliet. - 3. ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
Evans, Sara. Personal Politics: The Roots of Women´s Liberation in the Civil Rights Movement and the New Left. Nova York: A Knopf, 1979.
Federici, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
_____. Mulheres e a caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo, 2019.
Frye, Marilyn. Oppression. In: PEACH, Lucinda Joy (ed). Women in Culture: A Women’s Study Anthology. Oxford: Blackwell, 1998.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras / bell hooks; tradução Ana Luiza Libânio. - 4ª ed. - Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
_____. Feminism is for everybody: passionate politics.South End Press, 2000.
Khader, Serene. Decolonizing Universalism: A Transnational Feminist Ethic. New York: Oxford University Press, 2018.
Lerner, Gerda. A criação da consciência feminista: a luta de 1.200 anos das mulheres para libertar suas mentes do pensamento patriarcal. São Paulo: Cultrix, 2022.
Lorde, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica Editora, 2019.
Notas
[1] https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/?amp=1&gad_source=1&gclid=CjwKCAiAopuvBhBCEiwAm8jaMc2gNfdhLAd6rGBjEnKRMtKxl2Z5T32ZDusiWSJxbUpLaPgmJYkOZBoCBpAQAvD_BwE