Estrangeira: a mulher negra na Filosofia

Jordânia Araújo

Professora de Filosofia (IFBA) e doutoranda em Filosofia (UFBA); Integrante do GT Filosofia e Gênero

26/07/2023 • Coluna ANPOF

A reflexão deste dia - da celebração e luta da mulher negra latino-americana e caribenha - me lembra uma importante indagação de bell hooks que merece destaque: “Sem que nossas vozes, de mulheres negras, sejam manifestadas em trabalhos e teorias publicadas, como nossos problemas serão formulados?” (hooks, 2014). É preciso ter em conta que a possibilidade de afirmação de nossas vozes no ambiente acadêmico aparece entrelaçada com a problemática da reduzida presença da mulher negra na universidade pública no Brasil. Isso é importante ser evidenciado, porque é reflexo da nossa constituição histórica, que empurra as mulheres negras para os principais índices lastimáveis de vulnerabilidade social e quando se desviam desses lugares, o estigma e o racismo ainda se fazem presentes em outros espaços intelectualizados. Essa problemática nos acerta no ponto crucial. Se é verdade que as mulheres foram excluídas do cânone filosófico, é também verídico que essa anulação é, ainda mais, perversa em relação às mulheres negras. 

Nos últimos tempos, a temática sobre o problema da invisibilidade das filósofas tem ganhado um certo destaque. Isso é produto de um esforço coletivo, impulsionado, sobretudo, pelas mulheres pesquisadoras/filósofas que realizam, com suas próprias mãos, uma transformação gradual na Filosofia. A reivindicação é o reconhecimento das contribuições intelectuais das pensadoras femininas. Além disso, há também a exigência da garantia da diversidade na produção do conhecimento que enriquece e mobiliza as preocupações filosóficas no Brasil. Contudo, o caminho para que este objetivo seja alcançado parece distante. 

Se é latente a tentativa de exclusão e apagamento das filosofias produzidas por mulheres, quando nos voltamos especificamente para a presença das mulheres negras na academia e na Filosofia, chega a ser estrondosa a tentativa que promove a sua exclusão e desqualificação. Tidas pelo crivo da hiperssexualização e também da invisibilidade que beira a desumanização, as mulheres negras não são reconhecidas enquanto pensadoras/filósofas quando ocupam os centros intelectuais. E mesmo quando há algum tipo de reconhecimento, ele se apresenta frágil e instável. Vistas como estrangeiras deste lugar que é, majoritariamente, feito e delimitado por e para homens brancos, elas não passam imperceptíveis nesse ambiente, no entanto, são tornadas invisíveis. 

As inúmeras violências que atingem as mulheres negras em outros espaços, na academia, elas não estão livres, isentas e seguras. No entanto, tal como na música “A mulher do fim do mundo” (Fróes e Coutinho, 2015), cuja letra retrata a reivindicação de uma mulher preta que reclama o seu direito de se posicionar, cantar e performar no carnaval, assim também acontece em outros espaços. As mulheres negras exigem constantemente seu direito à liberdade. 

Prontas para combater as visões estereotipadas e racistas da atuação da mulher negra no processo histórico de formação do Brasil, essas mulheres construíram suas próprias teorias e suas contribuições estavam imbricadas em uma luta constante contra as estruturas hierarquizadas que promovem diferentes exclusões e desigualdades, a partir das categorias de gênero, raça e classe. Essa preocupação é resultado das dificuldades socialmente impostas, invariavelmente, para o próprio fazer acadêmico das mulheres negras. Desta forma, abraçar essa luta é conceber a própria existência e resistência nesse espaço, ainda, elitizado, racista e misógino. Como Conceição Evaristo bem pontua, e que poderia ser aplicado às filósofas negras brasileiras: a escrevivência surge como um lugar de compreensão das subjetividades e especificidades da escrita da mulher negra. Porque “vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta.” (EVARISTO, 2020). 

De maneira similar, a filósofa Lélia Gonzalez posiciona também a denúncia: “Ser negra e mulher no Brasil repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão.” (GONZALEZ, 1982). Com essa visão ampla, tendo conhecimento das profundas marcas que o Brasil carrega, o pensamento da filósofa também se tornava, inevitavelmente, uma ação, engajada no combate ao racismo, à misoginia e às desigualdades de classe, tripla violência que atinge, contumaz, mulheres negras, especialmente nos países latino-americanos. A produção teórica de Lélia Gonzalez expressa resistência, inclusive, aos padrões de silenciamento e epistemicídio que configuram os ditames acadêmicos, os quais outorgam e legitimam os conhecimentos considerados válidos. 

