Espectros e máquinas: onde encontrar a imortalidade?

Hilan Bensusan

Professor do Departamento de Filosofia (UnB)

15/07/2024 • Coluna ANPOF

A intimidade da filosofia com a morte é uma das características que faz a primeira perigosa – e agrega mais perplexidade à segunda. A morte, porque parece com um fim, insinua algum parentesco com um destino – por isso quando se fala de preparar-se para a morte com sabedoria muitas vezes se escuta uma recomendação a alguma espécie de resignação. Se é a morte é o que acontece com existentes livres, ela parece dar cabo a sua liberdade. Na medida em que o pensamento ocidental é um canto de amor a indivíduos livres que expandem o escopo de sua capacidade de decisão em detrimento da soberania do que não é humano, a morte é uma das fronteiras últimas diante desse persistente ego conquiro. Dessa tensão entre espaços de autonomia surge o pensamento do niilismo tanto em Martin Heidegger – que associa o niilismo a empreitada de tornar o mundo disponível, ou melhor, transformá-lo em um dispositivo – quanto em Emanuele Severino – que entende o niilismo a uma hegemonia no pensamento europeu que o coloca sempre às voltas com um nada avassalador do qual não consegue dar conta. Pensar a falta de morte seria então pensar a permanência – na forma por exemplo do subsistente, da substância, da presença plena – e assim alguma espécie de eternidade subjacente configuraria a imortalidade. A imortalidade de indivíduos humanos – perseguida pelo cristianismo que postula vida e corpo depois da morte e pelo trans-humanismo que pretende fazer migrar mentes para corpos mais digitais, portáteis e robustos – se torna um triunfo da vontade humana que poderia então exercer sua soberania sem restrições vindas de qualquer outra parte. 

Tenho pensado em formas de contornar esse trinômio liberdade-indivíduo-permanência como guia para pensar a imortalidade. Trata-se de maneiras de pensar que procuram ultrapassar de alguma maneira a metafísica da presença e as pressuposições à sua volta. Encontro uma alternativa próxima da virada espectral que tem tido lugar nos últimos anos, desde uma certa recepção do livro de Jacques Derrida, publicado em 1993, Espectros de Marx. Espectros estão na contramão não apenas da morte entendida como portal de eternidade quanto da presença plena já que eles não habitam, não se demoram em parte alguma, mas antes assombram, desaparecem e podem ser conjurados ainda que nunca inteiramente controlados. Espectros são intermitentes, alternantes, insistem sem persistir e na medida em que eles são imortais, eles não são eternos, mas capazes de voltar – revenants, chamam os franceses aos fantasmas, pois quando surgem pela primeira vez já estão voltando. Há assim um outro jeito de pensar a imortalidade, ela não é a persistência da autonomia, mas uma capacidade de retorno, que não ocorre na mesma modalidade, no mesmo contorno, na mesma circunstância. Tenho elaborado uma conexão entre o espectro – e um realismo com respeito a eles – e a memória – e não apenas aquilo que nos lembramos e nos esquemos. A memória também é intermitente, ninguém se lembra de tudo sempre, e é um retorno incontrolado que podemos preparar mas raramente controlamos. Porém a memória está em uma diacronia: o tempo da retenção difere e precede o tempo da recuperação – o presente é ele mesmo bifurcado na memória. A ideia de que a realidade é ela mesma mais próxima da memória, e por isso do espectro, do que de uma paisagem de presenças plenas é o que recomendo em meu livro Memory Assemblages: Spectral Realism and the Logic of Addition (Londres: Bloomsbury, 2024). Ali elabora uma forma de pan-mnemismo de acordo com o qual encontramos por muitas partes assemblagens de memória que conectam arquivos retidos e recuperações em diferentes contextos. A imortalidade da memória, neste contexto, é aquela que está à mercê do que os outros futuros conjurem, demandem ou tenham a circunstância de fazer retornar.

No minicurso no XX Encontro Anpof, chamado Realismo Espectral: Pensar a Imortalidade Hoje. vou desenvolver algumas dessas ideias. Começo tentando estudar o espectral, suas relações com a descontrução e com a especulação, sua relação com a contra-colonialidade e com a violência política e seu impacto recente no pensamento na América Latina. Exemplifico esse impacto sobretudo com o platonismo de Fabián Ludueña que assume a forma de uma espectrologia disjunctológica. Termino elaborando minha forma realismo espectral, comprometido com a diacronia da memória e com a ubiquidade dos arquivos. Como com fantasmas, na memória aquilo que é guardado ronda, difícimente se preserva tal como foi retido. O que emerge de uma posição assim é uma imortalidade que, antes de se impor ao resto do que existe, está refém do que ainda virá e assim não surge com uma garantia associada a nenhuma forma específica plenamente presente tal como a integridade de cada mente ou a indissolubilidade de cada unidade – indivíduo, comunidade ou gesto. Tal como a virada espectral, o propósito do minicurso é incitar uma discussão sobre como a intimidade da filosofia com a morte, e com suas negações, pode ser pensada em formas diferentes daquelas que recebem destaque quase imediato em um tempo em que as soluções não parecem poder se desviar dos caminhos e das promessas oferecidas pelas máquinas.

O minicurso "Realismo Espectral: Pensar a Imortalidade Hoje" será ministrado pelo professor Dr. Hilan Bensusan (UnB/GT Ontologias Contemporâneas) no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.