Há um sistema de dominação que estrutura não somente a academia e suas inúmeras relações humanas, mas também há uma hierarquia que fundamenta a validade das investigações epistemológicas. Essa dinâmica apaga a possibilidade de pesquisas diversas e também promove o silenciamento de grupos minorizados nesse espaço. O ambiente acadêmico acaba por se tornar hostil e propagador de experiências desumanizantes ao marginalizar corpos, vozes e identidades que estão fora do padrão dominante e isso traz um forte impacto nas mulheres negras, causando o que temos hoje: a sua, quase, exclusão na Filosofia. 

Ademais, Lélia Gonzalez (1982) ainda traz uma importante reflexão crítica em relação ao papel da mulher negra que, paradoxalmente, é alcançada por distintas violências, mas que, por outro lado, também aparece como protagonista da história desse país e não ocupando o lugar de submissão. Isso porque as próprias condições sociais (ausência de rede de apoio, preterimento nas relações amorosas, mães-solo de famílias, trabalhadoras domésticas, etc) faziam com que elas tivessem que assumir diferentes papéis, inclusive se distanciando dos padrões femininos idealizados/ projetados socialmente para as mulheres brancas, arquétipos encerrados na compreensão de fragilidade e domesticidade. Em verdade, “nenhum outro grupo da América tinha a sua identidade tão socializada fora da existência como tinham as mulheres negras” (hooks, 2014). 

As mulheres negras lideram nas pesquisas, pertencendo ao grupo de maior vulnerabilidade social no Brasil. Elas figuram como as principais vítimas de feminicídio. Além disso, são as que mais morrem, ao lado das mulheres indígenas, ao fazer aborto no país. De acordo com o Instituto Brasileiro de Economia, 90% das mulheres que se tornaram mães solo, entre 2012 e 2022, são negras. Elas são minorias em cargos de chefia, mas desempenham majoritariamente os trabalhos domésticos. De acordo com o IBGE (2019), recebem, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%). 

Diante dos dados estatísticos, que apresentam as péssimas condições de vida em que as mulheres negras do Brasil são, diariamente, submetidas, é importante destacar que esse quadro não muda quando nos deparamos e frequentamos os centros intelectuais do país. As mulheres negras na academia, sobretudo na Filosofia, são de um número gravemente reduzido. E quando conseguem ocupar esse lugar, são frequentemente atingidas pelo racismo e sexismo que estruturam a academia. É importante problematizar esse apagamento e anulação, com o risco de continuarmos perpetuando hierarquias excludentes, que sufocam, marginalizam e matam pessoas negras todos os dias, especialmente as mulheres. 

Para efetivamente promovermos uma mudança no interior da Filosofia, é necessário não somente revermos o cânone filosófico e a produção de conhecimento no Brasil, mas também analisarmos a nossa própria história, construída a partir de um processo brutal de escravização, marginalização e extermínio. Nesta perspectiva, é importante destacar as palavras precisas de Beatriz Nascimento: “ser negro é enfrentar uma história de quase quinhentos anos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral, à sensação de não existir, a prática de ainda não pertencer a uma sociedade na qual consagrou tudo o que possuía, oferecendo ainda hoje o resto de si mesmo.” (NASCIMENTO, 1974). Para esta inconclusa reflexão, deixo uns versos meus, os quais foram construídos a partir de uma experiência de uma mulher negra nesses estreitos caminhos da vida e do filosofar: 

Usurpada intelectualmente 

Quando me tiram os livros 

Quando me limitam a vida, os caminhos 

Quando me direcionam violências 

Quando tentam calar minha voz e meu ser 

Roubada 

Porque até as relações foram quebradas 

Forçadas a se romper 

Tiraram de mim meu chão 

Porque sabiam que poderia pular, me virar 

Mas doeu e ainda dói 

Silenciada 

Quando descartam minha opinião 

Quando ferozmente me acusam do que não fiz 

Quando tentam tirar de mim meu controle e domínio 

Quando ferem minha alma e meu próprio existir 

Quando me rebaixam por ser mulher 

Mas não se rouba a liberdade feminina 

E aí eu me vejo, me refaço em meio aos cacos 

Me vi sozinha, mulher, violentada 

Contando apenas com meu corpo e meu choro 

Meu próprio consolo? Viver!

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